BENTO XVI: “Uma caixa de surpresas… até ao fim”

Na madrugada de 31 de Dezembro, dia consagrado ao Papa São Silvestre – o primeiro  pontífice de uma Igreja livre (314-335), mas também marcada pela perseguição recente, pela procura de identidade no contexto de uma sociedade que se renovava e até por alguma inexperiência com a liberdade acabada de conquistar – partia deste mundo o […]

Notícias de Viana
5 Jan. 2023 12 mins
BENTO XVI: “Uma caixa de surpresas… até ao fim”

Na madrugada de 31 de Dezembro, dia consagrado ao Papa São Silvestre – o primeiro  pontífice de uma Igreja livre (314-335), mas também marcada pela perseguição recente, pela procura de identidade no contexto de uma sociedade que se renovava e até por alguma inexperiência com a liberdade acabada de conquistar – partia deste mundo o Papa-Emérito, Bento XVI. Colocarmo-nos perante uma personalidade da sua grandeza é um desafio que se pode comparar um pouco às proporções de uma sua biografia que tenho diante de mim ao escrever, um volume de cerca de mil páginas; mas ao mesmo tempo, uma personalidade e uma vida que se podem resumir nas palavras com que ele traçava as grandes linhas do seu pontificado: “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo: Jesus Cristo», (BENTO XVI, Encíclica “Deus caritas est”). Foi este o motor de um verdadeiro “Cooperador da Verdade”, algo que ele assumiu desde que, estudante, mergulhou a fundo nos escritos de Santo Agostinho, como professor em várias universidades, perito do Concílio Vaticano II e assistente do seu Bispo o Cardeal Frings, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Pontífice Máximo, e ainda nos quase dez anos que se seguiram à sua resignação.

A minha proximidade a Bento XVI decorre do facto de a sua vida e obra coincidirem em grande parte com o itinerário de vida que venho percorrendo: nasci quando ele começava a dar as primeiras aulas, comecei a estudar Teologia lendo textos dos mesmos autores que ele cita como professores e colegas, de Romano Guardini a Alfred Läple, de Karl Barth a Karl Rahner ou Hans Urs von Balthasar; de Michael Schmauss a Yves Congar ou Henri de Lubac, sem esquecer os protestantes Rudolph Bultmann, Jurgen Moltmann, Jean Baptist de Metz, ao lado Bernhard Häring ou Walter Kasper. Até parecia que me sentava  nos mesmos bancos. Iniciávamos o estudo da Teologia com um livrinho dele, ainda em língua castelhana, intitulado Introducción al Cristianismo, onde se encontra a que eu considero melhor interpretação do Credo “Símbolo dos Apóstolos”; estudei por uma monografia teológica a sua Escatologia, iniciando-me numa matéria que me haveria de acompanhar pelos tempos fora; era então introduzido na vida e obra de um autor que faria definitivamente parte do meu mundo no campo da Teologia e, mais tarde, até da música; li e reli Introdução ao Espírito da Liturgia; depois, livros, artigos, discursos, conferências dessa referência incontornável em que se tornou Joseph Ratzinger.

Recordarei para sempre a imagem, tão referida nestes dias, do homem tímido que atravessava a Praça de São Pedro todas as manhãs, vestido de clergyman, boina basca enfiada na cabeça, uma pasta debaixo do braço, num caminhar um tanto vacilante, à “Charlot”, perante a qual um colega me dizia: olha, aquele é o Ratzinger!… As suas homilias, que escutei por várias vezes, revelavam aquele exemplo de mestre que haveria de transparecer na Exortação Apostólica “Verbum Domini”, um mestre que não só ensinava a doutrina, mas ainda o modo de fazer um boa homilia… com uma clareza de expressão que me permitia compreendê-lo até no meu incipiente alemão. Nos tempos controversos da sua missão de Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, procurou ser sempre esse “Cooperador da Verdade”, mas consciente de que “a verdade entende-se como uma sinfonia, de acordo com um conceito muito caro aos antigos Padres da Igreja, e a unidade entende-se como comunhão na verdade, onde as diferenças não se decompõem nem se autoisolam em particularismos ruinosos, mas se solidificam numa reciprocidade de amor que olha sempre ao bem maior, isto é, à verdade plena, total e harmónica. Quando estes pressupostos faltam, a aproximação à verdade torna-se uma ‘monofonia’ em vez de ser uma ‘synphonia’, uma manifestação de vozes independentes, isoladas em si mesmas, em vez de todas as vozes contribuírem para a unidade e harmonia de um canto único”. Tornou-se então “uma espinha cravada nas costas do homem pós-moderno” (Georg Gänsvein), mas foi sobretudo alguém particularmente atento aos “sinais dos tempos”, uns tempos difíceis que anteviu com admirável clarividência, apontando perigos, denunciando erros, tentando já escalpelizar na Igreja as feridas que se haveriam de manifestar nos tempos mais recentes. A forma como ele vivia a condição de responsável pela Doutrina da Fé pode compreender-se por este facto que presenciei: num colóquio com o Cardeal Ratzinger, realizado no Colégio Português, em Roma, nos inícios dos anos 90, foi-lhe colocada a questão da demora na publicação do Catecismo da Igreja Católica, de cuja elaboração ele era o principal responsável; a sua resposta foi simples: “Vocês não imaginam quão difícil é escrever uma frase que possa ser traduzida em todas as línguas do mundo sem possibilidade de equívocos!…” Como portugueses, devemos-lhe a leitura teologicamente mais esclarecida da Mensagem de Fátima, publicada aquando da visita de João Paulo II e da revelação do chamado “terceiro segredo”, no ano 2000.

Nas meditações escritas para a Via Sacra do Coliseu, no ano de 2005, sem imaginar que poucas semanas depois seria ele o Papa, escrevia, como que resumindo as razões das suas lutas e tomadas de posição: “olhando a história mais recente, podemos também pensar como a cristandade, cansada da fé, abandonou o Senhor: as grandes ideologias, com a banalização do homem, que já não crê em nada e se deixa simplesmente ir à deriva, construíram um novo paganismo, um paganismo pior que o antigo, o qual, desejoso de marginalizar definitivamente Deus, acabou por perder o homem”. E, um pouco mais adiante, escutávamos estas palavras terríveis, que poucos retiveram e creio que ninguém percebeu no seu pleno significado: “Quão pouca fé existe em tantas teorias, quantas palavras vazias!… Quanta imundície há na Igreja, e precisamente entre aqueles que, no sacerdócio, deveriam pertencer completamente a Ele! Quanta soberba, quanta autossuficiência!”.

Falecido, pouco depois, o Papa João Paulo II, de quem Joseph Ratzinger fora o anónimo colaborador que já se adivinhava então, veio a surpresa – talvez mais para um mundo distraído do que para aqueles que conheciam o seu itinerário – da sua eleição papal. Isto porque, nas palavras do Card. Joseph Tomko, “era preciso ver o modo maravilhoso com que ele orientava as congregações gerais que precederam o Conclave e depois… aquela homilias!” Aquando da celebração do início do seu pontificado, surpreendeu o mundo ao colocar o grande painel com o Cristo Bom Pastor como referência, “fazendo resplandecer a luz de Cristo e não a luz do Papa”. O seu pontificado, nas palavras do jornalista Andrea Tornieli, assentava na convicção de que “o cristianismo é encontro com a beleza, é a possibilidade de uma vida mais autêntica, mais bela, mais entusiasta. O cristão não rejeita nada do que é verdadeiramente humano, não tem de renunciar a algo, mas encontra uma vida mais plena”.  Em Bento XVI, encontramos a surpreendente expressão de humildade que contrasta claramente com a imagem deturpada que dele foi sendo construída, nomeadamente quando teve que enfrentar aqueles “teólogos e pastores que se aventuravam a anunciar a morte de Deus e a considerar a Igreja como uma espécie de parlamento que tudo poderia mudar sem qualquer referência a Cristo ou à presença do Espírito Santo e à tradição católica”. O professor de Teologia, o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, sente-se agora, verdadeiramente, chamado a “confirmar os seus irmãos”, através de um processo de “reforma silenciosa” que assume em plenitude e com convicção: nas suas Alocuções, apresenta os fundamentos da Fé, olhando o passado como alicerce do futuro: Catequeses sobre os Apóstolos (2006), Catequeses sobre os Santos Padres (2007), Catequeses sobre São Paulo (2008-2009), Catequeses sobre as Santas (2010) são preciosidades a reler. As três encíclicas versam sobre as virtudes teologais: Deus é Caridade, Salvos na Esperança e A Luz da Fé. A clarividência com que ele lia o presente e antecipava o futuro encontra-se especialmente presente na Exortação Apostólica “A Caridade na Verdade”. Ali, onde “une, num discurso coerente, os fios singulares da mesma teia com que seus predecessores imediatos construíram uma nova túnica sem costura” (EDUARDO LOURENÇO O diálogo de Bento XVI com Paulo VI em “Caritas in Veritate”), refere as grandes causas da crise económica de 2008, causas que haviam sido já por ele intuídas, mais de vinte anos antes, numa conferência em que afirmava: “O desenvolvimento dos sistemas económicos que se oriente para o bem comum, depende de um determinado sistema ético que, por sua vez, apenas pode nascer e apoiar-se em fortes convicções religiosas. Em consequência, torna-se óbvio que o declínio de tais sistemas pode conduzir actualmente ao colapso das leis de mercado”. (RATZINGER, Market Economy and Ethics (1986). O liturgista de Introdução ao Espírito da Liturgia, incarna em si mesmo a “arte de celebrar” e explica-se nas Exortações Apostólicas “Sacramentum caritatis” e “Verbum Domini”.  Na trilogia, Jesus de Nazaré, regressa ao professor, quase ao catequista, oferecendo-nos, no primeiro volume o que eu considero um dos melhores comentários às Bem-aventuranças e ao Pai Nosso, de toda a literatura teológica; no segundo volume, faz um estudo tão claro quanto profundo da “cronologia” dos acontecimentos da Paixão do Senhor; no terceiro volume, oferece uma leitura inocente e bem disposta dos Evangelhos da Infância, de que a opinião pública de então apenas reteve a “expulsão da vaca e do burro das figuras do Presépio”…  Nele podemos apreciar “os discursos brilhantes, capazes de refrescar a razão e aquecer os corações; a riqueza linguística; a honradez da análise; a infinita paciência no momento de escutar; a nobreza da forma que ele incarna como mais ninguém na Igreja” (Peter Sewald). A produção escrita  de Bento XVI é monumental, não só pela quantidade, mas sobretudo pela qualidade. Já publicada a Opera Omnia, em 16 grandes volumes, só os escritos sobre Liturgia e Música Sacra ultrapassam as oitocentas páginas. Aquele a quem chamaram “o Mozart da Teologia” oferece-nos uma escrita que é um pouco como a boa música ou a comida requintada: é preciso aprender a apreciar; a grande maioria das pessoas gosta do fácil, do imediato, do acessível do atraente, do facilmente descartável… Ele é um verdadeiro Doutor da Igreja, dotado da cultura abrangente e do prestígio apenas comparável à de pontífices como Leão Magno (séc. V)  e Bento XIV (séc. XVIII), deixando-nos um legado preciosíssimo, como Papa, como Cardeal, como Professor de Teologia, alguém que conhecia, amava e apreciava a música com um sentimento de criança, ao tocar Sonatas de Mozart nos momentos de descontracção.

Durante a viagem de Roma para Lisboa, no dia 11 de Maio de 2010, acontecimento que o biógrafo Pablo Blanco assume como o ponto de viragem no pontificado de Bento XVI, iniciando o processo que o levaria à resignação, reconhecia que “a maior perseguição à Igreja não vem de inimigos de fora, mas nasce do pecado da Igreja”. Chegado a Portugal, ao peregrinar por Terras de Santa Maria, encontrou-se com “um país tradicionalmente católico, o segundo mais católico da Europa, mas agora visto como um país em descrença crescente tendo diminuído dez por cento de praticantes em dez anos”, mas, para  a enorme “surpresa de quem o não conhecia verdadeiramente”, era acolhido com um entusiasmo e um calor que haveriam de lhe elevar um pouco o ânimo para enfrentar os tempos difíceis que encontraria pela frente e que conduziriam mesmo à sua resignação.

No início do seu pontificado, tive oportunidade de escrever para a Revista “Flor de Lis” do CNE, umas palavras que intitulei “Bento XVI, Expectativa, surpresa, esperança”. Creio que as mesmas poderiam definir agora os contornos do seu pontificado e do seu legado, para todos aqueles que tiverem a coragem de mergulhar no seu pensamento, procurar perceber as razões dos seus gestos e atitudes, porventura considerados mais controversos, ou interpretar cuidadosamente as suas tomadas de posição mais radicais, indo até à inesperada resignação. No final do dia do falecimento de Bento XVI, a liturgia vespertina da Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus presenteava-nos com uma explosão de “bênção”, das Leituras ao Salmo Responsorial: “Deus se compadeça de nós e nos dê a Sua bênção; resplandeça sobre nós a luz do Seu rosto” (Salmo 66). Bento, “Benedictus”, foi precisamente a personificação dessa “bênção” que, desde meados do séc. XX, vem fazendo “resplandecer sobre nós o rosto de Deus”.

Fotografia: Arlindo Homem do Santuário de Fátima

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