Num mundo que pode parecer mais insuportável, viver poeticamente pode ser a resistência à prática (despudorada) da desumanização.
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Podemos ver, claramente, as manifestações de poder a acontecerem no mundo e é um exercício violento acompanhar os diálogos de mercado, em que a humanidade é vista através de lentes capitalistas. Virámos números. Coisas. E o ar fica saturado de ameaças, incertezas e falsidades. A impressão é de absurdidade e impotência, até porque, na vez de experimentarmos o investimento numa cultura de colaboração, sentimo-nos obrigados a sobreviver num território suspeito e conflituoso. Massimo Pigliucci, professor de filosofia, em entrevista ao Público, admite olhar o futuro com pouco otimismo e aponta o desinvestimento na ciência e na educação como a raiz do caos a que temos assistido com o novo mandato de Trump. António Damásio, neurocientista, avisa, ao mesmo jornal, que temos substituído a reflexão pelo entretenimento, o que compromete o nosso pensamento crítico e capacidade de ação, e, se não garantirmos educação, “os seres humanos vão matar-se uns aos outros” – pelo que é preciso nos apurarmos para contrariar os nossos instintos mais básicos (programados para defender primeiramente a nossa sobrevivência) e construirmos uma sociedade mais virada para a aceitação e entreajuda.
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A premissa principal: vivermos no coletivo, até porque o todo é maior do que a simples soma das partes (afirmação atribuída a Aristóteles). Como bichos de grupo, deveríamos investir no desenvolvimento social da nossa comunidade (que também nos favorece a nós) e no desenvolvimento pessoal da criatura humana que somos (para, favorecermos, também, os outros) – nesta intenção de nos ajudarmos (reciprocamente) a florescer. Como poderemos agir melhor? Como poderemos cuidar mais? Como contar a nossa história e dançar entre os triunfos e as tragédias de mãos dadas? Num mundo, declaradamente, governado por elites económicas dedicadas a contornar regras a favor dos próprios interesses comerciais, com manipulação das verdades e tentativas de limitação das liberdades, temos de nos manter humanamente alinhados e com referências humanamente inspiradoras – e, apesar da instabilidade, criar à nossa volta um chão com potencial para o florescimento. Não vale tudo. Não é cada um por si. Nem salve-se quem puder. Estamos juntos, nesta epopeia que tanto se apresenta com a maior beleza como com a mais profunda brutalidade. Não podemos consentir que a nossa cabeça (e coração) caia no abismo do medo. Nem se acostume a uma prática (despudorada) da desumanização. Tentemos nos salvar uns aos outros, seja com um abraço, um poema ou uma revolução. Viver poeticamente, ainda que possa parecer um ato de ingenuidade, não é senão um ato de resistência. Recusemos a instalação de um mundo em que não somos muito mais do que cadeiras empilháveis e descartáveis. Usemos a coragem. E a persistência. Teimemos em continuar humanos.
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“Individualmente, somos uma gota. Juntos, somos um oceano.” Ryunosuke Satoro
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Floresçamos. Juntos.
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