O Seminário Diocesano de Viana do Castelo: Prioridade da Identidade Diocesana – subsídios para a sua história – parte LXXXVI

Um processo perdido O «Bracarense» – o maior protagonista do Concílio de Trento, segundo o historiador alemão Herbert Jedin (1900-1980), ou, pelo menos, um dos principais, o que é consensual entre os italianos Paolo Sarpi (1552-1623), Pietro Sforza Pallavicino (1607-1667) e Oderico Rainaldi (1595-1671) – não seria, portanto, um ilustre desconhecido no universo da Cristandade […]

Notícias de Viana
1 Jul. 2022 9 mins
O Seminário Diocesano de Viana do Castelo: Prioridade da Identidade Diocesana – subsídios para a sua história – parte LXXXVI

Um processo perdido

O «Bracarense» – o maior protagonista do Concílio de Trento, segundo o historiador alemão Herbert Jedin (1900-1980), ou, pelo menos, um dos principais, o que é consensual entre os italianos Paolo Sarpi (1552-1623), Pietro Sforza Pallavicino (1607-1667) e Oderico Rainaldi (1595-1671) – não seria, portanto, um ilustre desconhecido no universo da Cristandade quando se iniciaram os primeiros procedimentos tendo em vista a sua beatificação e canonização.

A grande ressonância alcançada por um pequeno livro da sua autoria, intitulado «Stimulus pastorum», possivelmente escrito para uso privado e ultimado na última fase dos eventos tridentinos, dado a ler ao cardeal Carlo Borromeo (1538-1584), dá, por exemplo, uma ligeira noção da sua projecção, se se considerar que teve impressões em Roma (1572 e 1582) e Paris (1583, 1586 e 1622), entre as várias em idioma espanhol, a que se juntaram as do «Catecismo» (Salamanca, em 1602, e Madrid, em 1653). Em francês, a obra seria publicada na segunda metade do século XVII, assim como a sua primeira biografia. 

Talvez para assinalar os sessenta anos da morte de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, enquanto se aguardava por bons ventos, melhores vontades e, quiçá, abonos a soprar-lhes maior ânimo, a Ordem dos Pregadores evocou a sua memória numa verba do seu martirológio, visando dar força a uma justa causa.

Impresso em Roma, na oficina de Francisco Cavallino, em 1650, lê-se no título começado por «Indiculus Beatorum alliquorum Martyrum, et Confessorum Sacro Ordinis Praedicatorum»: «Frater Bartholomaeus a Martyribus, Lusitanus, Archiepiscopus Bracarensis, doctrinae pietatis et pastoralis curae magna cunctis episcopis et religiosis documenta reliquit; in concilio Tridentino maximo in pretio habitus; contemplativae vitae dulcedine declaratus, miraculis quoque meruit a Domino decorari».

Inclusivamente, no Capítulo Geral realizado nesse ano, em Roma, D. Frei Bartolomeu dos Mártires tinha sido implicitamente lembrado a propósito do dominicano converso Frei João do Rosário, seu fâmulo durante anos, egrégio no espírito de oração, humildade, caridade e religião, formado segundo o exemplo daquele arcebispo, tornando-se pai dos pobres e devoto da pobreza religiosa: «Ibidem sancto fine quievit fr. Ioannes de Rosario conversus, egregie in spiritu orationis, humilitatis, charitatis et religionis efformatus ad exemplar ac mores magni illius archiepiscopi Bracarensis fr. Bartholomaei de Martyribus, cui in annis secularibus fuerat famulatus, vere exinde pauperum pater et religiosae paupertatis apprime studiosus».

Embora se desconheça ao certo se o processo informativo sobre a fama de santidade, virtudes em geral e milagres, iniciado pelo arcebispo D. Rodrigo da Cunha, terá, de facto, chegado por esta altura a Roma para introdução da causa de beatificação de D. Frei Bartolomeu dos Mártires perante a Sagrada Congregação dos Ritos, a notícia de que o dito terá sido discutido e aprovado lá chegou, pelo menos.

Sem dizer quando, o monsenhor José de Castro (1886-1966) assegura, no entanto, por diversas vezes, que a Roma terá chegado e que por lá se terá perdido. Por exemplo, em «Venerável Dom Frei Bartolomeu dos Mártires (Arcebispo e Senhor de Braga)», de 1946, refere que «estes processos sobre a santidade de vida e milagres do nosso servo de Deus foram mandados para Roma e… perderam-se».

Alguma novidade deve ter acontecido, a ser verdade o apontamento de Luís de Figueiredo da Guerra, que, no «Archivo Viannense», de 1891, escreve nestes termos: «já annos atraz um fidalgo, da familia Velho Barreto, promovera á sua custa a causa da beatificação do Arcebispo, e como parasse com a morte do viannez, de Roma, por breve de Alexandre VII, datada de 4 de junho de 1656, mandaram proseguir o processo começado; porém estas instancias, ao que nos consta, não produziram effeito algum».

De facto, o Capítulo Geral da Ordem dos Pregadores, realizado em 1656, em Roma, onde esteve presente Frei Manuel Vasconcelos como representante da província dominicana portuguesa, não só rogou ao mestre da Ordem que, na Sagrada Congregação dos Ritos, solicitasse a beatificação da infanta D. Joana (1452-1490), filha do rei português Afonso V, uma vez que o processo informativo já tinha sido examinado e aprovado pelo ordinário, mas também que instasse a favor da beatificação de D. Frei Bartolomeu dos Mártires.

Pois, o processo do arcebispo de Braga – tal como o ordinário da infanta, instruído entre 1626 e 1627 – tinha sido igualmente discutido e aprovado, depois de um legítimo exame, conforme se acrescenta nas actas: «similiter instet pro beatificatione d. fr. Bartholomaei de Martyribus, archiepiscopi Bracarensis, cuius etiam acta legitimo examine discussa fuerunt et approbata». Faltou, no entanto, dizer quem foi a autoridade que supostamente terá dado crédito às memórias resultantes da inquirição e quando é que isso aconteceu.

Curiosamente, nesse mesmo Capítulo Geral de 1656, a memória do biógrafo daquele prodigioso arcebispo bracarense, Frei Luís de Sousa (1555-1632), foi elevada postumamente com os maiores encómios entre outros irmãos dominicanos da província portuguesa.

Se, daí em diante, a decisão da suprema autoridade na Ordem dos Pregadores terá ou não produzido a curto prazo algum efeito, não se sabe. Mas, o mais certo é Luís de Figueiredo da Guerra ter razão – «estas instancias, ao que nos consta, não produziram effeito algum» –, quanto mais não seja até ser restabelecida a diplomacia entre Portugal e a Santa Sé e o novo arcebispo de Braga tomar posse, o que somente aconteceria em 1671.

Aliás, estabelecendo um paralelismo entre o processo da infanta D. Joana e o de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, o que se verifica em ambos os casos de semelhante é que a nenhum deles foi dado andamento e os dois acabaram por dar lugar a novos processos ordinários, iniciados décadas depois, o que faz supor ter havido nos primeiros insuficiências processuais e rigor jurídico à luz da recente e mais exigente normativa respeitante às causas de beatificação e canonização, que obrigaram ao reinício do procedimento. 

Note-se, primeiramente, que, em 1686, foi iniciado um novo processo ordinário sobre a fama em geral da santidade de vida, virtudes e milagres da infanta D. Joana, enquanto um novo relativo a D. Frei Bartolomeu dos Mártires seria levado a cabo, em 1702, por iniciativa do arcebispo D. João de Sousa (1647-1710), e, em segundo lugar, que a estes dois novos processos foi mandado apensar respectivamente o treslado do teor dos primeiros.

No caso de D. Frei Bartolomeu dos Mártires aconteceu em 1713, dez anos após ter sido concluído um novo processo informativo, depois de Frei José da Coroa, prior do Convento de São Domingos, ter requerido ao arcebispo D. Rodrigo de Moura Teles (1644-1728) que mandasse notários ou escrivães trasladar, conferir e consertar o teor da inquirição para tudo remeter em forma autêntica, no seguimento de «certos requerimentos que a religiam tem» na Cúria Romana.

Depois de considerado justo o requerimento, em 29 de Maio de 1713, pelo procurador geral da Mitra bracarense, João Esteves de Carvalho (-1727), natural de São Pedro da Torre (c. Valença), a nomeação para proceder ao treslado da inquirição iniciada em 1631 e concluída em 1637 – isto é, o primeiro processo informativo – recaiu no notário apostólico João Gomes Pinto. 

No termo do treslado, concertado pelo notário Manuel Gomes Barbosa, o arcebispo D. Rodrigo de Moura Teles interpôs a autoridade ordinária e decreto judicial em 9 de Junho de 1713.

O treslado do primeiro processo informativo seria apresentado à Sagrada Congregação dos Ritos em 17 de Agosto de 1716 e aberto em 7 de Março de 1717 pelo notário Cosme Antonio de Bernardini.

Foi transcrito por Frei António do Rosário (1919-2004) – o mesmo é dizer o padre António de Sousa Carvalho – e publicada a transcrição em 1983, na colecção «Bartholomaeana Monumenta», no volume dedicado aos «Processos de canonização» de D. Frei Bartolomeu dos Mártires.

Curiosamente, o volume foi patrocinado por Manuel Rosado Coutinho, governador civil de Viana do Castelo entre 1980 e 1983 e, mais tarde, quem teve a iniciativa de indicar o local para a construção do Seminário Diocesano de Viana do Castelo, a quem o historiador dominicano, que pôs ao sol muitas fontes documentais do «Cartório Dominicano Português», agradeceu em nota introdutória, datada de 7 de Março de 1981.

Mas, ainda mais curioso é o facto de constar, na referida cópia, no termo da inquirição iniciada em 1631 e da retomada em 1635, dois reconhecimentos da letra e sinais dos respectivos juízes e escrivães, ambos assinados por Frei Manuel da Conceição, vice-prior dos carmelitas descalços do Convento de «Corpus Christi», juntamente com os religiosos Martinho da Conceição, Gaspar dos Reis, Sebastião de Santa Maria e José de Santa Maria, e datados de 16 de Junho de 1673, em pleno episcopado de D. Veríssimo de Lencastre, ou seja, trinta e seis anos depois de ter sido dado por concluído o processo, em 1637.

Se a datação do acto de reconhecimento intriga por se desconhecer a razão que o justifique decorridos tantos anos após o termo de encerramento da inquirição, quanto mais o local em que foi assinado: em Lisboa, no Convento de Nossa Senhora dos Remédios, com o reconhecimento do presbítero e notário público Manuel da Fonseca Sampaio.

É caso para perguntar com Frei António do Rosário: «atentando no reconhecimento, atrás indicado, de 1673, feito pelos de Lisboa e em Lisboa, será mostra de que por lá se deteve o Proc. de 1631/35, sem nunca ter chegado a Roma?»

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