De acordo com os dados da Segurança Social divulgados em 2022, mais de 6.300 crianças e jovens estavam no sistema de acolhimento em 2021, quase menos 5% que em 2020. Sem conseguir perceber se esta realidade é sentida no Alto Minho, uma vez que “o Berço está lotado”, Jaime Caridade, secretário da Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) da Paróquia de Nossa Senhora de Fátima, no Arciprestado de Viana do Castelo, garante que os números eram “mais críticos” em 2008. E, por isso, “já é uma vitória”.
Atualmente, o Berço está a acolher 20 bebés e crianças, entre os 7 meses e os 14 anos. Nos últimos 30 anos, já passaram por ali 369, “não só do distrito como a nível nacional”. “O Berço surge na necessidade de acolher bebés e crianças com problemas diversificados, tais como maus-tratos físicos e emocionais, abusos sexuais, alcoolismo/toxicodependência, prostituição, falta de condições económicas, e retaguarda familiar ou abandono”, explicou o Pe. Artur Coutinho, Pároco e fundador daquela IPSS, clarificando que o seu objetivo é “promover, defender e dignificar a vida humana”, e “potenciar e apoiar durante o acolhimento, o desenvolvimento emocional e social das crianças e jovens, para que estas possam em segurança recuperar das sequelas sofridas, sentirem-se finalmente no direito de ser crianças e prepararem-se para enfrentar o futuro com esperança”.
A equipa é composta por uma direção com nove voluntários, em que a remuneração é, segundo Jaime Caridade, “o prazer, a vontade de fazer, e sentir a felicidade quando as coisas se realizam”. Tecnicamente, o Berço é uma equipa multidisciplinar que compreende uma educadora social, uma psicóloga e uma assistente social. A coordenação está, desde janeiro, nas mãos de Beatriz Seabra. Tem 25 anos e é formada em Serviço Social. “É uma grande responsabilidade”, reconheceu, contando que, quando chegou em março de 2022, sentiu que podia evoluir a nível profissional e pessoal. “Cumpri com os meus compromissos profissionais, e isso foi reconhecido através deste desafio em assumir a coordenação. Ainda tenho muito a aprender, e, para isso, conto com o apoio de toda a equipa”, assegurou.
As instalações, onde está a funcionar, surgiram devido “às necessidades do Berço e das exigências”, sobretudo da Segurança Social, que foram aparecendo ao longo dos anos. Hoje, é também uma necessidade reformular porque, de acordo com Jaime Caridade, “o Berço destinava-se a crianças dos 0 aos 12 anos”. “A casa não é pequena, mas precisávamos de uma maior”, confidenciou o Pe. Artur Coutinho. “Estamos vocacionados a receber crianças até aos 12 anos e a verdade é que, atualmente, temos crianças com 14 anos. A maioria tem oito anos. São idades que exigem mais”, justificou Jaime, lembrando que o Berço é “uma casa como a casa das pessoas” que, por vezes, “precisa de ser remodelada”.
Recentemente, a direção fez uma avaliação do valor que recebe, por criança, da Segurança Social, e as suas despesas. “Temos um défice mensal na ordem dos três mil euros. Vamos sobrevivendo com os apoios das entidades”, afirmou o secretário, salientando que a instituição tem “sobrevivido” com o apoio das entidades e empresas regionais. “A BorgWarner vai-nos remodelar as casas de banho todas. No Natal, a Leroy Merlin ofereceu prendas às crianças. E o Rotary Club quer ser nosso parceiro”, exemplificou, classificando o gesto como “o reconhecimento” do trabalho desenvolvido pelo Berço.
No distrito de Viana do Castelo há mais quatro casas de acolhimento. Ainda assim, segundo Jaime Caridade, o Berço “é a única casa que está com a totalidade no acolhimento”. “Talvez porque acolhemos crianças mais jovens e, mais importante ainda, há uma grande confiança no nosso trabalho”, sublinhou.
Em dezembro de 2023, a Lusa divulgou os dados do relatório CASA – Caracterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens que mostrou que “a negligência foi a principal situação de perigo em que se encontravam crianças e jovens entre as quase 15 mil identificadas em 2021 a justificar o acolhimento, havendo também registo de maus-tratos físicos e psicológicos, ou casos de violência sexual”. No Berço também se confirmou esta realidade. “Negligência ao nível das competências parentais”, especificou Beatriz Seabra, contando que muitas das crianças são medicadas. “Elas trazem uma bagagem muito grande e é necessário, para que elas se sintam bem, uma ajuda extra. Ou seja, um reforço terapêutico para as ajudar a estabilizar”, referiu, sublinhando que “não é o suficiente” porque “são crianças muito carentes de afeto”. “Há muitas histórias que, muitas vezes, ninguém imagina”, acrescentou Pe. Artur Coutinho, recordando algumas crianças que passaram pela instituição.
De acordo com a coordenadora, o tempo de acolhimento, na teoria, vai dos três aos seis meses. Na prática, “isso não acontece”. “A criança mais velha está connosco desde 2017”, revelou. “A questão do acolhimento é complicada, porque as crianças são retiradas às famílias e são colocadas aqui. Durante este tempo de acolhimento, há um trabalho a ser desenvolvido. Por um lado, as IPSS trabalham para que a criança e/ou jovem tenha um projeto de vida. A montante, trabalha-se a família”, esclareceu Jaime Caridade, atirando: “Há muitas entidades, mas não há coordenação.”
Os três consideram ainda que os processos são “demorados” porque “cada caso é um caso”, mas assumem que “o ideal era que as crianças e os jovens regressassem às suas famílias”. “Há muitos programas e pessoas a intervir, mas não há resultados, porque as coisas não se resolvem na secretária, mas no terreno, junto das pessoas”, criticou o secretário, desejando que os programas sejam “mais adaptados e organizados” à realidade, e “mais duradouros”. Concordando com esta apreciação, a coordenadora acrescenta que “há algumas lacunas”. “Tem de haver uma maior articulação por parte dos gestores dos projetos”, defenderam.
O dia-a-dia do Berço requer rotinas e regras, desde a hora de acordar às refeições, da escola à hora do estudo, do lazer até às visitas. Já no que diz respeito à adaptação das crianças à sua nova casa, “nem sempre é fácil” porque, mais uma vez, “cada caso é um caso”. “Temos crianças que, como ainda não têm maturidade, não se apercebem do que está a acontecer. Facilmente se deixam ir, porque veem uma casa grande cheia de outras crianças. Há outras, mais velhas, que têm uma grande afinidade pelos pais e esta mudança é penosa. No primeiro dia, não comem, não conseguem dormir e choram. Isto acontece entre uma a duas semanas. As crianças precisam de tempo para confiar em nós. O tempo de uma criança não é o tempo de um adulto e, por isso, temos de saber respeitar”, salientou Beatriz Seabra, defendendo que “a criança precisa de ser cativada e acarinhada, para se sentir bem”. “Há crianças que conseguem adaptar-se, e outras não”, acrescentou. “No Natal, por exemplo, de 20 crianças, apenas quatro é que foram autorizados a ir a casa”, especificou Jaime Caridade, confidenciando que as restantes passaram a noite de Natal nas famílias dos funcionários e voluntários.
Em 2022, houve uma acusação contra a instituição, sob suspeita de acusação de maus-tratos para com os menores. Para o secretário, houve “falta de seriedade”. “A comunicação social, quando recebe uma notícia, em vez de ir ao fundo da questão, vai logo à parte mais complicada, arranjando confusão”, lamentou, caracterizando a situação como “uma vingança pessoal”. “Usou uma mentira muito grave, pondo em causa quem cá trabalha e a própria instituição”, referiu, reconhecendo as consequências. “Até foi muito mau para as nossas crianças porque, as mais velhas, já têm alguma perceção, porque os mais velhos viam notícias. Foram dias muito complicados”, considerou Beatriz Seabra, contando que, ainda assim, elas se disponibilizaram a desmentir. “Aliás, ficaram preocupadas, porque poderiam fechar a casa, e elas não queriam sair daqui”, acrescentou Jaime Caridade.
Sem se perceber o verdadeiro fundamento do processo-crime, os três responsáveis garantiram ainda que “os factos não correspondiam à verdade”. “Não quisemos prolongar esta situação”, assegurou o secretário.
Para o futuro, o Berço pretende abrir-se mais à comunidade, dando a conhecer o seu trabalho e apelando à sua colaboração. “A comunidade é muito solidária”, assegurou Jaime Caridade, elogiando “a abertura das pessoas e empresas” em apoiar a instituição. “As pessoas percebem que o Berço é uma obra muito boa e merece a ajuda e a admiração de todos”, considerou o Pe. Coutinho. “As atividades extracurriculares são gratuitas. Só assim é, porque a comunidade está aberta a isso”, exemplificou Beatriz Seabra.
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