Laborinho Lúcio: “Hoje, tornámos o tempo instantâneo e, ao fazê-lo, matámo-lo como valor”

Álvaro Laborinho Lúcio tem 82 anos e foi um dos oradores da conferência «Quem é o meu próximo?», que integrou as Jornadas Diocesanas de Pastoral da Diocese de Viana do Castelo.

João Basto
5 Jan. 2024 15 mins
Laborinho Lúcio: “Hoje, tornámos o tempo instantâneo e, ao fazê-lo, matámo-lo como valor”

Mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e magistrado de carreira, é juiz-conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça.

De janeiro de 1990 a abril de 1996, exerceu, sucessivamente, as funções de Secretário de Estado da Administração Judiciária, de Ministro da Justiça e de deputado à Assembleia da República. Entre março de 2003 e março de 2006, ocupou o cargo de Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores.

Com intensa atividade cívica, é membro dirigente de várias associações, entre as quais se destacam a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) e a CrescerSer – Associação Portuguesa para o Direito dos Menores e da Família, de que é sócio fundador.

Tem-se dedicado à ficção com a publicação de livros e, recentemente, foi distinguido com o Prémio Envelhecimento Ativo na categoria de Intervenção Social.

(NdV): Aquando da publicação do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa, houve uma polémica sobre os alegados abusadores. Aliás, chegou a admitir, numa entrevista, que “deixou de se discutir o relatório e se passou a focar numa lista de nomes”. Quase um ano depois, consegue encontrar insuficiências do trabalho desenvolvido pela Comissão, e de como ela lidou com a comunicação social?

(LL): Tenho alguma dificuldade em avaliar as situações decorrido um ano, porque dei por encerrada a minha atividade. Apresentámos o relatório e, depois, de termos sido chamados para esclarecer alguns pontos que foram colocados em dúvida, saí de cena. Entendi que tinha sido chamado para aquela missão. Desenvolvi-a como soube. Não era perito nessa área. Tinha uma competência no âmbito da Comissão.

Cada um foi chamado pelas competências que tinha nas respetivas áreas, e desempenhámo-las e dentro do tempo estipulado pela Conferência Episcopal Portuguesa. Portanto, não faço juízos à distância, nem como as coisas estão hoje. Deixo isso para outro tipo de comentário e de pessoas que queiram avaliar o que está a ser feito. É uma interpretação minha e, no meu caso, não devo prosseguir atento a essa matéria, porque estas coisas têm o seu tempo. Esgotam-se e deixamos de nos preocupar particularmente com elas. No entanto, julgo que isso ficou esclarecido. Houve um debate muito significativo nesse tempo e divisões, nomeadamente, no seio da Igreja. Julgo que aquela conferência dada pela Comissão Independente e pela Conferência Episcopal, no dia 03 de março, não correu bem. Não importa agora escalpelizar as razões. 

Entregámos aquela lista. Esclarecemos o que se passava. Não havia dúvidas do seu significado. As coisas foram apresentadas numa dimensão diferente, criando o bulício, mas, que, julgo, esclarecemos no tempo devido. Depois, essas coisas entraram num clima de compreensão, porque não introduziram nenhuma má-fé na forma como aquela conferência foi feita. O que importa é que, através da aplicação de várias recomendações e da sua concretização, deixámos no relatório, nomeadamente, a instituição de uma Comissão que está a trabalhar. Agora é dar tempo e espaço para que essa Comissão possa funcionar bem, para que as outras recomendações sejam aplicadas ou concretizadas. Precisamos de encontrar um caminho que nos permita alimentar uma esperança que há, pelos menos, uma consciência do problema, da sua dimensão e da necessidade de introduzir progressivamente modificações que permitam evitá-lo para o futuro.

(NdV): Mesmo não fazendo uma análise com tempo, a Igreja foi, talvez, a instituição de Portugal que mais escrutinada foi a este respeito. Houve a promessa, por parte de outras instâncias civis, que outras o seriam. No entanto, passou um ano, e ainda não houve processos noutras instituições. O que está a falhar?

(LL): Não sei se está a falhar ou não. Continuo a ter um olhar de retaguarda. Gostaria que fosse mais visível o que, eventualmente, pode estar a ser feito. O que aconteceu foi que, uma das recomendações que fizemos, foi a de que fosse constituído um espaço, um grupo, uma Comissão ou o que quer que seja, e, à semelhança daquela que constituímos, alargar-se agora o estudo para fora da Igreja e dirigir-se para a sociedade em geral, nomeadamente, para instituições da área do desporto. Mas não só, incluindo outros domínios em que estas situações podem ocorrer também.

O que nos foi dito pelos membros do Governo contactados na altura, é que essa competência seria cometida à Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens. Presumo que terá acontecido isso. Neste momento, ainda não há notícia sobre o trabalho desenvolvido, mas espero que esteja a ser organizado, ou já a ser desenvolvido, sem ainda haver resultados que possam ser comunicados.

Agora, o que espero, é que não se deixe cair a situação. Não se abandone o problema, porque ele existe. Não se desista, evidentemente, da necessidade de termos um estudo sério sobre o que se passa na sociedade portuguesa e, em particular, nas instituições, e encontrar, depois, caminhos que permitam que não fiquemos apenas com esta problemática, desde logo criando uma leitura errada de que só na Igreja estes assuntos têm relevo. Isso seria errado porque, nem a Igreja merece que se pense assim, nem isso permitiria haver qualquer tipo de intervenção nos outros espaços, onde também estas violações vão acontecendo. Agora, a Igreja tem o mérito de ter sido aquela que teve a iniciativa de pedir o estudo que a Comissão Independente fez e, por isso, é um pouco estranha a primeira reação que a Igreja teve contra os resultados do estudo que tinha “encomendado”, mas rapidamente se compreendeu, dentro da Igreja, que não havia motivo para colocar algumas questões que foram levantadas. No final, as coisas seguiram as suas circunstâncias naturalmente.

(NdV): Há uns anos, participou numa conferência no Seminário de Braga. A sua frase final acerca de uma questão sobre o transhumanismo, foi: “nós não podemos pensar em transhumanismo, se todos ainda não chegámos ao patamar de sermos humanos”. Hoje, o que ainda falta para isso?

(LL): Continua a faltar o mesmo. O que me parece é a ânsia do chamado “progresso”… Hoje, até, curiosamente, se fala menos de progresso e fala-se mais em inovação. E gosto de distinguir a inovação de novidadismo. Novidadismo é a ideologia da novidade. Tudo o que é novo, é bom. Eu não adiro a esta perspetiva. Adiro à inovação porque alimenta o progresso e determina que eu, cidadão, e todos os cidadãos, tenhamos uma dimensão crítica relativamente ao progresso. É isso que nós queremos. Não é “qual a limitação que lhe devemos impor” ou “se este é o momento a avançar, ou não”. Tudo isto são questões que temos de colocar, porque somos postos diante de escolhas que determinam essa evolução e progresso.

Quando falamos da transhumanidade ou pós-humanidade, são conceitos. O que me preocupa, é se embarcamos rapidamente neste sentido e abdicamos da ideia de trazer ou de limitar mínimos da condição humana. Muitas pessoas nascem, vivem e morrem sem nunca ter chegado ao limiar da condição humana. Isso é que julgo que, eticamente, nos deveria interpelar. Há muito de humano aí a construir. 

Há muitas pessoas que não têm possibilidade, sequer, de ter a consciência e vivência de si próprios, enquanto nós andamos entusiasmadíssimos com o pós-humano ou outro. Talvez possam esperar para que, nomeadamente aqueles que chegam ao pós-humano tenham, pelo menos, a experiência do humano que, verdadeiramente, não chegaram a atingir.

(NdV): Esta reflexão que faz não tem a ver com a obra de Kafka (“A metamorfose”)?

(LL): Kafka é ainda mais atual hoje do que foi no seu tempo porque, na altura, surgia muito ligado às correntes do realismo. Daí, a maneira formal nos temas que tratava.

Hoje, julgo que estamos plenamente a viver aquilo que poderíamos extrair da sua obra: perder a dimensão realista e passar-se a ser uma pós-realista o que, na altura que Kafka a escreveu, não havia. Hoje, tornámos o tempo instantâneo e, ao fazê-lo, matámo-lo como valor. O tempo, como espaço de reflexão e contemplação. Neste encontro, por exemplo, falámos de espiritualidade. A espiritualidade precisa de tempo, perguntas e construção e avaliação de valores, conformação de identidade para, depois, podermos viver coerentemente conforme essa identidade. Quando estamos num tempo instantâneo, nada disto acontece. O que vale, é o que vale naquele momento; no dia seguinte, vale uma coisa diferente. Nesta medida, vamos deixando que as coisas nos escapem completamente entre as mãos, e introduzimos uma ideologia do presentismo. O passado mata-se, para não nos criar uma dificuldade de compreensão. O futuro abandona-se, porque não temos possibilidade de o definir, uma vez que não sabemos o que vai acontecer amanhã. Portanto, o presente é que conta.

É muito curioso que, na linguagem popular, nomeadamente da juventude, mas não só, vamos encontrando muito a expressão «um dia de cada vez». Ou seja, o presente é que importa. Em cada manhã podemos perguntar o que somos, se somos uma abelha, aranha, ou nós próprios. Ao mesmo tempo que não encontramos particulares dificuldades, porque todas as dificuldades de hoje podem não ser as de amanhã, e perdemos o pensamento crítico, que é aquele que gere realidades novas e nos fazem comprometer com elas. Instala-se um pensamento único. Todos nós, no fundo, deixamos de pensar, porque pensamento único é ausência de pensamentos, e vamos vivendo apenas estimulados por inputs exteriores, que fazem de nós alguém que não tem poder sobre tudo isto. É um pouco esta sociedade que está entre nós, e era nisso que valia a pena refletir profundamente.

(NdV): Eduardo Lourenço, em «O labirinto da saudade», elege um conjunto de traumas emocionais e, quando escreveu «As sombras de uma azinheira», falou da vida marcada por dois traumas: a morte e o isolamento. Portugal é um país traumatizado? É, até o próprio 25 de abril, um evento traumático, apesar de o festejarmos?

(LL): Eduardo Lourenço refere o trauma, estruturado a partir da independência. É um filho que mata a mãe para garantir a independência. Esta mesma aproximação é referida pelos mesmos termos por Alçada Batista em «Peregrinação interior», em que ele diz que «Portugal vive de trauma em trauma», inclusivamente quanto ao próprio 25 de abril. Nesta medida julgo que sim, porque uma revolução é sempre traumática e, por isso, é importante sairmos do que estamos a falar, porque ligamos ao trauma o lado patológico (doença, gravidade). O trauma é um acontecimento de rutura e aqui, é um trauma bom, que se repercute no passado, por aquilo que era, e que abre uma esperança, pelo futuro.

No romance «As sombras de uma azinheira» o que pretende dizer é que nós, ao marcarmos o 25 de abril, o trauma aparece como um símbolo de uma realidade simbólica que justifica o romance e o seu desenvolvimento, mas, aí, podemos dizer que o trauma nos atira para um Portugal antes do 25 de abril, e para outro, depois do 25 de abril. O que vem depois do 25 de abril, protagonizado pela Catarina, que nasceu nesse mesmo dia, o que pretende dizer, é que não vale a pena compararmos o Portugal que somos depois do 25 de abril com o Portugal que éramos antes. Realmente, essa comparação é muito pobre. Por vezes, atinge níveis de imoralidade, porque não há comparação possível entre o bem e o mal em Portugal com todas as dificuldades que tem, e o Portugal antes do 25 de abril. Agora, entendo que há uma comparação absolutamente necessária que devemos fazer, uma vez que nos aproximamos dos 50 anos. É uma comparação entre o Portugal que somos e o Portugal que poderíamos ter sido e, depois, entre o Portugal que somos e o Portugal que queremos que seja nos próximos 50 anos. Julgo que são estas duas comparações que se devem colocar ao nosso espírito crítico, exatamente na celebração destes 50 anos.

A Catarina é, ao longo destes 50 anos, aquela que nasceu no mesmo dia. Ela nasce para a luz quando exista aquela sombra ou aquela madrugada, como disse Sophia de Mello Breyner, mas tem dúvidas e inquietações. Ela celebra o seu nascimento e o 25 de abril, mas está menos interessada nas celebrações festivas e mais interessada nas respostas às questões fundamentais sobre quem sou eu, o que estou aqui a fazer, e o que quero ser daqui para a frente.

(NdV): Tinha razão o professor José Mattoso quando, no último volume da história de Portugal, intitulou Portugal como «país em transe»?

(LL): Sim, e é muito interessante que isso venha de um historiador que nos ensinou, na sua escrita histórica, por exemplo, que “para conhecermos verdadeiramente os factos históricos temos que estabelecer com eles uma relação amorosa”. Ou seja, uma relação contemplativa e, ao mesmo tempo, o prazer da investigação e de ir ao encontro dele e estabelecer essa relação. Ora é o mesmo professor José Mattoso, quando fala em Portugal como um país em transe, que cria este conceito para uma avaliação histórica que nos dê a dimensão de continuidade. Não de esteticismo da avaliação histórica, mas de permanente continuidade.

(NdV): Passados 50 anos do 25 de abril, criou-se no senso comum e na existência dos portugueses, enquanto sociedade, a noção da importância, por exemplo, do Estado de Direito?

(LL): Uma das grandes questões que estamos a viver, com sintomas que geram verdadeira preocupação, é que falamos estaticamente dos direitos humanos e do Estado de Direito. Mas, nunca fizemos grande coisa para banalizar o Estado de Direito e os direitos humanos, em termos de conhecimento. Nunca os levámos ao conjunto dos cidadãos e das cidadãs. Foi sempre uma matéria que preenche o discurso das elites, dos agentes políticos e de um determinado grupo de intervenientes da sociedade. Mas as massas populares, como tal, não têm nenhuma ligação direta, nem aos direitos humanos, nem ao Estado de Direito e, muitos deles, se fossem levados a referendo, seriam negados, porque os direitos humanos e o Estado de Direito têm regras que, muitas vezes, determinam alguma menor eficácia na tomada de decisão seja macro-decisão, em termos políticos, seja micro-decisão, em termos emocionais. E, por isso, é que não devemos prescindir da importância da eficácia. Temos de a compreender como um valor de segunda ordem. Diria que o Estado que desvaloriza os valores da primeira ordem, do mesmo grau, em nome da eficácia, é um Estado que caminha para uma autocracia que é, claramente, mais eficaz que a democracia. Portanto, precisamos de vulgarizar/banalizar, ao nível do conhecimento dos cidadãos, o que é o Estado de Direito, o que são os direitos humanos, as lutas que se travaram por eles, e a absoluta necessidade de continuarmos na luta por eles. Se me perguntarem qual o estado da arte hoje, não sou um otimista em relação a isto, porque enchemos a boca disso, cada vez mais falamos disso, e tomamos decisões sobre isso, que põem em causa quer os direitos humanos, quer o próprio Estado do Direito.

(NdV): Citando uma obra sua, «a liberdade continua a ser um beco»?(LL): Não gostaria de adjetivar a liberdade, porque gostaria de a considerar como um valor absoluto, e os valores absolutos, quando são levados à convivência social, tendem a encontrar limitações que se impõem para poderem, depois, serem valores de convivência social. Nessa medida, a questão que coloco é até que ponto, ao ter constituído uma ordem social e, portanto, um quadro de normas que diz aos cidadãos como devem regular-se em sociedade, me leva ao ponto de esquecer a condição humana verdadeiramente, que só se conhece no caos. Não é a ordem que nos diz a condição humana. A condição humana pré-existe à própria ordem, e não é a ordem que altera a condição humana. A ordem regula o modo como se vive a condição humana em sociedade. Se, a certa altura, abandonarmos o conhecimento que é cultural do que é a condição humana e, se a deixarmos levar ao caos, vamos cada vez mais afunilando as comunidades no sentido da simplicidade e regulação. Nós temos de viver, revisitar e sermos capazes de integrar a complexidade no nosso quotidiano. É nesta medida que podemos ter, ou uma liberdade de pensamento e de ação, ou, então, viver num beco onde a liberdade que nos é dada tem paredes/limites e nós sabemos que não podemos passar delas. Isto é importante do ponto de vista da convivência social, mas não é importante do ponto de vista da compreensão da condição humana.

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