BE já esteve no poder, mas quer “fazer o que nunca foi feito”

Ninguém quer assumir a culpa do sucesso ou insucesso da política atual. Nem mesmo aqueles que, durante a “geringonça”, estiveram à frente do Governo. O Bloco de Esquerda (BE) é exemplo disso mesmo.

Micaela Barbosa
1 Fev. 2024 10 mins
BE já esteve no poder, mas quer “fazer o que nunca foi feito”

Adriana Temporão, de 31 anos, é a cabeça de lista por Viana do Castelo. É natural de Valença e trabalha, atualmente, na área dos ensaios clínicos. Num artigo publicado no site do BE assume que, depois de 10 anos a viver fora do Alto Minho, sentiu, ao regressar, que “nada de muito concreto teria sido feito para melhorar a vida de quem lá vive”. O Notícias de Viana quis saber se o seu partido não foi, também, responsável pela estagnação que denuncia, dado que, naquele período, Portugal era governado pela “geringonça”. Adriana respondeu que “não”, mesmo que, em entrevista à SIC Notícias, a líder do partido, Mariana Mortágua, tenha considerado a “geringonça” “um acordo estável”, que “cumpriu aquilo a que se comprometeu”. 

Regressando à conversa com a cabeça de lista, a jovem dá o exemplo da “bandeira” dos transportes públicos, em que, em particular, “nada foi feito” porque, segundo a própria, “não houve vontade política do PS em apostar na mobilidade, a nível nacional”. “O comboio só alcança quatro dos dez concelhos do distrito de Viana do Castelo. Alguém que seja de Melgaço, por exemplo, para se deslocar à Unidade Local de Saúde do Alto Minho (ULSAM), tem de ter carro próprio. Não tem hipótese de conseguir transporte coletivo, a não ser que pretenda andar um dia inteiro no autocarro”, justificou, acrescentando que, mesmo querendo comprar carro, “é mais um custo para as famílias”.

Numa pesquisa rápida, verificou-se que a viagem entre Melgaço e Viana do Castelo pode ser feita de autocarro, táxi ou carro próprio. O autocarro é assegurado, neste momento, pela Auto Viação do Minho (1 vez por semana) e pela FlixBus (três vezes por semana), que fica entre os 6 e os 14 euros, e que tem a duração de 2h a 2h05min. Já a viagem de táxi (entre 100 e 140 euros) ou em carro próprio (entre 16 e 25 euros) é mais rápida: 1h15. “Se houvesse procura, não haveria oferta de transportes públicos?”, questionámos. “Só com oferta é que, depois, haverá procura. Se não houver oferta, como é que as pessoas podem fazer? Como é que alguém, em Melgaço, pode sequer pensar fazer a viagem Melgaço-Viana do Castelo em transportes públicos? Não há oferta”, referiu, considerando ainda que “ninguém gosta da despesa e do tempo que perde na viagem”.

Direito dos trabalhadores

Mariana Mortágua, no discurso da convenção em que foi eleita, referiu-se à direita dizendo que “há nela uma ânsia de vingança contra os trabalhadores, um desprezo pelos pobres”. Mas, nas últimas eleições, assistimos a uma direita que defendeu “o alívio dos impostos sobre as pessoas e sobre as empresas”, assegurando que “pode revitalizar a economia e produzir mais riqueza e melhores salários”.

Concordando com a afirmação da líder do BE, Adriana Temporão falou da realidade que se vive nas empresas, onde “não há aumentos salariais” e “a carreira não é valorizada”. Mais ainda com os jovens. “A migração jovem acontece pelos baixos salários e pelas empresas não quererem pagar mais. Temos muitos jovens qualificados muito mal pagos”, considerou, frisando: “Não há vontade de os empregadores valorizarem os trabalhadores.” 

Confrontando-a, o Notícias de Viana quis perceber se este discurso não dá a ideia de perpetuar que a esquerda é moralmente superior à direita. “Creio que não”, respondeu. “Não é o mesmo tom de André Ventura quando, há umas semanas, dizia ‘mentirosa é a tua tia’, dirigindo-se a Mariana Mortágua?”, insistimos. “Não, de todo. Nem se pode comparar um ao outro. Um defende os direitos dos trabalhadores, com direito a uma vida digna e salários que sejam suficientes para as despesas todas. O outro é absurdo.”, afirmou, sublinhando as diferenças entre o seu partido e o Chega. “O Chega vai defender tudo ao contrário. Não há um programa definido, nem um plano sequer, de como as medidas vão ser implementadas e se são ou não possíveis. É uma cópia de vários programas/medidas de vários partidos, simplesmente para campanha eleitoral”, atirou.

Habitação, educação e saúde

No dia 20 de janeiro, Mariana Mortágua apresentou o programa eleitoral do BE, focado em Habitação, Educação e Saúde. Na altura da entrevista, questionámos a cabeça de lista da distrital sobre quais seriam as prioridades do Primeiro-ministro e, algumas delas coincidem: a saúde e a educação através da “valorização dos profissionais”, a habitação com o controlo de rendas, e os salários, aumentando-os e terminando com a precariedade. “Os nossos salários são muito baixos comparativamente com os da nossa vizinha Espanha”, explicou.

Mais especificamente para o Alto Minho, Adriana Temporão defende a aposta na mobilidade, na ferrovia e na ligação à Galiza, devido ao “elevado número de trabalhadores transfronteiriços”, e a internalização do serviço de radiologia da ULSAM, que “tem sido um tema bastante polémico”, sobretudo, após o novo concurso que saiu em dezembro, em que se incluem “mais dez milhões de euros”, comparativamente com o ano 2020. 

Luta pela igualdade

Uma das outras bandeiras assumidas pelo BE é a igualdade de género que, de acordo com a jovem, é “sempre positiva” e “deve ser feita”. Sem conseguir justificar os dados estatísticos, que mostram que os países mais igualitários como a Suécia, Dinamarca e Noruega, são aqueles com taxas mais elevadas de violência de género, aponta a violência doméstica como um problema “grave”, em que “ainda há muito para se fazer”. “Ainda nos falta muito para a igualdade de género em muitos campos da nossa vida quotidiana”, sublinhou, exemplificando com a igualdade salarial e a interrupção voluntária da gravidez (IVG). “Recentemente, um estudo mostrou que 49 hospitais deveriam fazer a IVG, e não estão a fazer”, especificou. 

No entanto, uma pesquisa pelos dados referidos levou-nos a encontrar o mais recente estudo da Entidade Reguladora da Saúde, onde se afirma que, entre 2015 e 2023, dos 42 hospitais acreditados para realizar a IVG em Portugal Continental, apenas 29 estão a aplicar o procedimento, mas só 2 dos 15 hospitais públicos onde não se realiza a IVG é que não possuem mecanismos que garantam a sua realização atempada. 

Ainda sobre a violência doméstica, a cabeça de lista falou no jantar em Viana do Castelo, de uma “justiça machista” que continua “a pôr a vida de muitas mulheres em risco, ao menosprezar e relativizar as queixas, deixando muitos agressores sair em liberdade sem nenhuma consequência, o que demasiadas vezes acaba com a morte da mulher”. Pedimos dados para justificar a afirmação e exemplificou com “as notícias que dão conta da morte de mulheres que já tinham apresentado queixas” e “processos em tribunal com penas suspensas”. “Faz falta haver uma condenação efetiva”, recordando um caso “infeliz”, em que um juiz disse à vítima de violência doméstica: “precisam de ir jantar fora”. “Isto não pode acontecer. Já são muitos os juízes que não concretizam coisas. O juiz tem de ter formação sobre estas problemáticas, porque não pode dizer que a violência doméstica se resolve com um encontro”, argumentou.

Luta pela discriminação

Em 2023, o Parlamento aprovou, em votação final global, medidas a adotar pelas escolas para “garantir o direito de crianças e jovens à autodeterminação da identidade de género, e a proteção das suas características sexuais”, em que se inserem as casas de banho mistas. Um tema que tem sido debatido dentro e fora dos ecrãs. Para Adriana Temporão, “a população não sente que se está a ir depressa demais”. “As medidas têm de ser implementadas por respeito às pessoas que sofrem violência e discriminação. É uma questão de respeito e de visibilidade àquelas pessoas”, defendeu.

O programa para as legislativas passadas do BE indicava que, em Portugal, existe “um velho racismo sistemático contra comunidades racializadas que enfrentam inúmeras discriminações no seu quotidiano, do acesso ao trabalho à violência policial”. “Consegue explicar como este diagnóstico se concretiza no Alto Minho?”, questionámos. A jovem não hesitou e referiu que “basta andar na rua ou ir aos cafés”. “Ouvem-se muitos comentários racistas, sendo mais claros relativamente às comunidades migrantes que vieram para o Alto Minho nos últimos anos”, considerou, salientando que “há um racismo sistémico e estrutural em Portugal”. 

Apesar de não existirem estatísticas oficiais sobre a origem étnico-racial em Portugal, várias pesquisas e relatórios mostram a desigualdade étnico-racial e o racismo como fator fundamental de discriminação. Por outro lado, o Índice das Políticas de Integração de Migrantes (MIPEX, na sigla em inglês), com dados de 2019, indica que Portugal se encontra no top 10 dos países com melhores políticas de integração de migrantes, ao lado dos nórdicos.

De acordo com esses dados, Portugal tem melhorado as políticas de integração de migrantes nos últimos anos, sobretudo, na saúde e na educação. “Portugal melhorou de forma consistente desde a primeira edição do MIPEX [em 2005], e especificamente na avaliação geral, melhorou três pontos entre 2014 e 2019”, refere o relatório, acrescentando que “as políticas de integração portuguesas melhoraram ligeiramente em todas as dimensões da igualdade de direitos, oportunidades e segurança para os imigrantes”. 

Em matéria de combate à discriminação, Portugal consegue o máximo de 100 pontos, e é destacado pelas suas “políticas fortes” e pelos mecanismos de execução que “estão lentamente a aumentar os níveis de consciencialização pública e as denúncias”, apesar de serem “leis recentes e com poucos recursos, comparativamente com os habituais países de destino”.

Regular a habitação

Já sobre a crise inegável na habitação, Adriana Temporão reafirma que “o mercado está liberalizado”, principalmente nas grandes cidades. “Os preços estão para fundos de investimento. Ou seja, para gente que tem muito dinheiro. Não é para o cidadão comum, com salários portugueses”, lamentou, propondo um controlo das rendas. “É preciso baixar os juros, em concreto”, defendeu, acrescentando que “uma pessoa não pode pensar no crédito para uma casa com um crédito-habitação como está”. “Um jovem da minha geração não pode, sequer, pensar em ter uma habitação, devido aos juros”, queixou-se. “Mas isso não será uma medida extrema, uma vez que os juros não são ‘propriedade’ do Estado?”, questionámos. “Não. Regular os juros com a Caixa Geral de Depósitos, que é o banco público”, sugeriu, frisando: “Não acho que seja excesso de regulação, se isso permitir às pessoas terem onde viver e não estarem a trabalhar para gastar todo o seu salário numa renda ou crédito, que é um direito das pessoas.”

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