Pe. Frei José Dias de Lima: “S. Francisco de Assis ainda ilumina os nossos dias”

Uma semana depois de celebrar o dia de S. Francisco de Assis, o Notícias de Viana esteve à conversa com o Pe. Frei José Dias de Lima, de 60 anos, que é natural de S. João da Ribeira (Ponte de Lima) e pertence à Ordem dos Frades Menores (OFM). Frei José Lima falou do desafio de “amar como Jesus amou; pensar como Jesus pensou e viver como Jesus viveu”, assumindo que o exemplo de “S. Francisco de Assis ainda ilumina os nossos dias”.

Micaela Barbosa
14 Out. 2021 13 mins
Pe. Frei José Dias de Lima: “S. Francisco de Assis ainda ilumina os nossos dias”

Notícias de Viana (NdV): Porque decidiu ingressar na Ordem dos Franciscano?

Frei José Lima (FJL): A entrada na Ordem Franciscana não foi uma decisão imediata, aliás, a vocação sacerdotal, religiosa e missionária é, sobretudo, um chamamento interior, cuja iniciativa é de Deus, que toca o coração e a vida daquele que é chamado, e implica uma caminhada que deve ser, em primeiro lugar, uma atenção aos sinais que se nos apresentam no dia-a-dia. Os meus companheiros de colégio chamavam-me “padreco” com uma toada pejorativa, porque eu, já desde os meus seis anos, queria ser padre, mas, ao invés de me irritar, confirmava o meu propósito de ser sacerdote. O primeiro vislumbre da vocação franciscana surgiu depois do 25 de Abril de 1974, estava eu com 13 anos, e vi, a caminhar na Avenida Central de cidade de Braga, uma silhueta estranha, com umas roupas castanhas que eu nunca vira, capelo e corda à cintura e aquilo ficou-me na retina, e deixou-me inteiramente curioso. Ao completar quinze anos, passei a fazer parte do grupo de Jovens Alvorada, da Paróquia de Maximinos, em Braga, que me acarinharam nos meus propósitos, e comecei a dar catequese. Fomos a alguns encontros realizados no Convento Franciscano de Montariol, e aí vi de novo, não apenas um, mas vários personagens iguais aos que, há dois anos atrás, eu vira caminhando na rua. Entretanto, veio parar-me às mãos o livro, “O Irmão de Assis”, de Ignacio Larranaga, sobre S. Francisco de Assis, em que entrevi a sua profundidade de vida, a sua mensagem de amor e a sua lufada de ar puro, fresco e renovado, na Igreja do tempo do Papa Inocêncio III, mas numa linguagem de tal modo romanceada, cativante e apelativa, que comecei a sentir em mim a chama franciscana. O contacto com o Frei Guimarães e o Frei Perdigão, entre outros frades do Convento, acabou por despertar em mim o desejo de ser sacerdote franciscano, e querer ser um frade de S. Francisco de Assis, cativado que fui pela vida fraterna e desprendida da comunidade franciscana apresentada naquelas páginas e à qual me queria entregar. Foi então que, contactei o Frei Mário Silva, Provincial dos Franciscanos, tinha eu 18 anos, que me abriu as portas para uma experiência vocacional. No entanto, surgiu o serviço militar obrigatório e o Frei Mário Silva disse-me: “Vai para o exército e, se Deus te chama a ser franciscano, voltarás; se não, é porque o teu caminho não é este”. Contrariado, segui para o quartel e fiz a recruta. Mas o meu apelo interior era demasiado forte e, após a recruta, cumpri o restante serviço militar como responsável pela catequese dos filhos dos oficiais e sargentos do Campo Militar de Santa Margarida. Fui respeitado por todos os camaradas que até encontraram em mim um conselheiro espiritual. E, por fim, dei entrada no Convento Franciscano da Luz, em Lisboa, e não mais parei a minha “aventura franciscana”.

(NdV): Quais as experiências que o marcaram na vida franciscana?

(FJL): As experiências que me marcaram na vida franciscana estão indelevelmente ligadas aos  três votos que fiz, no momento da minha consagração: a experiência da pobreza, que não foi opção pela miséria, mas o desprendimento das coisas do mundo, nomeadamente o dinheiro, usando-as para ajudar e servir os outros; a experiência da castidade, que não foi a minha renúncia à sexualidade como se esta fosse um mal e consequência do pecado, mas a sublimação da mesma, não perdendo a dimensão do amor que ela desperta em mim, no amparo da fragilidade alheia; e a experiência da obediência, que não foi renúncia à minha liberdade, mas o reconhecimento de que quem obedece nunca erra, e que no ato de obedecer estava a vontade de Deus, que se devia sobrepor à minha vontade, de forma que me senti sempre no lugar certo, para servir as pessoas certas, no momento certo, consciente de que não há momento mais certo do que o momento de Deus, manifestado na alegria de obedecer. Mas a fraternidade foi a experiência mais franciscana que me marcou e marca a vida. Afianço que nunca me senti abandonado pelos meus irmãos franciscanos e que me senti bem em todas as fraternidades a que a obediência me enviou.  Claro, como acontece entre irmãos, por vezes “o caldo é entornado”, mas coisa de pouca monta e que não se resolva com um «desculpa, meu irmão» e um abraço fraterno. Mas, nestas comunidades, não vivi só a vida fraterna, mas também a vida com o povo, numa fraternura que nos une ao mundo, não para ser absorvido pelo mundo, mas para oferecer o mundo a Cristo; não para mundanizar a vida franciscana que abracei, mas para cristificar o mundo ao jeito de S. Francisco de Assis. Assim, a experiência universal de saber que faço parte de uma família de irmãos, que está presente nos cinco continentes (religiosos, religiosas ou leigos), identificados pela mensagem de Paz e Bem de S. Francisco de Assis, e que nos une, no mesmo abraço, na mesma oração e na mesma ternura que acolhe e faz feliz, como o senti, não apenas em Portugal, mas também no Brasil, na Guiné-Bissau, na Bósnia-Herzegovina, na Croácia, em França, em Itália, na Alemanha, em Espanha, em Inglaterra e em Israel, onde fui acolhido de forma fraternal por irmãos em cujo corpo existia o mesmo ADN de S. Francisco de Assis.

(NdV): De que forma S. Francisco de Assis marca a sua vida?

(FJL): O encontro com o irmão leproso, e, nesse irmão, os leprosos de todos os tempos, no meu entender o momento mais profundo no processo de conversão de S. Francisco de Assis, e da volta de trezentos e sessenta graus que o levou do sonho de ser cavaleiro à realidade de se ter tornado no “Pobrezinho” de Deus”, está o traço deste santo, que mais marcou a minha vida. Naquele leproso estava Cristo e isso levou S. Francisco a colocar as pessoas, sobretudo os pobres, os deserdados da sorte e os privados de amor, no topo das suas preocupações e no centro do seu coração. No leproso, Francisco encontrou o rosto desfigurado de Jesus Cristo e não resistiu em descer do seu cavalo para o beijar, certo de que o amor é a única força que une aquilo que está separado, e que dá coragem de transgredir as leis e normas humanas. De facto, era proibido aproximar-se de um leproso, a doença era altamente contagiosa, mas Francisco ultrapassa os limites do impensável e vai ao encontro, aproxima-se, toca, abraça e beija num amor que dá coragem de morrer para o outro viver. O leproso era a última fronteira, a prova de fogo e passou essa prova, tornando-se livre para Deus e os seus irmãos, sem medo e sem preconceitos. Foi este, de facto, o homem composto de pedaços de carne podre, desfigurado, coberto de chagas fétidas e purulentas que ele beijou quer nos pés, quer nas mãos e, imagine-se, na boca. Foi o beijo da paz por excelência, um beijo tão franciscano, beijo da caridade, da união, o sopro de vida, o hálito que alenta, o toque que refaz, e torna novo o velho, aceite o desprezado, amado o abandonado, pacificado o que estava em guerra. Para Francisco não bastava contemplar a Deus, lá no alto da Cruz pendido em Seu Filho, era preciso aproximar-se d’Ele, beijar-Lhe as chagas e amá-Lo no instante daquele beijo, ao mesmo tempo tão transcendental e tão humano. Foi isto que marcou S. Francisco em mim e o desejo de me tornar um outro Francisco embora, verdade seja dita, nem lhe chegue aos calcanhares.

(NdV): Como descreve a vida de um franciscano?

(FJL): A vida de um franciscano deve ser a vida ao jeito de S. Francisco de Assis, assim como a vida de um cristão deve ser uma vida ao jeito de Jesus Cristo. Mas como a vida de S. Francisco foi uma vida toda ao jeito de Jesus, um franciscano só pode viver como Francisco viveu, ou seja: amar como Jesus amou, pensar como Jesus pensou, e viver como Jesus viveu, como, aliás, nos embala a canção do Pe. Zézinho. Um franciscano deve ser um homem de pontes e derrubador de muros, vivendo de bem consigo, porque espalha a paz e o bem à sua volta, como Francisco, que foi conciliador entre as autoridades civis e a Igreja, reconciliando o Bispo Guido com o Presidente da Câmara de Assis; conciliador entre cristãos e muçulmanos, sendo o pioneiro do Diálogo Inter-Religioso, ao encontrar-se com o sultão Malik-el-Kamil, em pleno ambiente das cruzadas; pacificador do homem com a natureza, no célebre episódio do lobo de Gúbio; pacificador até com a sua própria existência, pedindo perdão ao seu corpo, a quem chamou “irmão burro” pelos maus tratos que lhe infligiu, para fugir às tentações, e também pacificador com a própria morte, a quem chamou “irmã” por ser a ponte para a eternidade.

(NdV): Em linguagem popular usa-se, frequentemente, a expressão “pobreza franciscana”. O que significa, de facto?

(FJL): Um franciscano deve viver pobre, não no sentido de privação dos bens materiais, que o franciscanismo não é a consagração da miséria (que parece ser esse o sentido que lhe apreende muita gente), mas no sentido de que tudo o que temos deve servir para nos colocarmos ao serviço dos outros, porque, e pegando na exposição genial do Papa Francisco, assim como “os rios não bebem a sua própria água, as árvores não comem os seus próprios frutos e as flores não guardam a sua fragrância para si, porque viver para os outros é regra da natureza” e, acrescento eu, como a mãe não guarda para si o amor que lhe vai na alma, nem o pai guarda para si o fruto do trabalho que alimenta a família, também o franciscano deve agir nesta dinâmica altruísta ou seja, desprender-se de si e do que tem, sem deixar de ser o que é, para se dar totalmente aos outros.

(NdV): Ao longo da sua vida religiosa, dedicou muito tempo a contar e a escrever histórias. De que modo isso é importante para si?

(FJL): Em primeiro lugar, não se trata de ser importante para mim, mas porque é importante para os leitores, como foi e é importante para quem as ouve. Ora, escrevi as histórias (escritas do que preguei), porque sempre entendi que o meio mais eficaz e criativo de transmitir a Palavra de Deus e levá-la ao coração dos homens é seguindo a estratégia catequética de Jesus Cristo, que é o método das parábolas e histórias de vida que o Divino Mestre tirava do quotidiano das pessoas. Ora, tendo consciência do quanto este método de evangelizar é útil para a formação catequética e da maturidade pessoal dos ouvintes, bem como uma forma concreta, prática e positiva de ver a vida, não hesitei em adotá-lo na minha ação pastoral junto de crianças, adolescentes, jovens e adultos ou em qualquer situação a que Deus me chamou e me chama a anunciar a Boa-Nova proclamada pelo Seu Divino Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo, como cristão, franciscano e sacerdote. Sublinho, inclusive, que este método, que na pregação se chama “casuística”, é hoje colocada em prática através das redes sociais, com histórias em pequenos filmes de, por vezes, não mais de cinco minutos (por exemplo: Fábio Teruel e Dhar Mann), não apenas para transmitir uma mensagem religiosa, mas também para ensinar regras de comportamento, de cortesia e de civismo que, aliás já foi preocupação nas histórias que também publiquei.

(NdV): De que modo pode ainda o exemplo de S. Francisco iluminar os dias de hoje? 

(FJL): Em 2001, a Times, revista americana, pesquisou entre os seus leitores qual a personagem mais importante do segundo milénio. Milhares de génios, artistas, heróis e governantes foram citados. Albert Einstein, pela sua teoria da relatividade, Martinho Lutero, teólogo, escritor e fundador do protestantismo, e Thomas Jefferson, herói da independência dos Estados Unidos, ficaram no topo, mas foi S. Francisco de Assis a ocupar o primeiro lugar da tabela como a personagem mais importante e influente na história da humanidade entre o ano mil e o ano dois mil. O Papa S. João Paulo II, aceitando a proposta dos membros da Associação Internacional «Instituto de Planificação Ambiental e Ecológica para a Qualidade de Vida» proclamou em vinte e nove de novembro de 1979, com a Carta Apostólica «Inter Sanctos Præclarosque» (de entre os homens santos e ilustres), S. Francisco de Assis Patrono Celeste dos Ecologistas. Com efeito, antes que a Ecologia descesse das Universidades para as ruas; de congressos de peritos para as preocupações de governantes; dos livros de especialidade e rigorosamente científicos para as colunas dos jornais, para os ecrãs das televisões e plataformas sociais, e antes de aparecer na voz angustiante de ambientalistas como Greta Thunberg, com o seu “HOW DARE YOU!”,  já S. Francisco de Assis tinha andado pelas cidades, ruas, campos e caminhos proclamando o seu amor à natureza e o respeito por todos os seres criados. Não deixa de ser verdadeiramente admirável que foi no meio dos mais agudos sofrimentos físicos, dois anos antes de morrer, que escreveu o “Cântico do Irmão Sol” no qual o santo louva todos os elementos da natureza, como que resumindo todo o esforço da sua vida, que foi o de tentar integrar os seres humanos e a natureza como irmãos em Deus. Hoje, S. Francisco choraria a ingratidão dos homens que destroem a natureza. S. Francisco intuía perfeitamente que a sobrevivência do homem dependia da limpidez da «irmã água» que é humilde preciosa e casta, da pureza do ar e do respeito pela «mãe terra que nos alimenta e governa e produz ervas, frutos pão e flores», do «irmão sol» que aquece, do «irmão vento» que refresca, da «irmã nuvem» que rega etc… Sim, S. Francisco de Assis ainda ilumina os nossos dias, e é um precioso referencial de quem os homens devem aprender, porque ao ódio, à ofensa, à discórdia, à dúvida, ao erro, à tristeza e às trevas, ele levou o amor, o perdão, a união, a fé, a verdade, a alegria e a luz.

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