Para lá da religião burguesa

O título é originário do nome dado por Johann Baptist Metz à coletânea de uma série de textos redigidos no final dos anos 70 do séc. XX, cuja receção acabaria por gerar, inclusive, um debate teológico, quase pessoal, entre outros dois grandes teólogos: Karl Rahner e Joseph Ratzinger.

Notícias de Viana
23 Jun. 2023 7 mins
Para lá da religião burguesa

Contra a ideia de que a mudança de coração pedida por Cristo é unicamente um processo interior, o teólogo alemão, assinala, perentoriamente, que “por debaixo das prioridades do Evangelho, praticam-se as prioridades da vida burguesa”. Esse é, aliás, o seu diagnóstico mais disruptivo: dimensionado a partir do seguimento radical, da pobreza, do desapego e da conversão, o cristianismo acabaria por assumir os valores burgueses contrários, como a estabilidade, a propriedade, a autonomia e o êxito.

Mas, longe de este ser um processo medieval, para Metz, a sua origem situa-se, antes de mais, no contexto daquilo a que chama de “primeira reforma”, coincidente com a “dissolução do mundo feudal da Idade Média”, que acabaria por potenciar o ambiente político e social propicio ao surgimento do protestantismo. Segundo ele, vivemos hoje – ainda que este hoje tenha começado por o ser no final do século passado – uma segunda vaga desse ambiente reformista, que ele denominou como transição para um mundo pós-burguês, caracterizado por um ambiente de tensão entre “o desespero e o compromisso (…), entre a autoafirmação sem contemplações e a solidariedade debilmente desenvolvida”.

O diagnóstico é, em tudo, semelhante ao do Papa Francisco, na famosa formulação segundo a qual “não vivemos uma época de mudança, mas uma mudança de época”, algo repetidamente comprovado pela cultura mediática, que nos prende entre o horror da catástrofe e o fascínio da salvação, e, mais recentemente, até, pelas manifestações, em França, dos trabalhadores ligado à recolha do lixo, dado que, como assinalou António Guerreiro num artigo do Público, a ação sindical, mais do que chamar a atenção para as revindicações, acabou por mostrar o submundo de resíduos e dejetos que a vida capitalista e urbana produz, e dos quais se apressa a fugir, a esconder ou a depositar à responsabilidade dos menos poderosos. A este respeito, diria Metz: “o individualismo ocidental começa a ser, cada vez mais, um fenómeno cultural marginal”.

1. De facto, segundo o teólogo alemão, a cultura burguesa fez encobrir a tensão, desparecer os perigos, suavizar contradições, mas, para ele, à “ocultação das virtudes messiânicas” não se responde com rigorismo, nem com uma “estratégia de latente desconfiança, nutrida de suspeita”, mesmo que esta possa nascer de uma perceção verossímil de que, hoje, a Igreja tem menos capacidade de mudar o coração. Mais que conflito e encenação de batalhas, Metz dá a solução: “se a Igreja fosse ‘mais radical’ evangelicamente, talvez não necessitasse de ser tão ‘rigorosa’ legalmente. O rigorismo procede do medo, ao passo que a radicalidade nasce da liberdade”.

2. As questões por ele lançadas não são menos acutilantes: “Nós convertemo-nos, ou limitamo-nos a acreditar na conversão, seguindo iguais a nós mesmos, limitando a conversão em que acreditamos? Praticamos o seguimento, ou limitamo-nos a acreditar nele, continuando a percorrer os mesmos caminhos de sempre, diminuindo o seguimento em que acreditamos?” (…) “Será o cristianismo uma religião puramente afirmativa (…), uma religião dos vencedores, com um excedente de respostas e um deficit correspondente de perguntas apaixonadas?” “Não se cristaliza permanentemente o cristianismo num triunfalismo teológico-salvífico perigoso?” “Não há, na nossa história, um deficit de resistência e um excedente de adaptação?”.

3. Não por acaso, quando começou o Concílio, João XXIII, mesmo que consciente da necessidade de uma “primavera” dentro da Igreja, falando dos sinais dos tempos, sintonizou-os no exterior: o renovado papel da mulher na sociedade, a necessidade de uma igualdade entre os povos, e a legitimidade das lutas sociais. Três aspetos que, anos antes, teriam sido, sem medo, classificados como perigosos erros modernistas. A intuição era que a renovação não podia depender simplesmente de uma eclesiologia para os problemas internos. Tinha de ser recuperada a ideia de Reino de Deus, pois, como insistiu, há pouco tempo, o Papa Francisco: “mesmo ouvindo uma linguagem totalmente ortodoxa, aquilo que os fiéis recebem, devido à linguagem que eles mesmos utilizam e compreendem, é algo que não corresponde ao verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo”. Por isso, terminado o Vaticano II, Johann Baptist Metz, influenciado pelo dramatismo do séc. XX, elencou três grandes paisagens epocais, nas quais se jogaria o futuro.

Em primeiro lugar, o fracasso de um modelo antropológico que vê a humanidade como fruto ou obediência à técnica, criando uma “antropologia da dominação, da vontade de poder e da subjugação”. A esta, o pensador germânico opôs a cultura do pão da vida: a) para que, trazendo de novo a morte à nossa vida, ela não se transforme num puro sobreviver; b) para que, à vida apática se traga, de novo, a capacidade de sofrer, acreditando que o que “rouba a vida não é o sofrimento, mas a sua marginalização e coisificação”; c) para que se reintroduza o amor numa vida de dominação; d) e para que não nos façamos tão rapidamente fortes, que coloquemos de lado o medo. Ou seja, urge proceder a uma revitalização que torne visível o luto, a paixão e a morte.

Por outro lado, identificou um gritante medo de contacto manifestado pelo terror ao natural, pelo medo diante dos conflitos sociais, pelo pânico perante a necessidade, e o pavor face ao “terreno” e ao “corpo feito carne”. A causa, diz Metz, é uma cultura de dualismos e de obsessão por um conceito de puro, “cerebral, nervoso, abstratamente insensorial”, que afastou o cristianismo da sua dimensão palpável, reforçando um escudo e manto de invisibilidade, no qual as nossas próprias omissões e infidelidades acabam por desvanecer, tal como desaparece tudo o que impacta e fere, num processo de construção contínua de um mundo-Disneylândia. 

Em último, a atenção centra-se na “relação conflituante com a liberdade”, mas, em particular, na criação de uma liberdade que, porque fundamentalmente individual, deturpa ou obscurece a liberdade enquanto libertação, na qual o “indivíduo não se isola, mas se experimenta livre diante de Deus na sua coletividade solidária”, e em que “o povo de torna livre, e se sente chamado”. Para exemplificar o que está em causa, Metz afirma o seguinte: “não tenho nada contra o dinheiro que damos às Igrejas mais pobres, com a condição de que não nos esqueçamos que esse dinheiro também torna invisíveis, para nós, o sofrimento e as lutas dessas Igrejas pobres”. Assim sendo, acionando a categoria de Igreja como Povo de Deus, o teólogo alemão afasta-se de uma eclesiologia da auto-satisfação. 4. No entanto, todo este percurso de saída e reforma da religião burguesa só é pensável se existir uma mudança naqueles que são os “protegidos”: aqueles a quem a atenção é dirigida. Em vez dos “acólitos”, dos “leitores, dos “catequistas”, da “doutrina”, em sentido absoluto, Metz aponta para uma “Igreja de base”, compreendida enquanto espaço de vida e de diáspora, com atenção descentrada das categorias forçosa e exclusivamente eclesiásticas.

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