Pe. Pablo Guerrero Rodriguez, Sj: “A Violência Doméstica é um problema nosso.”

No mês em que o Papa Francisco coloca nas suas intenções a oração pelas mulheres vítimas de violência, entrevistamos o Pe. Pablo Guerrero Rodriguez, padre espanhol, membro da Companhia de Jesus e professor da Pontifícia Universidade de Comillas em Madrid, onde ensina “Teologia Pastoral” e “Cuidado pastoral em situações de conflitos”. Em Portugal, tem publicado o livro “Muito mais que dois. Uma aproximação pastoral ao casal e à família”.

João Basto
24 Fev. 2021 10 mins
Pe. Pablo Guerrero Rodriguez, Sj: “A Violência Doméstica é um problema nosso.”

Quais acredita serem os desafios a que a Igreja tem hoje que responder?

Há dois grandes sectores que vão lançar a Igreja no futuro, e não é ao acaso que o Papa Francisco lhes tenha dedicado os dois primeiros Sínodos: refiro-me à família e aos jovens, pois o futuro joga-se na atenção pastoral a ambos os grupos. Mas também está no grande desafio da conversão pastoral da Igreja: linguagens, estruturas, maneiras de estar, horários, plataformas, etc.

Está, igualmente, muito presente o desafio da reconciliação: reconciliação consigo mesmo, reconciliação com a criação, reconciliação com os que pensam de forma diferente, reconciliação com Deus…

Por outro lado, a Igreja enfrenta o desafio da atenção pastoral no âmbito da diversidade sexual, isto é, a atenção pastoral e próxima as pessoas do âmbito LGBTI. Mas, da mesma forma, o papel da mulher na Igreja; a defesa da vida, de toda a vida, em todo o momento e circunstância …

Há muito trabalho, mas vale a pena.

“Uma Igreja em saída” converteu-se numa expressão de referência no pontificado do Papa Francisco. Que significa e como podemos encarar hoje essa proposta?

Significa, basicamente, que temos que passar de uma pastoral de manutenção a uma pastoral verdadeiramente missionária. Sair dos nossos espaços de conforto e dirigir-nos aos que estão longe. 

Trata-se, na verdade, de ser sensíveis às dificuldades concretas que os nossos contemporâneos têm na vivência da sua fé e para acreditar em Deus. Trata-se de ser e estar próximos aos problemas, às necessidades, às incertezas das pessoas que nos rodeiam. Mas, igualmente, adaptar linguagens, estruturas e modos de atuar. 

Neste mês, o Papa pede uma oração especial pelas mulheres vítimas de violência. Enquanto Igreja, que devemos ter em conta nestas situações?

Em primeiro lugar, que se trata de algo muito real e, desgraçadamente, muito mais comum do que pensamos. Que as mulheres vítimas de violência se sentem desamparadas e, em muitos casos, os agressores convenceram-nas de que são pessoas indignas, inúteis e desprezíveis. Em algumas situações, elas sentem-se culpadas pelos maltratos. Temos que ter em conta que essa mulher concreta e os seus filhos estão numa situação de perigo grave que pode levar, inclusivamente, à sua morte. Uma mulher nessas circunstâncias precisa de ser escutada com respeito e, sobretudo, necessita de se sentir querida, necessita de saber que entendemos o que lhe acontece, necessita saber que não está louca, que não é má pessoa, que não merece um castigo, que ela não é responsável pelos maltratos; e que só existe um culpado, e que esse culpado é o agressor. 

Diante das situações, sentimo-nos, muitas vezes, impotentes. Que podemos fazer, concretamente, para ajudar estas pessoas?

Como disse anteriormente, o primeiro e principal é escutá-la e acreditar nela. É absolutamente necessário que se sintam acolhidas na Igreja. A Igreja deve mostrar-se, tanto diante dessa mulher concreta, como diante de toda a sociedade, como realmente é: um lugar de refúgio, de acolhimento e de proteção. Uma vítima de violência machista deve confiar que, na Igreja, vai encontrar um abraço e uma comunidade. As nossas homilias, as nossas liturgias, as nossas catequeses, os nossos documentos oficiais, o nosso trabalho social, os nossos meios de comunicação social, tudo isto deve mostrar às mulheres, vítimas de violência, que estamos com elas. Como disseram há já quantos anos os Bispos norte-americanos devemos cuidar a nossa linguagem para que as vítimas se sintam acolhidas e, também devemos identificar publicamente a violência contra as mulheres como um pecado enormemente grave, ou seja, o que desde sempre chamamos, na Igreja, um pecado mortal. 

Mas, por outro lado, os cristãos devem ser formados para poderem detetar esse tipo de problemas, saber como aproximar-se das vítimas, conhecer os recursos com que contam, neste âmbito, nas nossas cidades, regiões, países, etc. Creio que as Dioceses devem organizar cursos de formação para agentes de pastoral, dando a conhecer tudo o que o Papa Francisco diz neste âmbito.

Então, nos casos de violência doméstica, quais os sinais a que devemos estar atentos?

Nem sempre é assim tão fácil. Em primeiro lugar, porque o agressor, em muitos casos, em público, na frente de outras pessoas, é charmoso, educado, elegante, prestável, as mulheres maltratadas muitas vezes não são credíveis, justamente pela boa imagem social que o agressor possui. Existem muitos indicadores. Para citar alguns:

– normalmente, o agressor vai “trancar” a vítima: vai insistir para que não trabalhe fora de casa, vai gradualmente separando-a dos amigos e familiares;

– em público, podem aparecer comportamentos depreciativos quando a mulher dá a sua opinião ou faz algo;

– os agressores são controladores, ciumentos e possessivos; eles controlam o telefone, as redes sociais, os horários, o uso do carro, a forma de vestir;

– a mulher maltratada vai sair à rua menos tempo sozinha;

– a mulher maltratada pode ter mais acidentes domésticos do que o normal (porque na realidade não são acidentes, mas agressões) e frequentar os serviços médicos com alguma frequência.

O meu conselho é que, se uma mulher não se sente bem tratada por quem diz que a ama, ela, provavelmente, está sendo maltratada:

– se ela é insultada;

– se ela for ameaçada ou atacada;

– se ela for forçada a fazer sexo ou realizar atos sexuais com os quais não se sinta confortável;

– se ela for desprezada e tomada por tola;

– se ela for continuamente culpada por tudo;

– se ameaçam os seus filhos ou a sua família;

– se os seus pertences forem destruídos…

Em Portugal, recorre-se a um ditado popular – “Entre marido e mulher não se mete a colher” – para, em alguns casos, justificar a nossa inação perante este tipo de casos. Como podemos desmontar este tipo de argumento? 

Em relação a “justificar-nos” para não agir, acho que devemos clarificar que, porque somos pessoas e porque somos cristãos, o que acontece ao nosso lado, ou numa família que conhecemos, ou a um colega de trabalho … afeta-nos também. Não podemos olhar para o outro lado e dizer “isso não é da minha conta”. A violência doméstica significa que uma pessoa está a prejudicar outra no seu corpo, espírito e dignidade. O agressor deve saber que não nos estamos “a rir disso” e que o que ele está a fazer é indigno, ao mesmo tempo que a pessoa abusada deve saber que estamos ao seu lado, prontos para ajudá-la no que for preciso. Se necessário, devemos ajudar e apoiar a vítima para que denuncie e se separe de seu agressor.

As grandes injustiças e genocídios da história foram possíveis porque muitas “pessoas boas” olharam para o lado, “porque não era problema deles”. A violência doméstica é um problema NOSSO. A Martin Luther King é atribuída uma frase que todos devemos aplicar a nós mesmos. Ele disse que: “Não estou preocupado com o clamor do violento, do corrupto, do desonesto, do antiético. O que mais me preocupa é o silêncio dos bons”. Diante da violência contra as mulheres, não nos podemos calar porque as nossas mães, as nossas irmãs, as nossas esposas, as nossas filhas, as nossas amigas … não merecem que nós, homens, fiquemos calados. E enquanto um homem maltrata uma mulher, eu não consigo ficar calmo …

Como pode a Igreja visitar e habitar outros contextos de famílias frágeis? 

Em primeiro lugar é deixar-se comover, com fazia Jesus. A primeira coisa que há a fazer, para ser um agente de pastoral, é amar muito, porque a evangelização não é nem mais, nem menos, do que um ato de amor. 

Depois, a presença, porque não se pode ajudar através de um “comando à distância”; temos que estar no caminho para poder ver a realidade, temos que nos encontrar com esses contextos frágeis. Depois, há que dialogar, isto é, partilhar e escutar respeitando os valores e a vida dos demais. Temos que acreditar que Deus já habitava nessas famílias, antes de nós chegarmos. Deus trabalha, consola e anima esses contextos de fragilidade familiar. Temos, também, que nos deixar afetar, como diria St. Inácio, perceber desde o interior, tentar compreender em profundidade, a partir da comunicação entre as pessoas concretas. Se chegamos a uma autêntica compreensão desde o coração, vai ajudar-nos a caminhar juntos até a uma resposta que ajude essa família concreta no seu caminho. No fundo, é acreditar de verdade no que o Papa Francisco nos diz na Amoris Lætitia: “toda a família é uma história de salvação”.

“Converter-se é ser atraído”, é o título do seu mais recente livro. Como é que esse horizonte ilumina a nossa experiência cristã? 

Conforme explico na introdução do livro, há uma frase que está comigo há muito tempo, desde que a ouvi nuns exercícios espirituais: “Converter-se a alguém é ser atraído por ele”. Isso tocou-me profundamente, porque sempre pensei que a conversão consistia principalmente em me afastar de … No entanto, a cada dia estou mais convencido de que a conversão tem a ver, primeiro e principalmente, com mover-me em direção a … porque fui seduzido por … Porque alguém nos atrai, nós convertemo-nos, e não o contrário.

E, de facto, o que nos salvou não foi uma doutrina (por mais bela que seja), nem discursos, nem um catecismo, nem alguns preceitos; o que nos salvou foi uma Pessoa que nos mostrou que Deus está connosco. Um dos problemas do crente do século XXI é que, às vezes, tem uma doutrina, mas não é seduzido pela Pessoa. Temos que absorver a figura de Cristo, o que Ele faz, o que diz, Quem Ele é, como Se relacionou com o Seu Pai, como Se aproximou dos últimos, como Se entregou a ponto de dar a vida. Estou convencido de que, quando O descobrimos, isso mudará as nossas vidas, que nos converteremos.

Há uma frase que é atribuída a Charles de Foucauld e que expressa muito bem o que estou a dizer: “A partir do momento em que percebi como Deus era para mim, sabia que só poderia viver para Ele”.

Qual é o centro da proposta espiritual de St. Inácio de Loyola nos Exercícios Espirituais?

Se tivesse que resumir essa proposta em poucas palavras, diria que Inácio busca despertar em nós a gratidão. Creio que os Exercícios Espirituais são uma pedagogia do olhar para que percebamos como Deus é, como Se revela a nós em Jesus Cristo. Se fosse dar um “esboço” dos Exercícios, diria que começam com um apelo, com uma oferta de libertação de um Deus que nos cria e nos ama loucamente [Princípio e fundamento] e que terminam com uma generosa resposta grata e livre da criatura ao seu Criador [Contemplação em chave de amor]; e entre os dois, o que Inácio de Loyola nos propõe são quatro semanas de conhecimento e identificação com Jesus Cristo.

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