Frei Marco Caldas: “O Carmelo Descalço pode ser uma Casa e Escola de Comunhão com Deus e entre os irmãos convocados a partilhar a vida”

Este ano, a Ordem dos Carmelitas Descalços está a celebrar 400 anos do Convento de Nossa Senhora do Carmo, em Viana do Castelo. O Notícias de Viana esteve à conversa com Frei Marco Caldas, que deu a conhecer a história da Ordem a que pertence e a sua missão, desvendando, ainda, o programa jubilar.

Micaela Barbosa
22 Jul. 2021 14 mins
Frei Marco Caldas: “O Carmelo Descalço pode ser uma Casa e Escola de Comunhão com Deus e entre os irmãos convocados a partilhar a vida”

Frei Marco Caldas, natural de Melgaço, entrou para a Ordem dos Carmelitas Descalços com 19 anos. Fez a Profissão Solene (definitiva) no dia 3 de agosto 2009; foi ordenado Diácono no dia 25 de abril de 2010 e, no dia 16 de julho de 2011, ordenado Sacerdote com mais 4 Irmãos Carmelitas, no Santuário do Menino Jesus de Praga. Escolheu a frase bíblica, «Dai de graça, o que recebestes de graça», como lema para a sua vida enquanto carmelita. 

Notícias de Viana (NdV): Como surge a Ordem dos Carmelitas Descalços?

Frei Marco Caldas (FMC): Somos a Ordem dos Carmelitas Descalços (OCD), fundada por Santa Teresa de Jesus e por São João da Cruz, no séc. XVI, em Ávila, Espanha. Os nossos fundadores criaram esta nova Ordem a partir da tradição da Ordem do Carmo, que nos lega como Mãe, Irmã e Modelo de consagração a Virgem Maria, a quem invocamos como Nossa Senhora do Carmo.

Nós, os Carmelitas Descalços, devemos o nosso nome ao Monte Carmelo, onde se instalaram alguns cruzados e peregrinos no fim da terceira Cruzada no ano 1192, com o desejo de viver uma vida eremítica naquele local bíblico, tendo como ideal de retiro e oração o profeta Elias, que muitos séculos antes se havia instalado também nesta cordilheira, junto ao mar Mediterrâneo. Elias foi tomado não só como modelo, mas também como fundador e pai daquele grupo de buscadores de Deus. Estes eremitas seguiam a Regra de Vida que lhes deu Santo Alberto, Patriarca de Jerusalém, chamando-se Irmãos da Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo.

No séc. XIII, devido aos sucessivos ataques dos muçulmanos, os Carmelitas viram-se obrigados a voltar ao Ocidente, onde tiveram que adaptar a sua vida eremítica ao estilo de vida religiosa dominante: a mendicante. Nesta diáspora não lhes faltou o favor da Virgem Maria, que, na pessoa de São Simão Stock, lhes garante a sua proteção através do Escapulário. Depois do processo de adaptação, estes frades, além da oração constante, dedicavam-se ao apostolado, à pregação e à animação espiritual. No Velho Continente, aqueles eremitas irão fundar Confrarias e Ordens Terceiras, animando e estimulando a vida espiritual dos que deles se abeiravam. Do desejo que as mulheres também manifestavam pelos ideais daquela vida eremítica e mendicante, nasceu o ramo feminino: as Irmãs Carmelitas.

É nesta rica tradição de eremitismo e de mendicidade, e no meio da efervescência económica, intelectual e religiosa que caracteriza o Século de Ouro espanhol, que aparece a Ordem dos Carmelitas Descalços. É própria deste contexto a grande preocupação por voltar às origens da vida religiosa, por voltar a uma entrega mais radical a Deus, por unir-se a Ele por meio de uma oração mais pessoal, existencial e de poucas palavras. É esta preocupação que vive Santa Teresa de Jesus, Irmã consagrada na Ordem do Carmo, uma mulher de grande e profunda vida interior. Teresa experimentou que a oração “não é mais do que uma relação de amizade, estando muitas vezes a sós, com Quem sabemos que nos ama” (Livro da Vida – V, de Sta. Teresa de Jesus 8,5).

Foi nesta relação de amizade que descobriu a missão que “Jesus de Teresa” tinha para “Teresa de Jesus”: criar uma família religiosa que tivesse como única preocupação ser “amigos fortes de Deus” (V 15,5), através do trato de amizade com Ele. Por isso, pede as devidas autorizações para fundar novos conventos de Irmãs Carmelitas, que acabariam por levar o nome de Carmelitas Descalças. “Descalços” era um termo comum para designar os movimentos de reforma das Ordens antigas, naquela época. Estas comunidades de “amigos fortes de Deus” necessitavam, segundo a intuição de Teresa, de umas determinadas condições que favorecessem o trato de amizade com Deus: casas e comunidades pequenas; pobreza; vida comunitária e oração intensa; e ambiente propício ao silêncio. Assim, fundou em 1562 a primeira comunidade de Irmãs Carmelitas Descalças em Ávila, Espanha, onde se cultivavam os valores da amizade, humildade, desprendimento, simplicidade e determinação de imitar a Virgem Maria no seguimento de Jesus.

A partir da convicção de que tinha recebido um carisma para dar ao mundo, Santa Teresa percebe que é necessário dar mais um passo e criar o ramo masculino. Os Carmelitas Descalços organizam-se para viver o carisma que já viviam as Carmelitas Descalças e para ajudar as suas Irmãs no desenvolvimento da sua vida espiritual. Contudo, surgem com uma característica que lhes dá uma identidade própria: viver aquele silêncio orante no meio da atividade apostólica, procurando conciliar os momentos de contemplação com a missão. Teresa de Jesus encontra-se com o então João de S. Matias, frade da Ordem do Carmo, que também desejava seguir a Cristo de forma mais radical e evangélica. A partir do diálogo entre os dois, da partilha de experiências e preocupações, de alegrias e tristezas, João apaixona-se pelo novo estilo de vida que lhe apresenta Teresa, e decide aderir aos seus projetos de ajudar a criar o ramo masculino da descalcez carmelita, que adotará o nome religioso de João da Cruz. A primeira comunidade masculina foi fundada em Duruelo, província de Ávila, em 1568.

Uns e outros, Irmãs e Frades, decidem-se a ser mais fiéis ao espírito da Regra Primitiva de Santo Alberto de Jerusalém, formando comunidades orantes e fraternas, em que se respirasse um verdadeiro espírito evangélico. Às Irmãs é-lhes pedido que se dediquem à oração e contemplação, levando no seu coração as grandes necessidades da Igreja e do Mundo; aos Frades, é-lhes pedido que vivam o mesmo ideal de amizade e intimidade com Cristo na oração, mas que também O anunciem onde for mais necessário pelo testemunho e pela pregação.

Com o desejo de viver esta mesma espiritualidade, mas totalmente inseridos na sociedade, surgem os Carmelitas Descalços seculares, ou leigos Carmelitas Descalços, com três grandes orientações para a sua vida, que assumem como compromisso na sua consagração no Carmelo Descalço: a oração pessoal e comunitária, a vida em fraternidade e o testemunho cristão na família e na sociedade.

A Província de Nossa Senhora do Carmo em Portugal está presente em várias cidades: Viana do Castelo, Braga, Porto, Marco de Canaveses, Fátima e Funchal. Somos 30 Padres e temos ainda uma ordenação marcada para o dia 16 de julho, três estudantes carmelitas em fim de curso e três noviços.

NdV: Qual é, e o que destaca, do carisma e da proposta espiritual dos Carmelitas dentro da Igreja?

FMC: O carisma carmelita descalço está fortemente marcado pelos ideais da comunhão fraterna e da oração fecunda e apostólica. Também é parte da nossa identidade a contemplação de Deus, o amor e a imitação da Virgem Maria e São José, que haveriam, segundo o desejo de Santa Teresa, inspirar e proteger a vida das comunidades e fraternidades carmelitas. Desta forma, nos nossos dias, o Carmelo Descalço pode ser uma Casa e Escola de Comunhão com Deus e entre os irmãos convocados a partilhar a vida, seja nos Conventos, seja nos grupos de leigos, formados por jovens, adultos e famílias.

Como comunhão de uma única Família, em três ramos, todos assumem, segundo a sua especificidade própria, o compromisso de ser um testemunho alegre da íntima comunhão com Deus e com os irmãos. Deste modo, vão transbordando para o mundo a abundância do amor que Deus derrama em seus corações pela oração, entendida como trato amigo e contínuo com Cristo.

Os Frades e Padres Carmelitas Descalços privilegiam a vida orante e comunitária, mas são de vida apostólica. Vivem em comunidades com cerca de quatro a cinco Frades, onde partilham a alegria de terem recebido a mesma vocação e missão. Realizam na Igreja as obras que mais lhes são solicitadas, mas privilegiam a promoção da vida espiritual, mediante a orientação de retiros, encontros de oração, casas de espiritualidade e etc.

NdV: Hoje em dia, há jovens interessados neste tipo de vida? Quais as principais razões que os levam a seguir esta vocação?

FMC: Sim, temos jovens a bater à porta. E daqui surgiram novos consagrados: Carmelitas Descalços. Desde 2015, já tivemos vários encontros. “A Família dos Carmelitas Descalços pensa em ti, jovem à procura de um Rumo, e oferece-te oportunidades de clarificação e decisão vocacional mediante os encontros com RUMOS”. RUMOS são encontros de fins-de-semana, a realizar em Fátima, orientados por casais, Irmãs e Sacerdotes, que pretendem apresentar-te, em igualdade de circunstâncias, a vocação ao Matrimónio, à vida consagrada, à vida laical e ao sacerdócio e ajudar a fazer um caminho de discernimento, diálogo e oração em três etapas, ao longo de um ano, a fim de descobrir e acolher o chamamento que Deus te dirige.

Durante estes encontros e para além deles, pode dispor-se sempre de casais, Sacerdotes ou Religiosas da Família Carmelita para fazerem o acompanhamento com encontros pessoais, por email ou telefone.

Também pensamos com eles uma data apropriada para realizar um retiro anual. Para mais informações, contactar amigos@carmelitas.pt.

NdV: De que modo a Ordem dos Carmelitas chega até Viana? E como surge o Convento de Nossa Senhora do Carmo?

FMC: “Este zelo do aumento da Província era causa de andar contentíssimo (o Padre Provincial Frei Martinho), apressando-se a fundar, na ilustre vila de Viana, uma casa cuja primeira pedra foi lançada no dia de Nossa Senhora do Carmo, 16 de julho de 1621”. Deste modo, o autor da Crónica regista o acontecimento de tão grande importância para ambas as partes: Ordem e Cidade.

Reza o texto que, no Capítulo de 5 de maio de 1618, no Convento de Lisboa, o ambiente era tão admiravelmente calmo e pacífico que só poderia ser o Deus da paz a derramar sobre todos os capitulares ali reunidos o Seu exemplo unificador. As eleições decorrem, por isso, exemplarmente para grande satisfação do Padre Provincial, zelador extremoso do bem das suas casas. Particularmente nesse tempo, a sua felicidade vinha do projeto de fundar a casa de Viana, local onde, desde 314 a.C. havia notícia de uma que, com todas as convulsões na Península, se perdera, tendo-a recuperado D. Afonso III, situando-a “onde hoje está”, diz o cronista: na terra de “excelentes talentos (…) de ciências e de letras”, de “habitantes de ânimos generosos para as armas  e (…) mercancia”, terra “avantajada a muitas vilas das famosas do reino” cuja “nobreza dos moradores dos  melhores apelidos de Portugal”, na “honra mais que liberais“, “animosos, briosos, sisudos e amigos do bem comum”… E o elogio não se fica por aqui, reforça-o, referindo-se a Viana como (vila) “ maior que todas em riquezas grangeadas no comércio do Brasil, Guiné, Angola e Ilhas” efetuado com recurso a navios cujos armadores e tripulação, dela oriundos, contribuem generosamente para o bem local.

Ainda se escutava o respirar dos Padres no Capítulo, em Lisboa, e já Frei António do Santíssimo Sacramento e Frei Paulo da Trindade, escolhidos pelas suas qualidades de “cautela e manha”, necessárias à empreitada nos tempos que corriam, rumavam ao Porto, onde o governador e benfeitor Diogo Lopes de Sousa, homem de “muita indústria e descrição” os recebeu e aconselhou bem: só partiriam para Viana depois de concedida a licença camarária; quanto ao resto, ele mexeria os cordelinhos… E mexeu. E bem. Apesar dos obstáculos, a sua capacidade argumentativa levou a melhor. Astuto, lançou em defesa os interesses superiores que a vila alcançaria tendo ao seu serviço uma Companhia de Carmelitas Descalços que, como soldados e mercadores do céu esforçassem a devoçãogranjeando, nesta terra de mercadores, comércio espiritual. 

Em 27 de junho do mesmo ano, a vila festejou a concessão da licença. Vieram os Frades que foram recebidos e acomodados em casa de “gente ilustre”. Em troca, pediram-lhes “doutrina pública todos os domingos da Quaresma e do Advento” o que não só foi aceite como excedido, já que se disponibilizaram os religiosos para pregar, na Matriz, nas festas que não aos Domingos.

O Convento é fundado no dia 1 de julho, designado de Nossa Senhora do Carmo, em honra da qual “havia já na vila uma capela onde a devoção era muita”. Foi instalado numas casas “na rua da Bandeira para a parte da serra, pouco distantes onde ele fica hoje”.

E o relato do cronista prossegue com a descrição pormenorizada das obras necessárias à adaptação das ditas casas a Convento, com lugar para culto e acomodação dos religiosos. Tudo “estreito e pobre” dado que as casas tinham sido morada de um sapateiro pobre e de uma viúva “tão rica como ele”… Urgia, por isso, pensar em edificar um Convento a sério. Como acontece em assuntos desta natureza, muitos foram os pareceres e até ofertas. Mas foi o dos “Mendonças” o vencedor. O “tracista”, Irmão Frei Alberto.

No dia da padroeira, 16 de julho de 1621, foi lançada a primeira pedra. Um ano depois, havia alicerçado “sete celas do dormitório grande pela parte que cai para o rio”, “três celas do quarto do meio dia”, e no dia 8 de maio de 1625, Ascensão do Senhor, é também dia de mudança dos religiosos para um lugar mais cómodo, onde já contavam com 19 celas, rouparia, varanda, chaminé e “outras oficinas” necessárias, bem como igreja e refeitório.

Muito generosos, os vianenses ajudaram. E foi já no dia do Santo Profeta Elias, a 20 de julho de 1647, que a igreja ficou digna de albergar o Santíssimo Sacramento. 

No capítulo XI, intitulado “Do fervoroso exercício das virtudes que houve sempre no Convento de Viana e do grande crédito dos benfeitores que ele teve em todo o tempo”, somos convidados a entrar na intimidade/religiosidade da vida conventual dos Carmelitas Descalços em Viana.  

NdV: Qual o papel da Ordem nas comunidades e, em particular, em Viana do Castelo?

FMC: O Gabinete Social de Atendimento à Família (GAF) é uma Instituição Particular de Solidariedade Social criada a 24 de maio de 1994 pela Ordem dos Padres Carmelitas de Viana do Castelo, no âmbito das comemorações do Ano Internacional da Família.

Foi criado com o objetivo de potenciar a “família” nas suas diferentes dimensões e proporcionar uma resposta global e integrada às problemáticas mais prementes e geradoras de exclusão. Adota uma estratégia de intervenção multidisciplinar, individualizada e multidimensional, pautando a sua ação/intervenção de modo a contribuir para a (re)inserção social e consequentemente a melhoria da qualidade de vida de grupos socialmente desinseridos e/ou economicamente desfavorecidos, numa tentativa de contrariar e minimizar o impacto de fatores geradores de exclusão, promovendo a igualdade de oportunidades.

Estas preocupações de intervenção social, patentes no objetivo que orientou a criação do GAF aliam-se, desde a sua génese, a um trabalho em parceria com diversas entidades que, direta ou indiretamente, prestam serviços de cariz social.

NdV: Este ano, a Ordem dos Carmelitas Descalços celebra 400 anos do Convento de Nossa Senhora do Carmo. Como estão a viver este júbilo?

FMC: No dia 16 de julho deste ano, ocorrem os 400 anos do início da consolidação da presença dos Carmelitas Descalços em Viana do Castelo, dia e ano do lançamento da primeira pedra do Convento de Nossa Senhora do Carmo. Neste ano, também recordamos e celebramos os setenta anos de outro sonho: o início da construção do Seminário Missionário Carmelitano, ocorrido em março de 1951.

As efemérides convidam-nos a rever o passado e a prestar sentida homenagem a todos aqueles que nos precederam nesta história e que sucumbiram no caminho, como laboriosos operários destas obras que, apesar das incertezas que passaram, lograram, nesta cidade do Alto Minho, levar a porto seguro estes sonhos.

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