O pontificado do Papa Francisco pode ser analisado pela confluência de duas linhas, nunca independentes. (As distinções funcionam aqui mais para facilitar a compreensão). A primeira surge logo após a eleição e talvez se encerre mediaticamente em 2016, com a publicação da Amoris Lætitia. A segunda demorará mais tempo: teve um início ténue em 2014 e prolongou-se até à sua morte.
Quanto à primeira, falo do enfoque na temática da misericórdia, que vinha, aliás, expressa no seu lema episcopal. Francisco usou, aliás, repetidas vezes, em contextos mais informais, a imagem do quadro de Caravaggio, A Conversão de S. Mateus, que se encontra na Igreja de S. Luís dos Franceses, para traduzir a força da sua opção conceptual. A verdade é que o próprio Jorge Mario Bergoglio se reconhecia no papel do ex-cobrador de impostos, perdoado e redimido por Deus de maneira surpreendente. Na figura de S. Mateus, o Papa via a figura do Pe. Jorge Mario, o provincial jesuíta autoritário que agiu com extrema cautela durante a ditadura militar argentina, e que, ao ouvir confissões durante o seu “exílio” em Córdoba, despertou para a misericórdia de Deus, catapultando a conversão pastoral.
Só assim se compreende que, já nas congregações gerais, o então cardeal argentino tenha dito que “existem, em termos simples, duas imagens da Igreja: uma Igreja evangelizadora que sai de si mesma […], e uma Igreja mundana que vive em si, de si e para si”, acrescentando que “todas as mudanças e reformas imagináveis que devem ser empreendidas para a salvação das almas, devem ser vistas sob esta luz”. Para Francisco era claro: a Igreja mundana não era, necessariamente, a Igreja dos arraiais de verão, nem a dos “pecados” da própria Igreja; a Igreja mundana é aquela que vive para si mesma, de maneira autorreferencial, mesmo que no meio de orações, eucaristias e procissões. Curioso que Clemente Romano diga, a certo passo da sua Carta aos Coríntios, referindo o episódio de Caim: “Acaso não pecaste? Embora a tua oferta tenha sido correta, a tua escolha não o foi”.
A divisão não é entre conservadores e progressistas, mas entre a Igreja que vive para si mesma e aquela que sai de si própria. O que mais há a temer, neste contexto, não é o pecado, mas a falta de finalidade, a falta de “telos”, a falta de consciência de que o objetivo da Igreja não é ela própria, mas o Senhor, diante do Qual tudo se torna secundário. A imagem da Igreja como “hospital de campanha”, uma realidade acima de tudo desmontável, provisória, ganha sentido à luz desta lupa.
É neste contexto que surge o Ano da Misericórdia, um jubileu extraordinário, que Francisco proclamou em 2015, por ocasião do 50º aniversário da conclusão do Concílio Vaticano II, que ele próprio “abriu”, não em Roma, como é habitual, mas em 29 de novembro de 2015, em Bangui, na República Centro-Africana.
As propostas vindas da Amoris Lætitia, tão desgarradas que foram, ou por falta de leitura do documento original, preterido que foi face a blogs e comentários de segunda categoria, ou por reflexões teológicas à medida dos cereais do pequeno-almoço, eram, afinal, bem mais simples do que se podiam imaginar. Tinham por detrás a simplicidade de quem sab
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