Decorria o final do ano de 2019, mais precisamente dia 30 de Novembro. Alguns seminaristas do 4º ano do Seminário deslocam-se ao Paço Episcopal de Viana do Castelo, para realizar uma entrevista ao Bispo de Viana do Castelo, D. Anacleto Oliveira. O tema era a obediência, inserido no plano de formação humana do Seminário Conciliar S. Pedro e S. Paulo (Braga), permitindo revistar toda a vida ministerial e pessoal de D. Anacleto. Uma entrevista conduzida, por Flávio Gonçalves, então aluno do 4º ano, que, até agora, permaneceu inédita.
Notícias de Viana (NdV): O que é, para si, a obediência?
D. Anacleto Oliveira (D. A. O):Isso depende do ponto de vista. Eu gosto de jogar muito com a etimologia das palavras. Obediência é quase uma transliteração da palavra latina oboedire que vem da palavra audire que quer dizer ouvir ou escutar. Ou seja, é a escuta mais aprofundada e interiorizante daquilo que nos é dito, de tal modo que isso seja determinante para a nossa vida e seja, no mínimo, orientador para a nossa vida. Claro que estávamos a falar de uma maneira muito generalista, mas a obediência podemos começar por identifica-la como, e falando por mim, uma das virtudes mais preciosas ao nível do relacionamento humano, porque sem obediência é muito difícil viver humanamente, visto que, nessa dimensão social do ser humano, para viver precisamos de conviver. Se eu não estiver aberto à escuta, aquilo que os outros me dizem, sobretudo sendo gente que tem responsabilidades e autoridades, é impossível viver humanamente. É neste sentido que, para além da dimensão cristã, eu a considero uma dimensão fundamental.
(NdV): Da sua vida como sacerdote, e depois como bispo, quais foram os momentos mais difíceis no exercício da obediência?
(D. A. O):É interessante mas, e não sei porquê, nunca me foi difícil obedecer. Talvez porque as pessoas a quem tive de obedecer souberam exercer o seu papel de autoridade, ou seja, uma autoridade participada. Nunca foi uma obediência cega, isto é, um obedecer por obedecer, muito embora em algumas ocasiões eu podia não estar de acordo, e nisso procurei, no mínimo, no mínimo, obedecer para encontrar uma paz interior. De facto, não me recordo de um momento assim, mas procurava sempre o diálogo aberto com as pessoas que me pediam ou exigiam alguma coisa, dizendo alguma da minha discordância, mas disponibilizando sempre para realizar a missão com a mesma energia, com o mesmo entusiasmo que teria se tivesse de acordo. E ao longo da vida, quanto mais foi avançando, mais me foi apercebendo com isso é extramente válido e importante. Na verdade, às vezes chegamos a dar razão à pessoa que nos mandou, mas, também se dá o contrário. Eu quando tinha responsabilidades tive ocasiões em que obedecia às pessoas em quem eu mandava, sobretudo quando se trata de conselhos, nomeadamente dos conselhos pastorais da comunidade portuguesa na qual vive na Alemanha, onde estive a estudar; e houve decisões que o conselho pastoral tomou e às quais eu me sujeitei. Foi um caminho pedagógico, que lhes mostrou, primeiro, que eu não estava ali para me impor, mas para colaborar, e, em segundo, porque, muitas vezes, é pelos erros que se discerne melhor o caminho a seguir.
(NdV): Recorda algum momento em que tenha sentido mais alegria no gesto da obediência?
(D. A. O): Eu senti sempre alegria. Talvez seja da educação, porque isto nasce da família. Nós eramos nove irmãos e eu era o segundo mais novo, com 5 anos de diferença para o irmão mais velho a seguir a mim, e outros 5 de diferença para a minha irmã mais nova, de modo que estava ali num lugar onde era mimado, mas onde tinha, também, de fazer o que os meus pais e irmão me mandavam, por isso, de certo modo eu cresci num ambiente de uma família numerosa onde nós, por mais que não seja, pelo instinto de sobrevivência, temos que nos adaptar ao que temos. Mas atenção, nem aí era uma obediência cega, às vezes refilava. Depois, como digo, as coisas foram andado e não houve, de facto, momento em que tenha sentido grande dificuldade. Repito: a maior dificuldade era quando eu estava convencido que as pessoas não tinham razão, mas, de resto, senti-me sempre bem e à medida que foi avançando na minha vida de padre e, depois de bispo, sentia aí um certo gozo interior, porque tenho procurado ver nessa pessoa a quem vou obedecer um representante de Deus, porque se a vida humana está organizada de modo a existir uma autoridade, e se a vida, no seu conjunto, provém de Deus, creio que Ele escolhe as pessoas mais aptas o representar. Eu digo isto porque é uma afirmação de S. Paulo, de certa forma polémica, quando escreve aos cristãos de Roma que devem obedecer à autoridade romana que ele classifica com mensageira de Deus na terra, mesmo sendo uma autoridade que oprimia os cristãos. Quando S. Paulo escreve essa carta os cristãos, grande maioria deles já tinham sido, mesmo que em parte, perseguidos. E ele, apesar de tudo, dizia que deviam obedecer à autoridade, porque é representante de Deus. Claro que ele vê isso numa perspetiva mais alargada de sociedade e ser humano em que tem que haver algum que comande; e ele, partindo o princípio que a organização social das pessoas é elemento integrante da vida humana que vêm de Deus, manda obedecer, nomeadamente numa coisa muito concreta e muito atual que é: “paguem os impostos”. E nesse contexto que ele termina, numa página muito bonita, dizendo não “devam nada a ninguém a não ser o amor”, porque o amor não o conseguimos levar até ao fim. E foi influenciado por estas páginas, que a gente vai meditando ao longo da vida, que eu senti uma alegria ao obedecer. Um exemplo, dos últimos que tive, foi quando fui nomeado com bispo de Viana do Castelo. É claro que, quando o Sr. Núncio me chamou, para transmitir o desejo do Papa, eu já sabia do que se tratava. Mas ele perguntou-me se eu podia assumir a Diocese de Viana do Castelo – que eu não conhecia – e eu respondi: com muito gosto. Foi a resposta imediata, mas convicta e sento-me feliz. Parto sempre do princípio que é a vontade de Deus, não havendo nada que prove o contrário e dentro de uma razoabilidade, e como tal é sempre, no fundo, para o meu próprio bem, na medida em que, colaborando com Deus eu estou a contribuir para a minha própria vida. Foi assim o último momento, a última decisão, que me obrigou a sair do meu canto, lá de baixo do centro do país, vindo até ao norte e, entre aspas, nunca me arrependi. Não só porque disse que sim, mas por ter a sorte de ter a Diocese que tenho. De modo que não me lembro. Pode até ter existido algum momento pontual, mas não consigo lembrar-me de um momento em que tenha desobedecido de forma descarada. E, repito, não é só o dizer, mas, sobretudo, o fazer. Mas isto não é para me certificar, eu faço aquilo que toda a gente faz. Não sou o único, graças a Deus, que tenta fazer isso.
(NdV): Nesta linha, o que era a obediência para si quando foi ordenado sacerdote e o que é agora? Alguma coisa mudou?
(D. A. O): Não. Atenção: quando eu foi ordenado sacerdote – e comecei com a ordenação de diácono – eu só foi ordenado depois de ter prometido solenemente obediência e reverência ao superior que estava há minha frente, e aos seus sucessores. E, vocês sabem disso muito bem, é a última pergunta que se faz e só depois disso é que eu sou ordenado. Só depois disso é que foi rezada a oração consecratória, e só depois disso é que me foram impostas as mãos. O que significa que a obediência é elemento identificativo e constitutivo do sacerdócio. De tal modo que, se não obedecer eu estou a ser infiel àquilo que faz parte integrante da minha vida. Claro que, quando vamos fazer isto já vamos preparados, já sabemos o que vai acontecer e o que nos espera e, como disse, todo o tempo no seminário e até ele foram exercícios de obediência, que eu fazia diariamente, em que eu aprendi a alegria de obedecer.
(NdV): Agora, como bispo, como exerce a autoridade?
(D. A. O): Procuro exercer a autoridade com firmeza, evitando toda a agressividade e, simultaneamente, dando a liberdade ao outro, porque se a obediência não é livre não é obediência. A obediência se não for assumida interiormente, e assumida na própria vida, não é obediência. A liberdade, a meu ver, é parte integrante da obediência. A liberdade, é claro, parte de um conhecimento de que, em princípio, se aceita como verdade aquilo que nos é imposto. Por isso, eu procuro exercê-la sendo claro – e talvez a palavra seja chocante para alguns – nas ordens que tenho que dar. Procuro ser claro: é isto, isto e isto que eu quero, que eu acho que é bom e importante, porque eu estou sempre como representante da Igreja. Não esqueçamos isso. Eu não trabalho individualmente. Eu trabalho como bispo, e como bispo estou à frente da Igreja que, de certo modo, procura rever-se em mim e, naturalmente, faço todo para que ela se reveja em mim. Quando falo na Igreja, falo na Igreja que eu oriento e a quem eu pretenso. Procuro, assim, agir com firmeza, convicto que aquilo é conforme as normas da Igreja e para bem das pessoas que vão usufruir dessa tarefa, para bens os fiéis, e para bem do próximo. Procuro ser muito claro e muito firme, às vezes, para alguns, de maneira chocante, porque dizem assim: “É uma ordem?” e eu digo “sim, é uma ordem”, porque eu tenho autoridade de ver e ser muito claro naquilo que quero. Agora, a ordem não quer dizer que a pessoa não tenham a liberdade de dizer que sim ou que não. Infelizmente, e talvez a palavra seja demasiado exagerada, tenho casos em que me dizem que não. E eu aceito. Aceito e procuro dizer à pessoa que me diz que não, que continuo a respeita-la, a considera-la e a trata-la de igual modo como se me tivesse obedecido. Ou seja, procuro fazer uma distinção que não é fácil – e vocês vão ver ao longo da vida que não vai ser fácil – entre, usando uma expressão de St. Agostinho, o pecador e o pecado. A desobediência, o não, eu condeno. A pessoa não. E, se calar, naquela altura, tenho que a amar mais. Antes de mais para perceber que não há necessidade de quebrar o bom relacionamento entre mim e a pessoa, mas, também, para que eu não a perca. Nessa altura, precisamos de dar essa liberdade e de fazer esta distinção e St. Agostinho fá-la através da leitura do episódio da adúltera, que levou a acolher a pecadora de modo mais intenso. Eu procuro respeitar alguém que me diz que não a uma ordem ou pedido que faço. Tento juntar as duas coisas: ser firme, claro e direto, enquanto estou convencido que é para bem de todos, nomeadamente da própria pessoa, e, simultaneamente, dar oportunidade a que a pessoa diga que não, isto é, dar lugar à liberdade, porque se não houver liberdade ele nunca vai assumir isso como seu. Faz aquilo que má vontade e depois as coisas correm mal. Claro que pode vir a converter-se com o tempo, mas isso é outra história.
(NdV): Que conselhos daria no âmbito da obediência aos futuros sacerdotes?
(D. A. O): Vou repetir um bocadinho aquilo que disse, mas que a assumam como uma virtude muito bela. Reparem que S. Paulo – vocês desculpem falar de S. Paulo, mas S. Paulo foi o homem da minha vida, eu fiz a minha tese de doutoramento sobre uma das cartas dele, ainda por cima sobre o ministério apostólico – chama à fé obediência. E se há coisa mais constitutiva da vida em geral, porque a fé não é uma virtude apenas cristã, a fé como confiança e como relacionamento confiante com o outro é algo elementar, é a obediência da fé, a fé como um ouvir a vontade de Deus e sujeitar-se a ela. E isso vem reforçar a importância que esta virtude tem ao longo da nossa vida e o conselho que eu dou para aqueles que se preparam para vida em geral, porque isto não é exclusivo dos padres, imaginemos um casal com filhos, por exemplo, é que procurem assumi-la ao máximo, como um bem, um bem para si e um bem para os outros, exercitando-a inclusivamente. Predispondo-se, permanentemente, eu diria a acolher e a exercita-la. E quando houver momento em que as coisas correram menos bem, em que, por acaso, por uma decisão impensada dizerem que não, tentem rever a vida a partir de uma outra virtude que está muito ligada à obediência que é a humildade, que é uma virtude cristã, humana e social. Diante do outro tenho que me tornar inferior, mais que não seja para deixar que o outro me faça o bem.
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