O sistema de saúde português caracteriza-se por um modelo misto, combinando um Serviço Nacional de Saúde (SNS) universal e tendencialmente gratuito com um setor privado em expansão. Este modelo procura garantir a equidade no acesso, o respeito pela dignidade dos utentes e a proteção da sua privacidade, valores consagrados na lei. De acordo com a Lei de Bases da Saúde, “todas as pessoas têm direito à proteção da saúde com respeito pelos princípios da igualdade, não discriminação, confidencialidade e privacidade”, devendo aceder aos cuidados “com prontidão… de forma digna” (). Na prática, contudo, assegurar estes valores essenciais tem sido desafiante num contexto de recursos limitados, procura crescente e desigualdades regionais.
Paralelamente, vivemos uma era de rápida evolução tecnológica marcada pela Inteligência Artificial (IA), que promete transformar os cuidados de saúde. A adoção da IA na saúde surge como uma oportunidade para reforçar a sustentabilidade do sistema – melhorando eficiência, prevenção e personalização –, mas levanta também questões éticas e operacionais. É crucial analisar como a IA pode ajudar ou comprometer a equidade, dignidade e privacidade no contexto português, identificando exemplos práticos e caminhos a seguir. Nas secções seguintes, discutem-se os desafios e possibilidades em cada um destes eixos de valor, com enfoque na realidade nacional e nas diretrizes de entidades oficiais (SNS, DGS, SPMS, CNPD, entre outras).
Equidade no acesso e o papel da IA
Equidade significa oferecer acesso aos cuidados de saúde de forma justa, independentemente da condição socioeconómica ou geográfica. O SNS foi concebido para garantir essa universalidade, mas o sistema misto enfrenta dificuldades em concretizá-la plenamente. Atualmente, uma fatia crescente da população recorre a seguros ou subsistemas de saúde privados, aliviando a pressão sobre o SNS mas também indicando falhas na resposta pública. Dados recentes mostram que 55% dos portugueses já dispõem de seguro, plano ou subsistema de saúde, e a percentagem de cidadãos que depende exclusivamente do SNS caiu de 36% (2021) para apenas 25% em 2024. Este movimento, motivado em parte por desigualdades regionais e tempos de espera no setor público, leva muitas pessoas – mesmo com sacrifício financeiro – a procurar cuidados privados. O resultado é o risco de uma medicina a duas velocidades, em que quem pode pagar tem resposta mais rápida, comprometendo o princípio da equidade.
A IA poderá ser uma aliada para corrigir algumas assimetrias de acesso, desde que implementada de forma inclusiva. Ferramentas de telemedicina e triagem automatizada permitem levar orientação médica a regiões remotas ou populações sem médico de família. Por exemplo, o sistema de Avaliação de Sintomas do SNS24 já utiliza algoritmos de IA: o utente introduz os seus sintomas online e o sistema faz perguntas adicionais automaticamente, ajudando a rastrear problemas potenciais e indicando os passos seguintes conforme as respostas fornecidas. Esta solução inovadora, disponível 24 horas por dia, democratiza o acesso inicial aos cuidados, especialmente útil para quem vive longe de um centro de saúde ou enfrenta filas nas urgências. Outros projetos-piloto no SNS visam antecipar necessidades e gerir recursos de forma mais equitativa – por exemplo, modelos de IA para prever a afluência às urgências hospitalares permitem alocar pessoal e camas consoante os picos previstos, evitando que determinados hospitais fiquem sobrelotados em detrimento de outros. Também a análise inteligente de dados de saúde pública (como no projeto Smart Healthy Region) apoia o planeamento de políticas sanitárias orientadas pelas necessidades reais de cada região
No entanto, a adoção da IA levanta questões fundamentais de equidade que não podem ser ignoradas. É preciso garantir o acesso equitativo às tecnologias de IA em todo o país.
Se apenas os grandes hospitais ou clínicas privadas dispuserem dos sistemas mais avançados, a disparidade poderá agravar-se – cidades com centros de excelência beneficiariam, enquanto zonas periféricas ficariam para trás. Além disso, existe o risco de uma divisão digital: utentes com menor literacia tecnológica ou sem acesso à internet (especialmente idosos ou populações carenciadas) podem não conseguir tirar proveito de soluções digitais como apps de saúde ou chatbots médicos. Como alerta um grupo de trabalho nacional, é imperativo considerar “a equidade no acesso e utilização” destas novas ferramentas, sob pena de perpetuar ou ampliar desigualdades existentes. Também a qualidade dos dados influencia a justiça dos algoritmos – se os conjuntos de treino não representarem adequadamente certos grupos (por exemplo, minorias étnicas ou pessoas do interior do país), as predições da IA podem ser enviesadas, favorecendo uns em detrimento de outros. A Comissão Europeia tem sublinhado que os sistemas de IA em saúde acarretam riscos de discriminação e exige supervisão humana e transparência para mitigar vieses.
Em suma, para que a IA fortaleça e não comprometa a equidade, é necessária uma estratégia deliberada: investir em infraestruturas digitais no SNS a nível nacional, formar profissionais e utentes para uso destas ferramentas, e priorizar a universalidade na sua distribuição. Felizmente, entidades como a SPMS reconhecem essa prioridade e trabalham para que a transformação digital do SNS seja um veículo de acesso universal e equitativo, em vez de um luxo reservado a alguns.
A IA deve servir a todos os portugueses por igual, atuando como um nivelador que leva cuidados de qualidade onde antes eram escassos, e não como um fator de divisão.
Dignidade e humanização dos cuidados na era digital
A dignidade no contexto da saúde refere-se a tratar cada utente como um ser humano com valor intrínseco, respeitando a sua autonomia, intimidade e necessidades individuais. Implica cuidados humanizados, nos quais há empatia, comunicação clara e respeito pelos direitos e sentimentos do doente. A legislação portuguesa reforça esta ideia ao determinar que os cuidados devem ser prestados “de forma humanizada” e que as tecnologias de saúde devem reforçar a humanização e a dignidade da pessoa () (). Na prática diária do SNS, contudo, a dignidade pode ficar em risco diante de hospitais sobrelotados, tempos de espera angustiantes e profissionais exaustos sem tempo para um acompanhamento próximo. Manter a centralidade da pessoa face às pressões assistenciais é um desafio constante: um doente em maca nos corredores de um serviço de urgência, ou que tem consultas de escassos minutos, dificilmente se sentirá tratado com a consideração que merece. Daí a importância de humanizar todos os processos de cuidado, como destaca o Plano de Ação para a Humanização dos Cuidados de Saúde.
A introdução da IA nos cuidados de saúde pode influenciar a dignidade de modos diversos. Por um lado, a IA oferece oportunidades para melhorar a experiência do utente. Se algoritmos conseguirem agilizar tarefas burocráticas e administrativas, os profissionais de saúde ganham tempo para o contacto humano de qualidade – ouvir as preocupações do paciente, explicar um diagnóstico ou prestar conforto. Por exemplo, sistemas de IA que resumem registos clínicos ou preenchem formulários automaticamente reduzem a carga de trabalho burocrático, permitindo ao médico focar-se na relação com o doente. Também ferramentas de apoio ao diagnóstico (como IA que analisa radiografias ou lesões de pele) podem acelerar a deteção de doenças, diminuindo a ansiedade da espera e começando mais cedo o tratamento necessário. No Instituto Português de Oncologia ou em iniciativas como o Derm.AI, a utilização de IA para triagem de casos suspeitos de cancro de pele visa justamente identificar com rapidez os casos graves, encaminhando-os de imediato e evitando que pacientes em risco fiquem em lista de espera prolongada.
Assim, a IA bem empregue pode salvaguardar a dignidade ao assegurar que ninguém é “esquecido” no sistema: todos recebem atenção no tempo certo, de acordo com a gravidade da sua condição.
Por outro lado, há receios legítimos de que a IA possa comprometer a dimensão humana do cuidado se não forem tomadas precauções. Um dos riscos apontados a nível internacional é a despersonalização: o cuidado tornar-se demasiado impessoal, focado na doença e não na pessoa (). Se os utentes passarem a interagir sobretudo com máquinas – seja um chatbot que responde a perguntas de saúde, seja um “robô” de apoio domiciliário – corre-se o risco de diminuir a comunicação calorosa e a empatia que são pilares da prática médica. A inteligência artificial generativa, como modelos de linguagem, já permite simular conversas, mas não substitui o toque humano ou a capacidade de perceber emoções subtis. Assim, embora um assistente virtual possa orientar um doente crónico sobre medicação, é diferente de um enfermeiro que ajusta a explicação ao perceber a angústia no rosto do utente. A confiança também pode ser abalada se decisões clínicas automatizadas não forem explicáveis e transparentes – um paciente informado de que “um algoritmo decidiu” determinada abordagem pode sentir-se inseguro ou desrespeitado, sobretudo se não lhe for dada oportunidade de esclarecimento com um profissional. Este aspecto relaciona-se com o direito à autodeterminação e informação do doente, previsto na lei, que deve ser mantido mesmo quando se usa IA.
Outro desafio para a dignidade é garantir que a IA não substitui o julgamento humano, mas sim o complementa. Os profissionais de saúde devem continuar a ser responsáveis pelas decisões e pelo relacionamento com o doente. A UE está ciente disto e classifica os sistemas de IA em saúde como de alto risco, exigindo supervisão humana constante e mecanismos de explicabilidade antes da sua colocação em prática. Em Portugal, projetos de IA estão a ser conduzidos com esse princípio: por exemplo, no Hospital de S. João (Porto), testou-se um sistema europeu de IA para ajudar a diagnosticar COVID-19 em imagiologia, mas sempre como segunda opinião para reforçar a fiabilidade, não para decidir isoladamente. De igual modo, um protótipo desenvolvido pela Universidade de Évora para a Linha SNS24 visou reduzir a duração das chamadas e identificar mais rapidamente a condição do paciente, mas fazendo-o de forma ética, com dados anonimizados e respeitando a privacidade, e presumivelmente mantendo um profissional a acompanhar o processo. Esses cuidados demonstram que é possível inovar sem desumanizar.
Em síntese, dignidade e IA não têm de estar em conflito. A chave está na humanização digital: integrar a IA de modo a libertar recursos para a compaixão, assegurar que cada doente continua a ser visto como indivíduo único e garantir que a tecnologia reforça e não substitui a relação de confiança entre utente e profissional. A dignidade do utente deve permanecer no centro — seja no atendimento presencial, seja num serviço mediado por algoritmos — e para tal a supervisão humana e a ética têm de guiar toda implementação de IA na saúde. Como frisa a Comissão Nacional de Ética, é preciso procurar caminhos em que a inovação tecnológica “prossiga os valores e princípios éticos em que nos revemos”, e isso implica desenhar sistemas que sirvam as pessoas, mantendo o trato humano e respeitoso em todas as circunstâncias.
Privacidade e proteção de dados de saúde
A privacidade dos dados de saúde é um direito fundamental dos utentes e condição básica para a confiança no sistema de saúde. Informações de saúde são altamente sensíveis – incluem historial médico, diagnósticos, genética, dados emocionais – e a sua divulgação indevida pode ter consequências sérias para a vida pessoal e profissional de um indivíduo. Em Portugal, a confidencialidade clínica é deontologicamente obrigatória e juridicamente reforçada pelo Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) da UE. A Lei de Bases explicita o dever de confidencialidade, integridade e privacidade no acesso aos cuidados (). Num sistema de saúde cada vez mais digitalizado, com registos eletrónicos, receita sem papel e partilha de informação entre unidades do SNS e prestadores privados, garantir a segurança destes dados tornou-se simultaneamente mais difícil e mais crítico.
A IA, pela sua própria natureza, lida com vastas quantidades de dados e, no contexto da saúde, levanta preocupações sobre como esses dados são recolhidos, utilizados e protegidos. Uma das principais apreensões é o potencial de violação de privacidade dos dados pessoais dos utentes através de sistemas de IA mal desenhados ou mal geridos. Por exemplo, algoritmos treinados em bases de dados clínicas necessitam de acesso a registos de muitos pacientes; se esses dados não forem devidamente anonimizados, existe o risco de reidentificação de indivíduos ou de exposição de detalhes confidenciais. Mesmo dados anonimizados, quando combinados com outras fontes, podem às vezes revelar identidades. Além disso, a introdução de fornecedores tecnológicos externos (por exemplo, uma startup que desenvolve uma ferramenta de IA para um hospital) implica partilhar informação sob sua custódia – é indispensável assegurar que esses fornecedores cumprem rigorosamente as normas de proteção de dados e não utilizam os dados para fins não autorizados. A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) tem acompanhado de perto estas questões e chegou a investigar a atividade de empresas de IA quando surgem dúvidas sobre o manuseamento de informação de cidadãos.
No âmbito do SNS, a SPMS e outros órgãos públicos têm procurado conciliar a inovação com a privacidade. Nos casos de uso piloto de IA referidos, há a preocupação explícita de usar dados anonimizados ou sintéticos durante o desenvolvimento. Por exemplo, no projeto de IA para a linha SNS24 mencionado, os investigadores garantiram o respeito pelo princípio da privacidade, trabalhando com dados sem identificadores pessoais.
Da mesma forma, quando se desenvolvem modelos preditivos para otimizar compras ou detetar fraudes no SNS, parte-se de dados agregados sobre procedimentos e faturação, sem expor informações de utentes. São boas práticas que devem ser seguidas e auditadas regularmente. Importa também cumprir o dever de transparência para com os utentes: estes têm o direito de saber que dados seus são utilizados e para que finalidade, podendo em certos casos dar consentimento específico (por exemplo, se os seus dados clínicos vão alimentar um estudo que treina um algoritmo para investigação, fora do âmbito da sua prestação de cuidados). A reutilização de dados de saúde para fins de IA insere-se num debate maior sobre o European Health Data Space, iniciativa europeia que pretende facilitar a partilha segura de dados de saúde para benefício dos doentes e da investigação. Portugal tem participado ativamente neste diálogo, sublinhando a necessidade de equilibrar inovação com salvaguardas de confidencialidade.
Ainda no campo da IA, surgem novos desafios de privacidade com as chamadas IAs generativas (como o ChatGPT). Estas ferramentas, embora não desenvolvidas especificamente para saúde, têm sido experimentadas para sumariar texto clínico, elaborar respostas a dúvidas médicas, etc. No entanto, as autoridades de cibersegurança alertam que nunca se devem introduzir dados sensíveis (como informações de pacientes) em plataformas de IA públicas, pois não há garantia de como esses dados são armazenados ou usados. Em 2023-2024, vários países e entidades baniram ou restringiram certas ferramentas de IA por receio de fuga de dados confidenciais. Assim, um médico não deve, por exemplo, colar partes do processo clínico de um utente num sistema online para obter uma segunda opinião automática – estaria a violar o sigilo e o RGPD. Em vez disso, deve aguardar por soluções de IA certificadas e alojadas em ambientes seguros, preferencialmente sob controlo nacional, onde haja garantias contratuais e técnicas de proteção da informação.
A cibersegurança tornou-se, aliás, indissociável da privacidade. Sistemas de saúde são alvos frequentes de ataques informáticos, e um ataque a um algoritmo de IA (por exemplo, adulterando um modelo de triagem para desorganizar prioridades, ou roubando a base de dados de treino) pode ter impactos sérios na prestação de cuidados e na exposição de milhões de registos. Medidas de encriptação, controle de acessos e auditoria de atividades são indispensáveis quando se incorpora IA no circuito clínico. O Regulamento Europeu de IA (aguardado para breve) reforçará estes aspetos ao exigir que sistemas de alto risco (categoria que abrange a saúde) tenham mecanismos robustos de governação de dados, segurança, explicabilidade e garantia de conformidade legal antes de serem introduzidos no mercado.
Em conclusão, privacidade e IA na saúde devem andar de mão dada. A IA só será útil se houver confiança dos cidadãos de que a sua intimidade continua protegida. Para tal, é essencial manter um rigor absoluto na proteção de dados de saúde, desde a conceção dos sistemas (princípio de privacy by design) até à sua operação diária. As entidades reguladoras portuguesas e europeias estão atentas, e a sociedade civil também deve ser informada e envolvida no debate sobre quem tem acesso aos seus dados de saúde e com que fins. A garantia de privacidade não é negociável – é a base para que os utentes aceitem e colaborem com novas ferramentas tecnológicas, contribuindo com os seus dados de forma confiável para melhorar o sistema sem medo de terem a sua vida devassada.
Sustentabilidade do sistema de saúde na era da IA
A sustentabilidade do sistema de saúde diz respeito à sua capacidade de responder às necessidades atuais sem comprometer a resposta às gerações futuras. Em Portugal, tal sustentabilidade enfrenta vários desafios: o envelhecimento populacional e o aumento de doenças crónicas pressionam os serviços; há escassez de profissionais em certas especialidades e fuga de talento para o estrangeiro ou setor privado; e a despesa pública em saúde, embora crescente, permanece limitada face às exigências (cerca de 9-10% do PIB, próximo da média da UE). O modelo misto português pode oferecer alguma flexibilidade – o setor privado atua como complementar e aliviador do SNS em certos contextos –, mas também levanta questões sobre até que ponto o SNS consegue manter a sua missão universal se segmentos significativos da população e dos profissionais se deslocam para fora dele. Os dados já citados mostram um aumento substancial de seguros de saúde privados, o que significa que, se por um lado o SNS atende menos pessoas diretamente, por outro pode perder parte do apoio político-social da classe média e enfrentar uma concentração de utentes mais vulneráveis (potencialmente com cuidados mais caros). Sustentar financeiramente e socialmente o SNS requer, assim, inovações que aumentem a eficiência e a qualidade, para reconquistar a confiança de utentes e assegurar cuidados a todos sem rupturas.
É neste cenário que a Inteligência Artificial desponta como uma ferramenta potencialmente transformadora para a sustentabilidade dos serviços de saúde. Bem aplicada, a IA pode contribuir para fazer mais (e melhor) com os recursos existentes, aliviando estrangulamentos e reduzindo desperdícios. Vejamos alguns eixos em que a IA influencia a sustentabilidade:
Eficiência Operacional: A IA pode automatizar tarefas repetitivas ou demoradas, aumentando a produtividade. Isto inclui desde a gestão de agendas e processamento de faturação, até apoio na codificação clínica. Um projeto de codificação previsional com IA, em curso no SNS, auxilia os técnicos de codificação a atribuir os códigos correctos aos atos médicos a partir das notas clínicas, usando processamento de linguagem natural. Isso poupa tempo e diminui erros, acelerando também os reembolsos e fluxos financeiros. Outro exemplo é a utilização de IA Copilot nas compras públicas da saúde, cruzando informação de procedimentos passados para sugerir otimizações e prevenir atrasos ou compras ineficientes. Ao agilizar processos administrativos e logísticos, a IA liberta recursos que podem ser aplicados diretamente na prestação de cuidados.
Combate ao desperdício e fraude: Num sistema com o tamanho do SNS, pequenas porcentagens de fraude ou má utilização de recursos podem significar perdas de milhões. Ferramentas de IA de análise de padrões conseguem escrutinar bases de dados de prescrições, faturação e utilização de serviços para detetar anomalias que apontem para fraudes (por exemplo, prestações cobradas e não realizadas, ou utilizações abusivas do cartão de utente) e identificar desperdícios (como exames duplicados desnecessariamente). De acordo com a SPMS, um projeto-piloto nesta área está a aplicar IA para cruzar variáveis e indicadores de modo a sinalizar comportamentos suspeitos de práticas inadequadas no SNS, promovendo uma gestão mais eficaz e transparente dos recursos. Ao cortar gastos indevidos, reorientam-se fundos para onde realmente fazem falta, fortalecendo a sustentabilidade financeira e também a equidade (pois garante-se que os recursos públicos são usados em quem deles precisa).
Decisões clínicas mais acertadas: A IA pode contribuir para a sustentabilidade melhorando os resultados de saúde da população. Diagnósticos mais precoces e tratamentos mais personalizados tendem a evitar complicações custosas no futuro. Por exemplo, algoritmos preditivos podem identificar doentes crónicos em risco de descompensação e ativar equipas de acompanhamento antecipado, prevenindo internamentos prolongados. Sistemas de apoio à decisão clínica ajudam a escolher terapias mais eficazes à primeira tentativa, reduzindo tentativas e erros dispendiosos. Toda melhoria na qualidade e efetividade dos cuidados repercute-se em menos gastos evitáveis a prazo (menos cirurgias de urgência, menos hemodiálises por falhas no controlo da diabetes, etc.) – isto é valor em saúde. Um sistema sustentável é aquele que entrega mais saúde por euro investido, e a IA pode ser crucial para encontrar essas eficácias. Um inquérito europeu revelou que muitas iniciativas de IA focam a melhoria da eficácia dos serviços, confirmando esta tendência de otimizar processos e resultados.
Planeamento e alocação de recursos: A IA, através da análise de grandes volumes de dados epidemiológicos e demográficos, permite projeções e planeamento de longo prazo mais robustos. Modelos sofisticados conseguem prever, por exemplo, o impacto do envelhecimento populacional na procura de determinados cuidados dentro de 5, 10 ou 20 anos, ou simular como uma pandemia poderia evoluir e que recursos exigiria em cada cenário. Estas informações são preciosas para dimensionar o sistema (formação de médicos, número de camas de cuidados continuados, stock de equipamentos) de modo sustentável. Portugal tem participado em projetos europeus de partilha de dados de saúde e IA exatamente para melhorar esta capacidade de planeamento – por exemplo, integrando redes de análise federada de dados oncológicos para otimizar a prevenção e tratamento do cancro a nível internacional. Tal cooperação permite também poupar custos via economia de escala e evitar investimentos redundantes, contribuindo para a sustentabilidade global do setor.
Naturalmente, há desafios a vencer para colher esses benefícios. Implementar sistemas de IA requer investimento inicial significativo em tecnologia e formação. Numa fase de constrangimentos orçamentais, pode ser difícil justificar gastos em projetos de IA cujo retorno se materializa a médio prazo e de forma difusa. Além disso, integrar a IA nos fluxos de trabalho pode enfrentar resistências culturais – alguns profissionais podem temer que a automação ameace os seus postos ou altere a sua forma de trabalhar. A transição deve, por isso, ser cuidadosa e participativa: envolver os profissionais no desenvolvimento das ferramentas, esclarecer que a IA é uma auxiliar (e não um substituto) que pode elevar o nível do trabalho clínico, assumindo tarefas rotineiras e deixando as decisões complexas para os humanos. Importa também investir na formação contínua em literacia digital e de dados, para que médicos, enfermeiros e gestores se sintam confortáveis e competentes no uso destas soluções. Do ponto de vista técnico, há que assegurar a interoperabilidade entre sistemas – se cada hospital ou unidade tiver uma IA diferente que não comunica entre si, perde-se sinergia e cria-se desperdício; por isso, iniciativas nacionais e europeias caminham no sentido de padrões comuns e plataformas partilhadas.
Outro ponto crítico é avaliar com rigor o custo-efetividade das inovações em IA. Nem toda tecnologia cara resultará em poupanças ou melhoras proporcionais. É necessário pilotar, recolher evidências e escolher as batalhas certas – focar nos domínios onde a IA traz ganhos claros (por exemplo, na triagem de urgência, na detecção de fraudes, na leitura de exames de radiologia) antes de investir em frentes menos maduras ou de utilidade duvidosa. Esse planeamento estratégico garantirá que os recursos investidos em IA realmente reforçam a sustentabilidade, em vez de a prejudicar.
Apesar dos obstáculos, a trajetória parece irreversível: a IA fará parte do futuro da saúde. A questão é se conseguiremos canalizá-la para fortalecer o SNS e todo o sistema misto nos seus valores fundacionais. Os decisores políticos, cientes disto, têm lançado agendas como a “Inovação ao Serviço da Saúde Pública” (anunciada em 2023) que incluem explicitamente a IA como ferramenta para melhoria do SNS. A criação em 2022 do Center for Responsible AI com financiamento do PRR, agregando universidades, empresas e Estado, também demonstra o compromisso de desenvolver IA de forma responsável e alinhada com princípios como justiça, explicabilidade e sustentabilidade. Este esforço concertado deverá continuar, sob pena de Portugal ficar para trás numa área em que pode, pelo contrário, ganhar eficiência e qualidade.
Conclusão
Garantir equidade, dignidade e privacidade num sistema de saúde misto como o português exige um equilíbrio delicado entre valores sociais e realidades operacionais. A Inteligência Artificial, com toda a sua capacidade disruptiva, insere-se neste panorama como parte do problema e da solução: pode amplificar desigualdades ou mitigá-las; pode humanizar mais os cuidados ou torná-los frios e mecânicos; pode proteger melhor os dados ou expô-los a novas ameaças. Tudo depende de como é implementada. As lições emergentes no contexto português sugerem prudência e proatividade. Por um lado, vemos cautela regulatória – assegurando que a IA em saúde seja introduzida gradualmente, validada cientificamente e sob supervisão humana, como impõe o projeto de Regulamento Europeu.
Por outro, multiplicam-se os projetos inovadores no SNS e no setor privado, mostrando o potencial da IA para melhorar serviços, desde a redução de esperas até ao combate à fraude.
O caminho adiante passa por enquadrar a IA nos valores do SNS. Significa isto que qualquer algoritmo ou robô utilizado deve contribuir para corrigir iniquidades de acesso, assegurar que cada utente é tratado como pessoa e não como número, e respeitar escrupulosamente a confidencialidade das informações de saúde. As entidades oficiais portuguesas – do Ministério da Saúde à CNPD – têm um papel central em emitir orientações claras, fomentar formações e criar mecanismos de certificação das novas ferramentas de IA antes da sua adoção ampla. Ao mesmo tempo, é importante envolver tanto os profissionais de saúde como os utentes neste processo: os primeiros, para que confiem e saibam usar inteligentemente os sistemas (em vez de os temer ou ignorar); os segundos, para que se sintam confortáveis e protegidos ao terem a sua saúde gerida em parte por soluções digitais.
Em última instância, a sustentabilidade do nosso sistema de saúde poderá sair reforçada se conseguirmos colher os frutos da IA de forma ética e inclusiva. Uma IA que ajude a antecipar problemas, a gerir melhor os escassos recursos e a prestar cuidados de excelência a todos os cidadãos será um pilar para manter o SNS viável e justo nas próximas décadas. Porém, uma IA introduzida sem salvaguardas, que beneficie apenas alguns ou que quebre a relação de confiança médico-paciente, minaria os alicerces do sistema. Temos, portanto, uma oportunidade e uma responsabilidade: planear estrategicamente a integração da Inteligência Artificial na saúde, lembrando sempre que, por detrás de bytes e algoritmos, estão vidas humanas.
Seguir esses caminhos em Portugal será decisivo para que o futuro da saúde digital seja, acima de tudo, humano, equitativo e digno, honrando a promessa de “Saúde para Todos” que norteia o SNS desde a sua criação.
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