Ricardo Araújo Pereira: “É essa ideia que me comove: dedicar a vida aos outros”

“A doença, o sofrimento e a morte entram num bar”, foi o título que Ricardo Araújo Pereira (RAP) escolheu para o que chamou “Uma espécie de manual de escrita humorista”. Entrevistá-lo remete para esse ambiente tão descontraído quanto familiar. Depois de uma conferência nas Jornadas Teológicas, em Braga, e quase 45 minutos depois de vários […]

João Basto
2 Jun. 2022 7 mins
“É essa ideia que me comove: dedicar a vida aos outros”

“A doença, o sofrimento e a morte entram num bar”, foi o título que Ricardo Araújo Pereira (RAP) escolheu para o que chamou “Uma espécie de manual de escrita humorista”. Entrevistá-lo remete para esse ambiente tão descontraído quanto familiar. Depois de uma conferência nas Jornadas Teológicas, em Braga, e quase 45 minutos depois de vários autógrafos e fotografias, RAP, como é conhecido informalmente, ainda tem energia para se sentar no meio de um auditório, disponível para responder a perguntas, numa postura precisamente semelhante a quem chega a um bar para uma conversa interminável entre amigos.

De uma família com origem no Alto-Minho, mais precisamente Paredes de Coura, de onde era natural a sua avó, que várias vezes identifica com a pessoa mais importante da sua vida – ponto que acabaria por ser o pontapé de saída inesperado da conversa –, a indubitável inteligência de Ricardo Araújo Pereira vê-se, antes de mais, pela disponibilidade e atenção com que permanece ao longo de toda a entrevista, que se aproxima mais de um encontro informal do que de uma conversa altamente estudada, que acabou por circular de Marx, e do seu aparente elogio ao Cristianismo, até às diferenças entre um padre e um padreca.

Ricardo Araújo Pereira (RAP): Quando é que vai sair a entrevista?Notícias de Viana (NdV): Dia 2 de junho. Uma quinta-feira.RAP: E como se chama o Jornal?NdV: Notícias de Viana. Muito possivelmente vai ser lido na terra da sua avó, e, também, em Castro Laboreiro.RAP: [Risos].NdV: Já agora, tem alguma mensagem para deixar à população que se sentiu muito melindrada com uma cena de uma telenovela da TVI?RAP: Pois foi. Mas duvido que tenha sido a população toda. Porque acho que a maior parte da população se está borrifando para novelas da TVI, o que eu acho uma conduta correta e louvável. Creio, também, que os cães de Castro Laboreiro não se deixam ofender com facilidade. E é isso: acho que somos de uma terra em que cenas de novelas não são capazes de nos melindrar. “É essa ideia que me comove: dedicar a vida aos outros”NdV: O Ricardo diz algumas vezes que se sente o “ateu de serviço”. Como se sente nesse papel?RAP: Sou sempre muito bem recebido. Os católicos, e os protestantes também, porque, às vezes, também vou a igrejas protestantes, são muito benevolentes em relação a mim. Não sei se é uma característica deles ou se é uma forma de fazerem proselitismo e me chamarem para a Igreja, mas de qualquer das formas é muito agradável.NdV: E ainda agora, na conferência, disse que gosta de padres mas não gosta de padrecas. É uma pergunta ingénua, mas o que significa isso? Qual é a diferença entre uns e outros?RAP: Acho que toda a gente sabe. O padreca, como o sufixo indica, dá-se a certas mesquinharias, acho que não interpreta corretamente o voto que fez, não desempenha corretamente a missão da qual foi investido, que é uma missão importante e nobre, e a gente consegue distingui-los; consegue-se topá-los e perceber quando a pessoa à nossa frente é um ou outro. É o que eu vos digo sempre: eu tive as melhores experiências com padres, nunca me confrontei com padrecas. Mas sei que eles existem, porque os vejo na rua, apesar de nunca ter convivido proximamente com nenhum.NdV: Mas, para um ateu, a existência de padres faz sentido?RAP: Faz, porque eu estou ciente e admito o sacrifício que eles fazem, até porque a escolha que fazem implica uma série de privações. Sempre tive uma admiração grande por uma pessoa que diz assim: “Acho que vou dedicar a minha vida aos outros”; e os padres com quem eu convivi davam demonstrações diárias de que esse tinha sido o caminho que tinham escolhido: dedicar a vida aos outros. Há uma inclinação para a bondade, que eu não digo que não exista noutras pessoas, até em não crentes, mas que eu fui encontrando e registando nos padres e nas freiras que me educaram, e é essa ideia que me comove, dedicar a vida aos outros, a servi-los. O lema do Externato da Luz é “Educar para servir”. Acho isso admirável.NdV: O Ricardo propõe que o humor e o cristianismo até se podem encontrar, mas afirma, simultaneamente, que existe sempre um abismo entre ambos. Por outro lado, Marcel Gauchet, no livro “O desencantamento do mundo”, postula que o cristianismo é a religião da saída da religião, dizendo que Cristo é, acima de tudo, subversivo e que inverte a realidade. Dado que o humor é, como explicou, uma inversão da realidade, humor e religião não são uma coisa, só que invertida?RAP: De facto, na figura de Cristo e naquelas ideias tão extravagantes, como falamos aqui hoje, “dar a outra face”, “os últimos são os primeiros”, “oferece tudo e segue-Me”, rodear-se das pessoas de quem Ele se rodeou, que não eram senadores nem advogados, mas pescadores, tem a estrutura da comédia, porque é o contrário do que se está à espera. Repare: a ideia de dar a face a quem nos bate tem algo de cómico, como no filme do Hitchcock em que a perna de peru congelada com que uma mulher mata o marido é a mesma que ela acaba por servir aos polícias que vão a casa investigar as causas da morte. Quem sabe se S. João Crisóstomo fez a contabilidade correta? Ou seja, de que Cristo chora duas vezes, mas não ri nenhuma, no Novo Testamento; e quem sabe se não podemos interpretar o Seu comportamento sobretudo como humorístico. Há, aliás, livros sobre isso.NdV: Os cristãos são chamados muitas vezes a construir um novo céu e uma nova terra, e o Ricardo, no seu manual de escrita humorista, diz que, em certos momentos, o humorista também se vê forçado a inventar uma nova realidade. Há uma coincidência entre ambas as atitudes?RAP: Talvez, mas no vosso caso, eu creio que vocês querem mesmo operar uma transformação. No caso do humorista, o que fazemos transforma apenas a forma como a gente vê, ou seja, é uma mudança de perspetiva. O que nós fazemos é atacar e descobrir no mundo, que parece tão gigantesco, inóspito e áspero para nós, o ponto que ele não controla que é a maneira como olhamos para ele. Há, claro, uma maneira correta de olhar para o mundo e há o olhar humorístico, que aponta para essa brecha, para as ambiguidades. Isso, na verdade, não transforma o mundo, transforma apenas a perceção.NdV: Marx apelidou a religião de ópio do povo. E os cristãos tendem a procurar defender-se disso. Dadas algumas experiências de alguns heterónimos de Fernando Pessoa, em particular de Álvaro de Campos, isso não é, antes de mais, um grande elogio?RAP: [Risos] Exato. Mas sabe o que é curioso? Quando Marx diz isso, não está a criticar. Ele está a dizer que isso é uma forma de as pessoas se protegerem da adversidade. Ele nunca fala da religião de forma sobranceira. A frase tem sido interpretada como uma crítica, quando não o é. É uma forma de dizer que a religião é um conforto, na medida em que é um bem para a humanidade.NdV: Ricardo, muito obrigado.RAP: Ora essa.

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