Colorir a ditadura. Branquear Abril.

Quem assistiu às movimentações militares do 25 de Abril no centro de Lisboa, escreveu algures que “os tanques tinham um ar gigantesco nas ruas estreitas”. Essa é, possivelmente, uma das definições mais eloquentes de democracia: a possibilidade de fazer passar, por entre ruas estreitas, um mundo gigantesco. Passados 50 anos, se para alguns as ruas […]

João Basto
26 Abr. 2024 5 mins
Colorir a ditadura. Branquear Abril.

Quem assistiu às movimentações militares do 25 de Abril no centro de Lisboa, escreveu algures que “os tanques tinham um ar gigantesco nas ruas estreitas”. Essa é, possivelmente, uma das definições mais eloquentes de democracia: a possibilidade de fazer passar, por entre ruas estreitas, um mundo gigantesco. Passados 50 anos, se para alguns as ruas foram demasiado estreitas, para outros os tanques terão sido excessivamente largos. Mas mesmo para aqueles que dizem que vivemos um tempo de censura mais gravosa que aquela instituída pelo Estado Novo, de certo não terão dificuldade em reconhecer que, ao menos hoje, lhes é possível escrever e denunciar isso que considerem injusto na primeira página de qualquer jornal, sem qualquer vigilância ou coação.

Porém, limitar a explicação do significado do 25 de Abril ao que se podia ou não podia fazer é um erro. Um erro acima de tudo, porque num regime que privava pelo seu elitismo, como também ainda é o nosso, alguns podiam fazer muito, enquanto muitos não podiam fazer nada. É certo que a sorte e a arbitrariedade desempenham um papel incontrolável nas sociedades, mas talvez o desempenhem menos hoje, que há 50 anos atrás. Portugal continua a ser o país onde um não licenciado chega dificilmente à Assembleia da República ou onde é improvável que não um académico seja nomeado ministro ou diretor-geral, mas já não é preciso esperar por ser homem, “cabeça de casal” ou mulher licenciada para se possuir direito de voto, do mesmo modo que só depois de 74 se tornou claro que “a vontade de ler” deve ser única condicionante de acesso a uma qualquer publicação. É certo que houve quem lesse, em Portugal, Marx ou Nabokov antes da revolução, mas sem dúvida que nessa lista não estaria a nome do meu bisavô contratador de gado, num concelho do norte de Portugal. Não porque não sabia ler ou porque não tinha vontade de o fazer, mas porque os #nãosepodiafazer eram mais para uns do que para outros.

Como escreveu sabiamente o Pe. Manuel Antunes, é possível dizer a tirania “teve matizes, temperamentos, momentos de sístole e de diástole”, mas, é inegável, que “no seu conjunto, tirania foi”. É possível dizer-se que o regime que em 74 caiu nunca teve a dimensão dos “atropelos, agravos e injustiças” que a hecatombe do século XX atingiu em outras latitudes, mas não é correto dizer-se que não matou, torturou ou privou, injusta e arbitrariamente, de diretos elementares o comum dos seus cidadãos. É, também, e acima de tudo, o fim dessa discricionariedade que festejamos. Não tanto o sucesso económico, que não é possível exigir à democracia, como se ela fosse uma formulação mágica de crescimento e prosperidade, muito embora isso tenha sido irresponsavelmente prometido por muitos. Mas o 25 de Abril é a celebração de um país que já não necessita de ver os seus mais novos condenados, numa lotaria improvisada, a acabarem “de maca” ou “ainda mais deitados”, apesar do drama da emigração da “geração mais bem preparada de sempre”.

A “nação” e o “império multirracial”, que hoje são, não raro, classificados com pretensas virtudes, parecem fazer esquecer que estes conceitos, transformados à força em realidade, apenas serviam para engalanar os salões e os peitos de algumas fardas, em especial de quem dificilmente via os seus sonhos rasgados, mas que, ao invés, os alimentava para logo após os extinguir. De facto, como também afirmou o mesmo Pe. Manuel Antunes, Portugal vivia sob um regime, cuja estrutura “permitia a gentes de vários bordos e rebordos aproveitar os mitos correntes no mercado para fazerem o máximo de fortuna possível”. “Fortuna de ordem muito vária”, concluía.

Todavia, Portugal não foi, como hoje não o é tampouco, o país vítima de qualquer mal. A “nação” que defendia o “decoro”, o “recato”, o “pudor”, a “ordem” e o “bem”, era a mesma que usava uma “polícia de vigilância” – nome que provavelmente encantaria hoje mais que nunca – para estimular um clima de denúncia seja por vingança, inveja, ou rivalidade. Daí que o famoso “a bem da nação”, com o qual muitas denúncias à PIDE terminavam, estaria muito mais correto se dissesse: “a bem de mim próprio”.

Daí, que hoje é talvez urgente o 25 de Abril que não seja o dos saudosistas, venham eles das revoluções mitificadas, ou do colonialismo engravatado. Porque se em 74 foram muitos os que fizeram filas em bombas de gasolina, em bancos e supermercados, com medo do que seria o futuro, o pior que podemos fazer para celebrar estes 50 anos é reduzir a vida à sobrevivência ou à luta intestina comandada pelo terror e pela avidez.

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