O sacerdote. O pai. O filho. O homem.

Portugal e o Alto-Minho já não são os mesmos. Mesmo com a insistência na atualidade dos grandes clássicos, o país e a região a que os textos de Camilo, Eça, Júlio Dinis e Herculano deram corpo e ajudaram, de certo modo, a fundar, estão, há muito, em mutação. Um exemplo disso mesmo parece ser, no fim de contas, a vida que circula em torno da existência do padre, do abade, do pior e do “senhor reitor”, que, tantas vezes, era visto como a síntese da vida da aldeia, que tinha no passal e na casa paroquial uma referência geográfica importante.

Micaela Barbosa
27 Out. 2022 8 mins
O sacerdote. O pai. O filho. O homem.

Hoje, ao invés, a vida dos presbíteros parece imersa na solidão. Ainda na semana passada, um artigo no jornal digital francês La Croix denunciava um crescente mal-estar entre o clero diocesano. Falava-se de “crise na Igreja, excesso de trabalho, expectativas frustradas em relação aos seus bispos” e surgia a imagem de um “presbitério em pedaços”. No mesmo dia, o jornal americano Washington Post falava do aumento dos sinais de crise, quando a atitude de transparência face aos abusos sexuais prometia um possível reencontro com o coração dos fiéis. “Travessias do Deserto”, “Isolamento”, “Esgotamento”, “Desânimo”, são palavras que não param de emergir em documentos, notícias e artigos de opinião. A verdade é que, de entre as personagens do romance de Júlio Dinis, publicado em 1866 e denominado “As Pupilas do Senhor Reitor”, passados 156 anos, só não sobreviveu, curiosamente, o “senhor reitor”. Quer José das Dornas, o proprietário agrícola local, quer João Semana, médico, ou até João da Esquina, dono da loja da aldeia, não obstante terem seguido um caminho evolutivo, nunca deixaram de perder o seu lugar de referência na sociedade portuguesa.

Nesse cenário imaginativo, quase perdido, um papel imprescindível era desempenhado por uma cuidadora. Conceição da Silva Gomes, Lourdes Fernandes e Conceição são três das poucas mulheres que dedicaram e dedicam parte do seu tempo a cuidar dos outros, mais precisamente, de sacerdotes que passaram pelas suas Paróquias.

“Fiquei muito feliz por poder ajudá-los”

Conceição da Silva Gomes, de 86 anos, vive em Refoios, no Arciprestado de Ponte de Lima, mas foi no Arciprestado de Arcos de Valdevez que passou grande parte da sua vida. Começou por acompanhar o seu irmão, Pe. João Batista, quando foi nomeado Pároco, e mais tarde, outros padres.

A sua ligação com a Igreja começou no Batismo e continuou com a catequese, quer como catequizanda, quer como catequista. Pertenceu ainda à Ação Católica e serviu a Igreja, cuidando de sacerdotes. “Sempre me preocupei com o meu irmão e, por isso, fui com ele para as Paróquias. Mais tarde, a minha preocupação manteve-se, mas com outros, e fiquei muito feliz por poder ajudá-los”, contou, confidenciando um carinho “muito especial” pelos sacerdotes. “Isto que eu fiz vem da nossa entrega a Deus e aos irmãos de uma maneira muito especial, aos sacerdotes”, referiu, acrescentando: “É a entrega que se faz, sem medo, sem reservas, atenta a tudo o que fosse preciso e estivesse ao meu alcance, em total disponibilidade.”

Conceição admitiu ainda que aprendeu “muito” com os sacerdotes. “Houve alguém que disse que eu tinha sido catequista e a outra pessoa respondeu: ‘Não admira que ela tenha sido catequista dos sacerdotes’ (risos). Portanto, aprendemos uns com os outros e ajudamo-nos mutuamente”, salientou, recordando que a missão dos sacerdotes é “muito importante”: “Ver Cristo a servir os irmãos”. “Como vejo o sacerdote? É na proximidade com os fiéis”, defendeu, enaltecendo “a ajuda e a entrega”. “Que sejam a luz, que é Cristo, numa entrega total”, reiterou.

Depois de tantos anos cuidando de sacerdotes, é carinhosamente tratada por mãe. “Na minha humildade e simplicidade, fui procurando fazer aquilo que achava que devia fazer, que o Senhor me ia inspirando, e fico até sensibilizada”, confidenciou, confirmando que sempre os tratou como seus filhos. “Cuidei deles como se fossem meus filhos, procurando obter tudo da melhor maneira dentro da simplicidade, porque era uma pobrezinha de Cristo, a servir nesse campo, nesse amor. Mais nada”, frisou.

Conceição assegurou ainda que sempre manteve o respeito e nunca sentiu nenhum comentário negativo por cuidar de sacerdotes. “As pessoas até se sentiam felizes. Eu até achei muita graça, porque chegavam a dizer que fiquei solteira por causa do meu irmão, mas não é verdade. Eu não fiquei solteira por causa do meu irmão. Foi uma coincidência. Foi para ser livre e para servir, e tudo correu bem, graças a Deus”, afirmou, lamentando que hoje não sirvam os sacerdotes como antigamente. “Hoje em dia, eles não têm quem os sirva a toda a hora e em tudo o que eles precisam. Eu estava muito atenta nesse aspeto e nunca me poupei a sacrifícios. Era à hora que eles precisavam, ajudando-os e servindo-os da melhor maneira”, disse.

Conceição da Silva Gomes

“Não tenho nenhuma queixa”

No Arciprestado de Caminha, mais precisamente na Paróquia de Lanhelas, Lurdes Fernandes, de 76 anos, já serviu sete sacerdotes.

É católica praticante, mas foi com o Pe. Daniel que começou a servir na igreja. Era responsável pelas leituras da Missa de Domingo e, mais tarde, fez o curso de Ministro Extraordinário da Comunhão.

Acompanhou ainda o Pe. Abílio, o Pe. João Paulo, o Pe. José Domingos, o Pe. Ricardo, o Pe. Pinto e, atualmente, o Pe. João Martinho. “Hoje já trato das lides domésticas e gosto muito, porque se não gostasse, não estava aqui”, garantiu, confidenciando que tem tempo para tal porque ficou viúva.

Lurdes frisou ainda que gostou de todos eles, “sem exceção”. “Eu afeiçoo-me a eles e, quando vão embora, choro”, contou, acrescentando que “foram todos muito bons”. “Não tenho nenhuma queixa. Preocupavam-se comigo e, de um modo especial, o Pe. José Domingos, porque me acompanhou na altura em que perdi o meu marido. Depois, veio o Pe. Ricardo. Gostei muito dele. Relembrava-me sempre que, se precisasse de alguma coisa, ele estava lá. Já o Pe. Pinto, uma maravilha. Aliás, cruzei-me com pessoas de Chafé e disseram-me que estavam muito contentes com ele e, por isso, eu também estou, por saber que ele está bem”, especificou.

Depois de vários sacerdotes, ainda mantém contactos com todos. “Tenho-os como filhos e é um orgulho que eles me vejam como tal. Tanto é, que o Pe. Ricardo escreveu um livro e, numa das dedicatórias, descreve-me como uma segunda mãe”, disse, garantindo que em Lanhelas, “não há grandes conflitos” com o padre. “Não somos uma freguesia conflituosa. Veem o padre com respeito e nunca ninguém me perguntou nada sobre eles. São muito respeitadores”, reiterou, confidenciando que “nunca” foi olhada negativamente por cuidar de sacerdotes. “Eles fazem a vida deles e eu a minha. Eu não estou sempre aqui com eles”, afirmou, frisando: “Todos eles me marcaram. Só choro quando vão embora.”

Lurdes Fernandes

“Sinto-me como uma filha”

Já no Arciprestado de Viana do Castelo, na Paróquia de Alvarães, Conceição Silva, de 65 anos, cuida de Mons. António Gonçalves há 20 anos. Começou na agricultura aos 14 anos, passou pelas estufas e, mais tarde, conseguiu uma vaga para trabalhar no lar. “Fazia tudo. Cozinhava, limpava, conduzia a carrinha e fazia a higiene aos idosos”, especificou, contando que veio trabalhar para o “Sr. Reitor” quando a sua irmã Angelina, que cuidava dele, faleceu. “Ele veio falar comigo para ir trabalhar para ele, mas não queria porque, como estava habituada a estar no campo, a ser livre, sabia que aqui iria estar mais presa. No entanto, também me metia no lugar dele… Sozinho, sem ninguém para conversar ou até cozinhar quando chegava das reuniões. Ninguém merece”, referiu, confidenciando que dedica parte do seu tempo porque se preocupa com Mons. António. “Tenho um carinho especial por ele. Sinto-me como uma filha”, frisou, acrescentando: “O meu pai era muito rigoroso e exigente, e o Sr. Reitor não. Ele aconselhava-me quando pedia ajuda.”

Conceição também começou a ajudar o Monsenhor António com algumas tarefas da paróquia devido à idade. “O senhor Reitor ensina-me muitas coisas. É uma pessoa muito atenta a tudo”, afirmou, assegurando que se ajudam um ao outro. “Quando o padre tem família, é bom porque tem uma rede de apoio, mas sozinho numa casa… É uma coisa triste. Vejo isso em mim. Se não tivesse os cães, em minha casa, o silêncio é arrebatador. Não gosto disso. Até me incomoda. E, por isso, meto-me no lugar dos padres e isso deixa-me triste”, reiterou.

Sobre comentários negativos àquilo que faz, afirmou que “nunca” ouviu nada. “Se houve alguma coisa, não estou preocupada. Tenho a minha consciência tranquila”, afirmou, salientando: “O ser humano tem muito valor. Ninguém merece ficar sozinho.”

Catequese – Paróquia de S. Miguel de Alvarães

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