Padre Mário de Sousa: “O maior confinamento a que estamos sujeitos pode tornar-se em ocasião de mergulharmos com maior profundidade no conhecimento da Bíblia”

Mário de Sousa, de 50 anos, é presbítero na Diocese do Algarve e é natural de Vila Real de Santo António. Formado em Teologia pelo Instituto Superior de Teologia de Évora, é licenciado em Teologia pela Universidade Católica de Lisboa, em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, e doutorado em Teologia Bíblica pela Universidade Gregoriana de Roma. É Professor de Novo Testamento no Instituto Superior de Teologia de Évora, Diretor do Centro de Estudos e Formação de Leigos do Algarve e Presidente da Associação Bíblica Portuguesa, desde 2017. É ainda, entre outros serviços diocesanos, Pároco na matriz de Portimão. Entre outras publicações, o padre é autor de “Introdução ao Evangelho de S. João”, de “Para que também vós acrediteis. Estudo exegético-teológico de Jo 19,31-37” e de “Os encontros de Jesus no Evangelho de São João”.

Notícias de Viana
14 Jan. 2021 11 mins
Padre Mário de Sousa: “O maior confinamento a que estamos sujeitos pode tornar-se em ocasião de mergulharmos com maior profundidade no conhecimento da Bíblia”

Notícias de Viana (NdV): Substituiu D. Anacleto Oliveira na Comissão de Tradução da Bíblia. Quais pensa terem sido os maiores contributos que ele deu neste processo? 

Padre Mário de Sousa (P.M.S): Tive a graça de trabalhar de perto com D. Anacleto desde o início do projeto da tradução da Bíblia para a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), o que foi ocasião de o conhecer e de, por isso, ganhar por ele uma grande estima. E isso não apenas como académico (era, de facto, um bom biblista, apaixonado pela Sagrada Escritura e pelo trabalho que realizava), mas também como pessoa e como pastor. De facto, era muito bonito ver o carinho com que falava da Diocese de Viana e das características das pessoas do Minho. A forma como vivia o seu ministério manifestava-se também no entusiasmo com que se dedicava ao trabalho da Comissão Coordenadora, a que presidia. Para além da tradução e notas da Segunda Carta aos Coríntios, colaborou na revisão meticulosa da tradução dos quatro evangelhos e dos salmos, entretanto publicada. Por sugestão de D. Anacleto, essa edição foi ad experimentum, ou seja, aberta à leitura, achegas e sentir dos leitores, cujas opiniões fundamentadas serão tidas em conta na publicação final. Este foi um critério no qual D. Anacleto muito insistiu e que penso manifestar a sua sensibilidade sinodal.

(NdV): Qual a importância deste trabalho para a Igreja em Portugal? Qual o objetivo desta nova tradução da Bíblia?

(P.M.S): Sentiu-se a necessidade de ter uma tradução que pudesse ser usada não apenas na liturgia, mas em todos os âmbitos da vida eclesial, de modo a que o texto ouvido nas celebrações litúrgicas seja igual ao que é lido, por exemplo, numa catequese de adultos ou num documento oficial da Conferência Episcopal. Por outro lado, o texto bíblico que é usado na liturgia, não só não abrange toda a Bíblia (havendo, por isso, muitos textos por traduzir), como era necessário fazer-lhe uma revisão que colmatasse algumas omissões, corrigisse imprecisões ou mesmo erros de tradução. Tendo isto em conta, assim como a recomendação da Santa Sé para que haja uma tradução dos textos litúrgicos que abranja toda a Sagrada Escritura, a CEP considerou ser preferível realizar uma tradução de raiz, presidida por dois critérios fundamentais: primeiro, que seja o mais literal possível, no sentido de transmitir o que os textos exprimem nas línguas originais (hebraico, aramaico e grego), o que implica conhecer não apenas essas línguas, como o mundo social, religioso, cultural, etc., que elas expressam, tornando-o presente na tradução; segundo, que se tenha em conta a finalidade sobretudo litúrgica e pastoral da tradução, produzindo, por isso, um texto que seja compreensível e adequado à proclamação de viva voz.

(NdV): Quais estão a ser os maiores desafios na tradução? 

(P.M.S): O primeiro, naturalmente, é conseguir conjugar estes dois critérios que acabei de referir. Uma tradução literal e em português escorreito, de boa compreensão e proclamação, não é de fácil concretização. Os livros bíblicos foram escritos numa cultura distante e muito diferente da nossa. O nosso modo de pensar e, consequentemente, de falar e de escrever, é em grande parte fruto da filosofia grega e, sobretudo, do Racionalismo e do Iluminismo. Usamos sobretudo a linguagem descritiva, informativa. O mundo bíblico, pelo contrário, até pelas realidades transcendentes que expressa, utiliza sobretudo uma linguagem evocativa, cheia de símbolos e metáforas que, embora partindo da experiência concreta, remete para uma outra realidade que a transcende. Conservar esta riqueza metafórica e, ao mesmo tempo, fazê-lo de modo a ser facilmente percetível, exige um trabalho cuidadoso. Quando não é possível, a edição recorre às notas de rodapé, ou para apresentar a tradução literal, ou para explicar o sentido do texto.

Por outro lado, esta tradução é fruto do trabalho de mais de quarenta biblistas portugueses e dos países de língua oficial portuguesa (tendo em conta que posteriormente a tradução será usada também nesses países, com exceção do Brasil). Se isto é uma grande mais-valia, por outro lado cria dificuldades de harmonização, porque pessoas diferentes traduzem necessariamente de formas diferentes. Então, há um segundo trabalho, o das subcomissões científicas (uma para o Antigo Testamento e outra para o Novo), que passa pela revisão da tradução e pela harmonização no sentido de, por exemplo em Paulo, a mesma palavra ser traduzida preferencialmente da mesma maneira em todas as suas cartas, ou de, nos evangelhos sinóticos, os textos idênticos serem traduzidos de forma idêntica. Isto permite a quem não tem acesso às línguas originais perceber, pela tradução, que no original se trata de palavras ou expressões iguais. Tudo isto implica muito trabalho e, consequentemente, muito tempo.

(NdV): Enquanto Pároco de Portimão, como descreve a sua experiência pastoral durante a pandemia?

(P.M.S): A nossa experiência em Portimão foi idêntica à de todas as comunidades. Num primeiro momento, sentimos o desalento da dispersão e da frieza da celebração do Domingo sem o conforto do enquadramento comunitário. Foi uma travagem a fundo, inesperada, no percurso normal da nossa vida de fé. Celebrar a Eucaristia sozinho e, numa imediata segunda fase, olhando para um ecrã, embora sentindo que do outro lado estavam as pessoas da comunidade, não é normal. Não pode ser normal. A fé cristã e, de modo particular, a celebração da Eucaristia tem uma dimensão comunitária inalienável. Da presença, das vozes que se unem em oração, do olhar, do ósculo santo, do abraço… Mas, como sempre, Deus mesmo do mal consegue tirar o bem. Foi um tempo de redescoberta da força da família como Igreja doméstica, fazendo de cada casa um templo, e de cada mesa de refeição um altar, partilhando e oferecendo a Deus a vida familiar, tal como ela é. Recebi de vários paroquianos testemunhos muito bonitos acerca desse tempo. Quando foi possível retomar as celebrações presenciais, embora com as restrições a que a segurança sanitária obriga, como foi consolador sentir, da parte de muitos, a alegria do regresso!…

Outro aspeto, entre muitos de que podíamos falar, é o que respeita à presença junto dos mais vulneráveis, dos doentes, dos carenciados. A nossa Cáritas Paroquial vive apenas de voluntariado e de donativos, prestando, neste momento, auxílio mensal a cerca de 400 famílias, para além das 60 refeições diárias servidas pela cantina social e que as pessoas levam para casa, de modo a poderem tomá-las, também elas, no ambiente familiar. Mesmo no tempo de confinamento, nunca os voluntários se retraíram, continuando a ser presença de Deus que cuida na vida destes irmãos. Também, desde março, os nossos escuteiros transportam, diariamente, dezenas de refeições às pessoas que estão em isolamento profilático. Esta liturgia da caridade, como gosto de lhe chamar, tem sido um verdadeiro hino de louvor a Deus e de edificação da comunidade. Louvado seja o Senhor por isto!

Em relação ao resto da vida paroquial, foi preciso redimensionar e ajustar tudo, mas, graças a Deus, os grupos de catequese de infância-adolescência e de adultos, de oração e lectio divina. Movimentos e obras, estão todos a funcionar. Sente-se, da parte de muita gente, uma sede de Deus e da vida comunitária.

Acredito que, como ao longo da história da salvação, das situações mais difíceis, como esta que estamos a viver, Deus consegue tirar algo de bom. Pessoalmente, na vida de discípulo e de pastor, sinto que uma delas foi obrigar-me a saber distinguir claramente Deus das coisas de Deus. Foi um tempo de paragem nas “coisas” de Deus, para recentrar a vida em Deus. Acredito que este é um tempo em que o Senhor nos convida, pessoal e eclesialmente, a saber fazer esta distinção, centrando-nos muito mais no essencial, na necessidade de mais oração que reunião, de mais espiritualidade que administração, de mais evangelização que conservação. A vida das Paróquias será diferente, e acredito que para melhor.

(NdV): Nestes tempos de maior confinamento, qual pode ser o lugar da Escritura no quotidiano dos fiéis? 

(P.M.S): Quando Nossa Senhora visita Isabel e eleva a Deus o Magnificat, fá-lo com frases retiradas das Escrituras, o que significa não só que as estudava e que, por isso, as conhecia, como tinha o hábito de iluminar com elas os acontecimentos da sua vida. O mesmo faz Jesus nas respostas que dá às tentações. Para um cristão, a Palavra de Deus é, como diz o Salmo 119(118), “luz para os seus caminhos”. Se é assim em todas as circunstâncias da vida, de modo particular o é nos momentos difíceis, como o que atravessamos. No entanto, o maior confinamento a que estamos sujeitos pode tornar-se em ocasião de mergulharmos com maior profundidade no conhecimento da Bíblia, não apenas numa dimensão intelectual, mas sobretudo de leitura orante. A lectio divina é um método de oração que nos ajuda a aprofundar os conhecimentos bíblicos, mas sobretudo muda a nossa forma de rezar, aprendendo a escutar Deus e não a escutarmo-nos a nós próprios, ou a querermos que Deus nos escute. Isto possibilita-nos o discernimento da vida à luz da vontade de Deus. Há muitos subsídios que podem ajudar, mas atrevo-me, pedindo que não me interpretem mal, a sugerir um pequeno livro que escrevi há uns anos, com um conjunto de exercícios de lectio, precisamente para ajudar os meus paroquianos a rezar a partir deste método: “Os encontros de Jesus no Evangelho de S. João” (ed. Paulinas). Se este tempo nos ajudar a converter a nossa oração do “dizer” para o “escutar”, teremos ganho uma riqueza espiritual imensa. É que, de facto, este é o primeiro mandamento divino, que antecede o de amar a Deus: «Escuta Israel». Só podemos amar quem conhecemos, e só conhecemos quem escutamos. Seria um desafio muito interessante aproveitar o momento que vivemos para proporcionar este tipo de oração através das redes sociais, ajudando, em primeiro lugar, a perceber o que o texto diz, para poder entender o que Deus, através dele, nos quer dizer. E então, a letra inanimada transforma-se em Palavra viva, atuante e eficaz, que, como aos discípulos de Emaús, abrasa o coração e destrói os medos. Perante a situação atual há muitas pessoas retraídas, que se deixaram tomar pelo medo. O medo suga-nos a alma e tolhe-nos a vida. A situação que vivemos recorda o capítulo 14 de S. Mateus, quando, de noite e no meio do lago, o barco onde vão os discípulos é açoitado de tal maneira pelas ondas, que eles começam a gritar, cheios de medo. Parecia que a violência das ondas era invencível. Tudo se transforma quando ouvem a palavra de Jesus que Se torna presente e lhes diz:: «Tende coragem, sou Eu; não tenhais medo!». É a Sua palavra que os serena, destrói o medo, e os leva a olhar para a vida com confiança e esperança. A última palavra não é da força da tempestade, mas de Jesus. A lectio é uma oportunidade que damos ao Senhor para que nos fale, serene e encoraje. Como é transformador escutarmos, também nós: «Sou Eu; não tenhais medo!».

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