D. João Lavrador: “Quero que os Diocesanos olhem para mim como um irmão”

Uma semana após a Tomada de Posse, D. João Lavrador conversou com o Notícias de Viana, assumindo que está "encantado com a amabilidade e alegria" com que foi recebido, quer ser olhado como um irmão e o único projeto que traz "é fazer um projeto com os diocesanos".

Micaela Barbosa
9 Dez. 2021 15 mins
D. João Lavrador: “Quero que os Diocesanos olhem para mim como um irmão”

Notícias de Viana (NdV): Ao longo da vida, que gestos, histórias e momentos o marcaram mais?D. João Lavrador (DJL): A minha vida já vai um pouco longa porque já tenho uns aninhos (risos), mas penso que foram vários os momentos que marcaram a minha infância. Naturalmente, a relação familiar. Este foi o primeiro momento e, mais tarde, o despontar vocacional. Hoje, ao olhar para trás, sinto que estava ali também, nomeadamente, no meio das brincadeiras, sempre algo relacionado com a Igreja: a relação que a família tinha com a Paróquia, nas celebrações, e, claro, um ambiente de oração celebrativo, configuraram a minha própria pessoa. 

Recordo ainda o tempo da escola primária. Ao longo dos quatro anos, tive uma única professora muito boa e muito exigente, com alguma dureza exterior, mas estou-lhe muito grato, não só pela aprendizagem, mas também pela orientação que ela fazia. Ela tinha sempre a preocupação de, ao chegarmos à 4ª classe, encaminhar os seus alunos para aquilo que achava ou descobria que podia ser o seu futuro. Claro que eram poucos os que podiam estudar nessa altura, mas como manifestei vontade de ir para o Seminário, foi ela própria que se dispôs a ajudar a minha entrada. 

Fiz a minha caminhada no Seminário Menor, participando numa experiência pioneira: estar no Seminário e fazer as aulas no Liceu Nacional da Figueira da Foz. Nesta altura, lembro-me das crises, questionando a minha entrada para o Seminário. Estou muito grato aos padres superiores que estiveram no Seminário e que, com muita pedagogia e conhecimento, me foram reencaminhando e exaltando um bocadinho mais as minhas qualidades do que aquilo que, porventura, para mim seria um motivo para desistir do Seminário. 

O percurso total até ao Seminário Maior também me deixou algumas marcas. Uma delas foi o 25 de abril. Tinha 18 anos de idade e vi, com muita força e coragem, este grande acontecimento. No ano seguinte, assisti às ameaças da democracia que se colocaram no chamado Verão Quente de 75. Aí, viu-se o envolvimento dos cristãos nas grandes manifestações para reivindicar a verdadeira democracia e um Estado de Direito que se propunha para o futuro do nosso país, no qual eu me empenhei muito fortemente, inclusivamente, na manifestação que decorreu em Coimbra e contou com uma grande adesão de muitos milhares de pessoas. 

Não posso deixar de lado as minhas ordenações, desde a de diácono à de sacerdote. Isto dá-me um grande sentido de uma entrega total da minha pessoa. 

Passei, também, por vários setores da vida pastoral da Diocese. Naturalmente, outro dos marcos, que não posso deixar de referir, foi o facto de ter sido Capelão do Carmelo de Santa Teresa, em Coimbra, onde estava a Irmã Lúcia, com tudo aquilo que ela significa e tendo-a acompanhado no final da sua vida terrena, presenciando a sua sabedoria, a sua inteligência e a sua fé como Irmã religiosa.

O grande momento de surpresa, com 27 anos de vida sacerdotal, foi quando recebi o convite para ser Auxiliar na Diocese do Porto. Desde a primeira hora, em que decidi ser padre, coloquei sempre como uma decisão minha nunca deixar de dizer sim àquilo que a Igreja me pede. Seja nos trabalhos que me foram pedidos ao longo do tempo na Diocese de Coimbra, do Porto, de Angra e agora, em Viana do Castelo, disse sempre sim. Onde a Igreja quiser que esteja, é aí que estou. Estou o tempo que a Igreja achar que devo estar. Ou seja, estou sempre disponível para aquilo que a Igreja queira de mim.

Neste momento, estou a conhecer a realidade da Diocese através do contacto com os sacerdotes, movimentos e secretariados, entidades públicas e os outros diversos intervenientes. Posso adiantar que estou encantado com a amabilidade e alegria com que me receberam, ajudando-me na mudança, que é um tempo de renovação e de recomeçar. 

(NdV): Em entrevista ao Notícias de Viana, referiu que recebeu a notícia da nomeação para Bispo de Viana do Castelo “num misto de surpresa e de confiança”. Quais são as suas expectativas?(DJL): A minha expectativa é aquilo que Deus quer e a Igreja pede hoje à própria Igreja. Em primeiro lugar, que todos nós nos congreguemos em sentido de comunhão. Isto é, gostaria muito de ver o Povo de Deus, desde os sacerdotes em presbitério aos religiosos e leigos, a formar uma família.

Em segundo lugar, que todos os batizados possam ter lugar de participação nas suas comunidades. É este também o desafio que o Papa Francisco colocou à Igreja: “ser rosto sinodal”. Ou seja, que todos, em comunhão, se sintam membros ativos da Igreja a partir da sua participação na Eucaristia.

O terceiro sonho é realçarmos, nas comunidades, todos os serviços que sejam necessários para a Evangelização. Há comunidades que evangelizam com um determinado número de serviços na catequese, liturgia, caridade, família, juventude, comunicação social e etc. Há outras que têm capacidades para reconhecer que podem ir mais além. 

A Igreja está para servir segundo o critério das bem-aventuranças, do mandamento novo do amor. É novo, porque é permanente como o amor. É neste sentido que a Igreja é convocada e que falar dela é falar de todos os batizados, desde o Bispo, os presbíteros, os leigos, os/as consagrados/as e religiosos/as. Todos somos chamados a ser esta presença em diálogo, porque a Igreja tem também que aprender do mundo a linguagem, as aspirações, aquilo que são os seus sonhos, o que de bom se está a fazer e, ao mesmo tempo, oferecer o Evangelho para purificar aquilo que não é segundo a dignidade humana. Quando proclamamos com gestos e com a palavra, o Evangelho, ao penetrar nas realidades do mundo vai denunciar aquilo que são ataques à dignidade humana, ao bem comum da pessoa e ao que deve ser realmente o rosto humano e profundo de uma verdadeira fraternidade.

(NdV): Um dos grandes desafios da Igreja é acompanhar o mundo em mudança. Do seu ponto de vista, como é que a Igreja pode acompanhar estes novos tempos?(DJL): Hoje, a Igreja está consciente de que já não é só a mudança por mudança. Nós estamos numa nova época da história. Isto não é de agora. O Concílio, há 50 anos atrás, com São João XXIII, já trazia esta tónica. Já com São João Paulo II foi lançado o grande desafio à nova Evangelização, que ele traduz para a expressão: “evangelizar como seja pela primeira vez”

No documento sobre a Igreja europeia, ele refere que “a Europa parece que se cansou da fé. Apostatou da fé”. Além de ser duro, é bom que seja levado muito a sério, porque é daqui que o Papa nos faz aperceber que estamos numa nova época. Ou seja, num novo tempo. Quando ele diz “novos métodos, novas linguagens e começa com um novo ardor” quer dizer que é preciso colocarmo-nos como nos primeiros tempos da Igreja.

Nós não podemos ter mais um cristianismo mórbido e de portas fechadas como diz o Papa. Não podemos ter um cristianismo realmente doentio e quase a mover-se no sentido depressivo. Temos que fazer do cristianismo o que ele é, afirmando “cristão, sê o que deves ser na alegria do encontro com Cristo”. Penso que é a única resposta que nós temos para o tempo de hoje e, por isso, é que a Igreja também está a passar por um tempo duro, mas, ao mesmo tempo, um tempo que nos abre para uma purificação, para depois ter uma credibilidade para tudo.

(NdV): Também afirmou que se coloca “humildemente na disposição de aprender”, uma vez que conhece “muito pouco” de Viana do Castelo. Quais têm sido os primeiros passos no ministério na Diocese? O que tem aprendido neste curto espaço de tempo? O que já o marcou?(DJL): Em poucos dias, marcou-me a amabilidade, a amizade e a proximidade. Marcou-me, ainda, a alegria e o entusiasmo de quem quer realmente uma nova etapa. Isto marcou e estou muito grato a todos que manifestam esses sentimentos

Depois, nestes dias, já tive a ocasião de estar com os Arciprestes, alguns sacerdotes, o Conselho Episcopal, o Colégio de Consultores, algumas entidades públicas e com a Cáritas, que era uma das primeiras instituições com quem gostaria de reunir, dadas as circunstâncias que estamos a viver.

Vou continuar com os secretariados, outras instituições, religiosos e consagrados para que, através deles, possa conhecer a Diocese. Também já tenho marcadas algumas deslocações aos Arciprestados e convites para marcar presença em alguns eventos locais. Tudo isto me vai ajudar a entrosar na cultura e nas tradições. Portanto, é isto que estou a fazer, com toda a normalidade e tentando fazer o melhor de mim para poder estar à escuta. 

Outra das palavras que eu gostaria de referir é o diálogo. Que tenhamos muita capacidade de diálogo franco, aberto, sincero e verdadeiro entre nós. É isto que tenho pedido às pessoas que têm falado comigo: “não temam em dizer a verdade”, porque a mim não me magoam. Eu quero ser ajudado.

Depois, o discernimento. Hoje, temos muita necessidade de discernir dentro da cultura em que estamos e das dificuldades.

(NdV): O que aprendeu ao longo de tantos anos de serviço à Igreja? De que forma a sua experiência pastoral pode ajudar nesta nova missão?(DJL): Eu penso que aquilo que nós mais aprendemos é aquilo que não temos consciência. É aquilo que vamos introduzindo na nossa própria forma de ser e estar e que depois, faz parte de nós. 

Ao longo do tempo, fui-me apercebendo de que temos imensas experiências, e vamos passando por tantos contextos e assimilando tanta riqueza, que acaba dentro de nós. Ou seja, ao estar aqui, já trago muito. Se me perguntarem de que Diocese se trata, não saberei dizer, mas é meu. Entrou em mim porque passei por tal parte, fui confrontado em tal lugar e encontrei uma riqueza extraordinária religiosa. Quando começamos, achamos que somos capazes de derrubar tudo, trazemos ideias e muitas outras coisas, mas depois somos convidados à humildade. Estamos num tempo de muita humildade. Pouco a pouco, gostaria de ser muito humilde e reconhecer que, por muita experiência e aprendizagem, tudo é tão pouco para aquilo que temos para dar. 

(NdV): Afirmou nos últimos dias várias vezes que quer ser um Bispo do Concílio Vaticano II. O que quer isso dizer?(DJL): Eu diria que significa o que é. Nós estamos em pleno Concílio Vaticano II. Disse isso por uma razão: é que, quando há estes grandes momentos e acontecimentos, que são únicos e singulares, marcam a Igreja no seu todo. 

O Concílio Vaticano II não é só para alguns, mas para todos. É uma forma de ser Igreja que o Concílio quis reiniciar. É uma refontalização, percebendo a riqueza do passado. Ou seja, olhar para o rodapé dos documentos conciliares. Ali, está citado tudo o que é o Ministério da Igreja ao longo dos séculos. É um Concílio que renova a Igreja, que a coloca capacitada para poder evangelizar o mundo de hoje, mas com toda a riqueza da tradição. Não podia ser de outra maneira. 

Por vezes, há quem coloque em questão que o Concílio esteja a responder àquilo que deveria ser. O que quer dizer também que farei tudo por tudo para aprofundar e ajudar a aplicar o Concílio Vaticano II. O Papa Francisco está a fazê-lo de uma maneira única, singular e inédita a partir da sua própria forma de ser. Isto significa que o Papa Francisco é o Papa do Concílio Vaticano II. Eu também quero ser um Bispo do Concílio Vaticano II. O que quer dizer que ainda não atingimos a aplicação total do Concílio e, portanto, temos mesmo que caminhar para que isso aconteça. Só o Espírito é que nos vai iluminando. 

Se me perguntar agora “mas o que é que falta”, dir-lhe-ei “muita coisa”. Nós já iniciámos tudo, mas, se calhar, ainda temos muito de substancial a aplicar. É nesse sentido que acho que estamos num momento importante e belíssimo, que é preciso aproveitar.

(NdV): Recentemente, iniciou-se a caminhada sinodal nas várias Dioceses do mundo. A sua entrada já coincide com esta caminhada. De que forma a poderá enriquecer e ajustar-se a ela?(DJL): Em primeiro lugar, ajustar-me porque a caminhada sinodal na Diocese de Viana do Castelo vai ser diferente das outras Dioceses. Tem os mesmos temas e guião, mas as pessoas são as daqui, com tudo aquilo que é a sua riqueza, forma religiosa e cultural. É essa expressão que vai realmente ajudar a enriquecer esta mesma caminhada. Depois, diria o que trago com a minha experiência da Diocese de onde venho, onde iniciámos, há cerca de quatro anos, esta caminhada. 

Portanto, trago o sonho, as possibilidades e o encanto de toda esta caminhada, que é muito longa e que vai durar muito tempo. Além disso, trago ainda as resistências. É curioso que, na minha despedida da Diocese de Angra, sabendo que foi talvez a área onde eu me empenhei e solicitei mais e onde foi preciso mais força para andar, as pessoas questionaram-me sobre as resistências. Disse-lhes que sim e que as senti, porque as mudanças têm sempre muitas resistências. O comodismo é uma doença terrível que nos ataca e é, consequentemente, contagiosa. Este comodismo e deixar correr é uma tentação, é um pecado terrível, nos tempos de hoje. 

Portanto, é necessário colocar-se numa atitude de renovação e de rosto da Igreja, que é aquela que Jesus Cristo quer e que hoje é preciso renovar.

(NdV): Como quer que os Diocesanos olhem para si?(DJL): Quero que os diocesanos olhem para mim como um irmão. Um irmão que tem uma responsabilidade própria, está desejoso de oferecer o melhor de si próprio e servir esta Diocese. E um irmão que precisa muito deles na humildade que sinto que me constitui e na simplicidade da minha própria missão. 

Ela não se pode fazer sem todos e, portanto, estou de mãos estendidas a pedir que me ajudem para levar para a frente esta mesma missão, e que olhem para mim. 

Se alguma preferência tenha, que a coloque nos mais desprotegidos e necessitados. Isto é, quando virem o meu olhar a desviar-se, vejam que estou a olhar talvez mais para os pobres e necessitados. 

Que olhem também para mim como alguém que está aqui de braços abertos a acolher todos e a respeitar todos naquilo que são as suas opções, mas com o desejo de que todos se encontrem com Cristo, porque a minha paixão é Cristo e gostaria que todos se voltassem para Cristo.

(NdV): Já mais numa perspetiva de futuro, quais os projetos que ambiciona trazer para a Diocese de Viana do Castelo?(DJL): Eu diria que trago um projeto que é fazer um projeto com os diocesanos. Esse é o meu projeto.

A Igreja no seu todo oferece-nos hoje um conjunto de linhas de orientação que tem o seu cunho neste projeto de sinodalidade, e novo rosto da comunidade e da Igreja, mas isto, depois, traduz-se na realidade concreta de cada Diocese, naquilo que deve ser uma Igreja em comunhão, verdadeiramente comunitária, e de uma participação de todos os fiéis. Mas isto tem, depois, uma concretização própria incandescente e, por isso, digo que havemos de chegar ao projeto diocesano. Naturalmente, temos algumas etapas, nomeadamente os 50 anos da Diocese, que é uma etapa importantíssima, mas teremos outros que acontecerão na Igreja universal.

Tudo isto irá constituir a força, mas temos que contar com todos. Além disso, não nos podemos esquecer que os projetos não podem ser ilimitados. São os planos pastorais que têm um determinado prazo de tempo, mas que dê tempo para eles se implantarem e produzirem o seu efeito na comunidade diocesana e, depois, nas comunidades paroquiais, porque os locais onde se realiza toda a missão da Igreja é na Paróquia. É aí que se deve incidir.

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