Dois homens realizaram uma viagem. Durante todo o tempo o primeiro vê a viagem como uma peregrinação para a cidade celeste, interpretando todos os momentos agradáveis como encorajamento, e todos os impedimentos como prova. O segundo não acredita em nada disso, compreendendo a viagem como qualquer outra e sem qualquer objetivo. Não se alegra nos […]
Dois homens realizaram uma viagem.
Durante todo o tempo o primeiro vê a viagem como uma peregrinação para a cidade
celeste, interpretando todos os momentos agradáveis como encorajamento, e todos
os impedimentos como prova. O segundo não acredita em nada disso, compreendendo
a viagem como qualquer outra e sem qualquer objetivo. Não se alegra nos bons
momentos e resigna-se aos maus momentos, questionando, especialmente nos maus,
a alegria do primeiro. A discussão entre os dois nem se coloca nas experiências
mais ou menos agradáveis, mas na discussão do sentido da mesma e do paradoxo
que ela representa. Quando chegarem à última curva ver-se-á que um tem razão e
o outro não (J. Hick).
A verificação escatológica é
correta, todavia, o cristianismo reclama uma certa base de experiência
verificável que torne o paradoxo menos incompreensível, e essa base da
experiência é Jesus de Nazaré (E. Schillebeeckx). Antes da última curva temos
uma penúltima, aquela que ao virar o muro da cidade santa de Jerusalém sobe
para o calvário, passa pela cruz e desce ao silêncio e à noite mais escura do
sepulcro. Antes dessa penúltima muitas outras curvas e retas, com que Jesus,
Verbo de Deus incarnado, preencheu a sua vida no meio dos homens, com palavras
e ações, que a liturgia concentra no modo mais excelente nesta sexta feira
santa, e que compreende pelo menos desde o estridente barulho dos ramos até ao
absoluto silêncio do sepulcro. Ao caminharmos para a última curva percebemos
que esta não nos dá a evidência que precisamos para desfazer o paradoxo, pois
esta curva, a da ressurreição, não é suficiente para dar razão a um dos
viajantes, é uma curva demasiado grande, que começou naquela manhã de páscoa e,
até agora, levou dois mil anos a travessar.
Num tempo em que se fala de curva,
aquela do pico da epidemia, dos contagiados, dos que morrem, contemporaneamente
entramos na liturgia do silêncio. Ao contrário de outros anos, este é diverso,
pois a divina providência, analogamente à paixão de Jesus, impôs sobre o mundo
a primeira e única quaresma a ser vivida de forma verdadeira. O nosso Getsémani
começou numa espécie de quarta feira que substituiu as cinzas pela quarentena.
Fomos obrigados ao jejum do abraço, do calor da família e do regresso a casa.
Fomos constrangidos a entrar no silêncio do quarto para a oração mais intensa,
fora das praças, somente diante do Pai. Tivemos de lutar contra a tentação de
sair à rua, não só por nós, mas por caridade com os outros, com todos aqueles
que potencialmente podemos contagiar. Como Jesus na véspera da sua Paixão, o
medo toma conta de nós, a situação é inédita, ninguém está preparado, somos
servos sofredores, indefesos e obedientes às regras impostas, somos passivos
diante do paradoxo, não abrimos a boca porque não há muito a dizer, impotentes
diante de uma realidade que tem de ser.
No fundo somos viajantes, numa
viagem que neste tempo se tornou confusa. Aqueles que viajam sem objetivo
perguntam, desinteressadamente, onde está Deus, porque inflige a humanidade desta
forma, aquela pergunta fácil, que descarta a responsabilidade de todos os outros
dias da viagem. Os viajantes que sabem para onde vão procuram timidamente
responder que Deus está ali, mesmo ao lado, nos enfermeiros e médicos, nas
autoridades, nas varandas onde se canta a esperança enquanto se anuncia o
número de mortos. Todavia, mesmo para os viajantes que sabem o destino da
viagem, a última curva é demasiado grande, e os vários paradoxos são difíceis
de aceitar. O paradoxo da terceira idade, que se torna cada vez mais um
obstáculo social, colocada em instituições para esconder o problema, tornou-se
o centro das nossas preocupações. O paradoxo do virtual, que se torna cada vez
mais o refúgio das novas gerações, tornou-se insuficiente devido ao jejum do
abraço e do calor humano (J. Duque). O paradoxo do silêncio de Deus faz-nos
perceber, como cristãos, um certo fatalismo ativo, pois devemos viver como se
tudo dependesse de nós e, ao mesmo tempo, colocarmo-nos de joelhos como se tudo
dependesse de Deus (A. Camus). O paradoxo da sociedade científica e técnica,
que realiza maravilhas nunca alcançadas, e é completamente impotente diante um
inimigo invisível e silencioso, que alastra sem pedir licença.
Todavia, e apesar de toda a
incompreensão, o maior paradoxo de toda a história da humanidade é vivido hoje,
no servo sofredor de Isaías, no sumo sacerdote da carta aos hebreus, na cruz
que une verticalmente o homem a Deus e horizontalmente os homens todos na mesma
viagem. Como aparentemente Deus se afastou da humanidade, assim aparentemente
Deus se afastou de Jesus Cristo. O silêncio de Deus diante do nosso sofrimento
é o mesmo silêncio de Deus diante do absurdo da cruz, lugar em que Jesus se fez
pecado e maldição por nós (2Cor 5,21). Como a culpa que jogamos uns para os
outros, de países para países, assim a culpa que todos reconheciam fez andar
Jesus de mão em mão, pois ninguém queria assumir a responsabilidade do
inocente. Jesus tinha de ser entregue pela humanidade inteira, para a
humanidade inteira salvar: entregue pelos judeus, de Anás a Caifás e ao
sinédrio. Entregue pelos cristãos, a começar por judas, pelos discípulos que
fogem desesperadamente, por Pedro que o nega deliberadamente. Entregue pelos pagãos,
representados por Pilatos, que sabe a verdade, mas lava as mãos de uma verdade
que finge não conhecer. Enfim, entregue por Deus, que não poupa o seu próprio
Filho, transportando o sofrimento da cruz até à eterna paternidade, pois no
último suspiro do Filho, Deus deixa de ser Pai (S. Bulgakov).
Quando perguntamos sobre o silêncio
de Deus, perguntamos sobre o paradoxo da cruz, da salvação. O sofrimento e o
silêncio são a identidade primeira do cristianismo, no absurdo da cruz,
incompreensibilidade humana de uma salvação que se fez gratuita, para a qual
Deus não nos pediu licença. O silêncio do Pai diante do drama dos
acontecimentos no alto do calvário, dá lugar à constituição da Igreja, do lado
aberto e trespassado, qual fonte inesgotável. O silêncio do Pai dá lugar ao
silêncio do Filho, que desce ao silêncio mais ensurdecedor, aquele do sepulcro,
da solidariedade com aqueles que morreram, especialmente daqueles que recusaram
o amor de Deus. O silêncio do Filho dá lugar ao silêncio do Espírito, que age
sobre nós, inclusive nos momentos de maior escuridão da nossa vida.
E nós? Enquanto vivos continuamos a
afirmar que tudo ficará bem. Habituamo-nos a pensar a ressurreição como uma
esperança vazia, porque sabemos que vai acontecer. Habituamo-nos ao conforto da
última curva. Estamos habituados a pensar Cristo como aquele que triunfou da
morte, esquecendo o profeta crítico que abalou todas as estruturas sociais do
seu tempo e que o conduziu à morte. Crítico ao ponto de ser condenado. É ali,
na cruz, o lugar do cristianismo, a nossa identidade, a nossa salvação, que vai
da crítica à condenação. Somos cristãos com Cristo, de modo que temos de estar prontos
para com Cristo descer à sepultura. A morte é a maior manifestação do amor, de
modo que hoje, mais que nunca, temos de ser dispostos a morrer com Cristo, a
ser inseridos na sua morte. O nosso cristianismo somente pode florir “sobre o
sepulcro de Deus que morreu por mim, (onde) afundo as minhas raízes no terreno
da sua carne e do seu sangue. Por isso, o amor que trago na fé não pode ser de
natureza diversa daquele do sepulcro” (Balthasar).
Tudo ficará bem. Depois do silêncio
do sábado haverá um silêncio diferente, aquele do sepulcro vazio. Novo, maior e
mais surpreendente paradoxo. Os discípulos voltam a reunir-se animados pela
graça do ressuscitado, sentem que Jesus continua a oferecer aquela comunhão que
ofereceu em toda a sua vida, inclusive às portas de uma Paixão já evidente,
comunhão que nem a morte pode fazer desaparecer. E nós, flores da criação de
Deus, afundamos as nossas raízes nos acontecimentos da Paixão, e descobrimos
que este florescer para a santidade é possível somente no abandono total ao
amor divino (Santa Teresa do Menino Jesus). Estamos todos na mesma barca, na
mesma viagem, na última curva, na grande curva que vai da ressurreição à
parusia. Na impossibilidade ainda de ver a cidade celeste, nas dificuldades que
a última curva representa, ainda combalidos pela penúltima curva, sabemos que
não estamos sozinhos, pois anima-nos o Espírito do Ressuscitado, qual Igreja
atuante no mundo, alimentada pela lado aberto que se tornou fonte de vida
eterna, aquela vida para a qual nos predestinou o Pai, que pelo Filho abriu as
portas do jardim do paraíso, que pelo Espírito nos conduz à surgente da Graça,
tornando relativos à cruz e ao sepulcro todos os acontecimentos da nossa vida,
bons ou maus, porque depois da cruz e do sepulcro nada, mas absolutamente nada,
nos poderá separar amor de Deus (Rom 8,35).
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