Carlos Miguelote: “Deus não vai ser um intruso”

Joaquim Carlos Miguelote Castro, de 50 anos, é natural de Urgezes, Guimarães, mas vive em Viana do Castelo há mais de 25 anos. Faz parte do Movimento Cursilhos de Cristandade da Diocese de Viana do Castelo e é também empresário do ramo alimentar. Em conversa com o Notícias de Viana, falou sobre a importância que Deus tem na sua vida, mesmo em tempo de pandemia.

João Basto
28 Jan. 2021 11 mins
Carlos Miguelote: “Deus não vai ser um intruso”

Como caracteriza a sua relação com Deus?

A minha relação com Deus é uma coisa fabulosa. Diria mesmo fantástica. Ainda ontem estava a pensar, e muitas vezes nós procuramos um Deus derrotado, mas creio que sempre senti um Deus vivo na minha vida, por atos muito pequenos e muito concretos. Para mim é como se quase convivesse com Ele no dia-a-dia. É esta a minha relação com Deus e não sei ter outra. Claro, há pessoas que podem não compreender, mas a minha relação com Ele faz-me sentir que ele me acompanha. Quando vinha para casa, estava a ouvir o terço na rádio e acabei por refletir no episódio das Bodas de Caná, quando no final daquele diálogo entre Maria e Jesus, em que ela alerta para a falta de vinho e Ele diz que não tem nada haver com isso, Maria remata dizendo aos serventes “fazei tudo o que ele vos dizer”. E a verdade, é que Deus dá-nos uma liberdade tão grande que, se eu não quero que Ele entre na minha vida, Ele também não vai ser um intruso. E este é um dos dons maiores que ele nos pode dar e eu fico feliz por ter um Deus assim: que não me escraviza, que não me castiga, porque Deus sempre me ensinou, mesmo no limite, mesmo à beira do precipício, e, mesmo aí, Ele está sempre com a mão estendida. E repare como Maria termina dizendo “fazei tudo o que Ele vos dizer”, porque se nós quisermos temos todo Dele. E é verdade.

Na sua vida os Cursilhos de Cristandade tiveram um papel muito importante. Porque?

A minha relação com Deus começou com o testemunho dos meus pais. Mas depois entra aquela fase da vida em que nós achamos que não precisamos de Deus para nada, mas graças a Deus eu percebi muito cedo que precisava Dele. Porque esta relação com Deus de que estava a falar eu já a tinha em pequeno. Entretanto a vida foi crescendo e cheguei a um ponto que, como empresário, só pensava em trabalhar e chegava mesmo a trabalhar de segunda a domingo. E os cursilhos aparecem na minha vida nos momentos em que eu precisava. Nesse período, eu tinha-me afastado um bocadinho de Deus, e quando a minha filha vai para a catequese, ela perguntou-me porque é que eu nunca ia com ela à missa, e a verdade é que aquilo fez-me cair do cavalo, e perceber que realmente não estava a ser bom pai, não a estava a acompanhar. Só que na altura com o trabalho não tinha muita solução e, mesmo fazendo um esforço, nunca foi nada de suficiente. E é aqui que surgem os cursilhos, num momento em que eu não tinha tempo para nada, e uma senhora amiga me conta que tinha ido a um retiro que tinha sido, nas palavras dela, uma coisa maravilhosa. E eu pensava: era mesmo disto que eu precisava. Porque a minha vida era só trabalho, trabalho, trabalho, eu, inclusive, já não tinha amigos, porque os meus amigos eram os do relacionamento comercial, que só viam o amigo pelo interesses, e eu precisava de uma coisa diferente na minha vida. Vou vendo e inscrevi-me logo no primeiro. E quando foi fazer os cursilhos foi paixão à primeira vista, porque a visão dos cursilhos – e quando eu digo cursilhos digo o cursilho em si e não as pessoas propriamente dos cursilhos, porque até o meu testemunho pode não ser o mais coerente – para mim era um caminho a seguir. Porque os cursilhos tratam das coisas, e não pode ser de outro modo, a partir de uma relação de amizade com Deus, da relação com uma Pessoa, e com as pessoas. E eu intui aí que Cristo era a relação entre as pessoas, Ele que nunca estava metido em casa, andava na rua, falava com este e com aquele. Isto apesar de, por vezes, os cursilhos inverdarem muito pela parte da formação e achar que nós só vamos conquistar as pessoas a partir da amizade. Por outro lado, os cursilhos insistem muito na frementação dos ambientes, a começar pelo ambiente familiar, que é onde começamos com os nossos primeiros relacionamentos, muito embora serem os relacionamentos mais difíceis. 

E isso refletiu-se na sua vida, nas suas relações?

Sim. A minha relação familiar levou uma cambalhota muito grande e com ela as relações profissionais. Mas claro que isso não é uma coisa de um dia, porque quando saímos de um cursilho vimos muito entusiasmados e queremos mudar o mundo. No entanto, nós até podemos vir diferentes, mas o mundo está igual, daí que nós não devemos transformar o mundo porque em foi transformado fomos nós e agora se eu quiser alguma coisa tenho que, devagarinho me transformar a mim e só depois transformar o mundo. E isso foi o que eu tentei fazer e cheguei mesmo a levar quase todos os membros da família. 

Para quem não conhece, o que é um Cursilho de Cristandade? E qual pensa que é o centro da proposta dos Cursilhos de Cristandade?

Para mim, como já foi dizendo, o centro da proposta é a amizade, é a relação, porque nós não podemos ser amigos de ninguém se não nos relacionarmos. Acerca disto uma vez a minha filha disse-me: “Pai eu só gostava de acreditar em Deus como tu” e eu respondi-lhe dizendo que “Tu para acreditar em Deus tens que criar, antes de mais, uma relação com Ele”, porque tu não podemos acreditar num amigo ou amiga tua se não te relacionares com ele, porque acabamos por conhecer gente que não é verdadeira connosco. Porque se nós fomos criando essa relação com Deus, o resto virá naturalmente. Mas voltando ao tema, creio que os cursilhos acabam por transportar isso para os nossos ambientes, e ao contrário do que, muitas vezes vemos até na Igreja, eles não se fecham, abrem-se para fora, vão para o mundo, e para onde nós estamos, porque é aqui que Deus nos quer, neste lugar, nesta família… Claro que, por vezes, eu não sou melhor Pai, melhor empresário, porque as circunstâncias da vida em certas ocasiões limitam-nos, mas também não vejo tudo com a amplitude que Deus vê. No entanto, tento sempre orientar-me, tenho uma direção, tenho  um caminho e quando me desvio, seja pelo cansaço, seja pela preguiça, procuro ser melhor marido, melhor pai, melhor patrão. 

No acompanhamento que vai fazendo, qual acredita serem os principais obstáculos e entraves que as pessoas trazem para os Cursilhos?

Os cursilhos têm haver com o cristianismo, com a Igreja e isso acaba por envolver, em primeiro lugar, pessoas, o que pode levar a alguns mal-entendidos face às expectativas, porque vamos buscar aos cursilhos aquilo que achamos que mais precisamos na nossa vida. Por exemplo, nós no cursilho falamos no tripé da vida cristã: a piedade, o estudo e a ação. Mas é preciso entender o que queremos dizer com isso. Muitas vezes pensa-se que a piedade é estar constantemente a rezar, mas, às vezes, se eu digo ao Senhor, “não me deixes ficar mal”, isso é, porventura, mais autêntico, mas piedade é, também, quando nós sabemos compreender o outro. E isso passa-se, também, com o estudo, porque muitas vezes entendemos o estudo como ler a Bíblia ou ler livros atrás de livros sem interiorizar nada, mas estudar é, igualmente, estudar o meu filho, estudar a minha filha, “porque é que ele está assim?”, “porque é que ele sente assim as coisas?”, “porque é que aquele pensa desta maneira e eu não penso?”. E o mesmo se passa na ação. Claro que sem ação eu vivo cego, posso rezar muito, mas se na prática isso não faz nada na minha vida então nada tem valor. Não basta ler o livro, porque se não fizermos acabamos por não ganhar aquilo que o livro nos ensina. E, talvez, esse seja o maior entrave: não entender. E, na minha opinião, alguns cristãos ainda não viram a viabilidade desta proposta. Todavia, outro entrave pode ser o testemunho que damos, porque se vou a um cursilho e isso não gera nada em mim não sou capaz de chamar mais e melhor. E neste tempo em que sentimos mais que precisamos do outro, os cursilhos dão-nos isso, reforçam isso, pela vida de amizade. E, quando falamos destes entraves, é importante ver que a falha não é só dos outros. Também pode ser nossa e aí é quando nos custa mais. 

Num momento em que o encontro presencial é tão reduzido – ele que é tão importante no movimento de que faz parte – como é que julga que podemos continuar a sentir que somos parte da mesma comunidade?

No que respeita à relação com Deus é fácil, porque quem acredita a relação continua. Deus está em todo o lugar e com Ele não há confinamento. Já em relação à comunidade cristã, a Igreja suspendeu as celebrações presenciais. Mas creio que podemos continuar a ser comunidade, porque a nossa vida continua. O templo fechou, mas há outras formas de comunicar e só pode ser através da amizade. Como? Hoje em dia, por exemplo, há telemóveis que permitem continuar com os laços de amizade. Tudo depende de como a pessoa a utiliza. Portanto, esta situação é uma grande oportunidade para a Igreja lançar coisas novas, embora esteja ainda um pouco apática em relação a isto. 

O que é que ainda nos falta fazer como Igreja? Quais os grandes desafios e barreiras que temos pela frente?

A minha fé reforçou-se muito mais quando estava em situações mais difíceis da minha vida e, por isso, acho que a Igreja pode ainda cativar mais pessoas. Não sei como, mas sinto que a Igreja continua muito fechada. Deve abrir-se. Além disso, a Igreja não pode parar. Tem de continuar e ser mais forte. 

Na minha opinião, o foco tem de mudar um bocado, chamando e cativando mais pessoas. Nas celebrações, há um momento em que os sacerdotes dizem: “Tomai, todos e comei. Isto é o meu Corpo, que será entregue por vós”. A comunhão tem de ser para todos e não apenas só para alguns. Cristo veio também para os pecadores, atraindo-os e este é outro dos desafios da Igreja: abrir-se a todos. Depois, quando todos estiverem dentro do barco é que temos de os cativar. 

Como empresário, como está a tentar viver cristãmente este momento? 

Só tenho que dar graças a Deus porque não tenho sido muito afetado. Trabalho na área alimentar e até nisso, Deus é meu amigo, e no Natal, tentei partilhar coisas com algumas associações. Graças a Deus, na minha empresa, ninguém apanhou a covid-19, à exceção de uma funcionária que estava de baixa. É natural que amanhã poderá acontecer, mas, até a este momento, Deus deu-me essa graça. Todos os dias, rezo por eles.

Como cristão, tenho o princípio de servir. Ainda mais no meu ramo. Tentamos ajudar as pessoas dentro das nossas possibilidades. No entanto, como toda a gente, falho muitas vezes. Tenho ainda a sorte de ter um grupo de funcionários que me tem ajudado. Outra graça de Deus. Da minha parte, tento compensá-los dentro dos possíveis, mas nem sempre é possível como a gente quer porque uma empresa tem de ter uma estabilidade forte. Por vezes, gostava de fazer mais, mas não é fácil porque são tantas exigências que não conseguimos. Se confiássemos mais em Deus, arriscávamos mais, mas como já passei dificuldades na outra crise económica, hoje vou com mais calma. 

Portanto, esta situação, como cristão é uma oportunidade de dar mais de mim. Infelizmente, deixei os meus amigos mais de lado porque, desde que começou o confinamento, há tanta coisa a fazer. Ou me viro para a empresa ou para os amigos. Não dá para tudo. Tenho muitas famílias a meu cargo. Não posso pensar só em mim, mas nos outros, principalmente, nos que trabalham comigo. 

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