Alvarães: um ciclo vivido pétala a pétala

O Sr. José Maria tem 93 anos. Está sentado e acompanha, passo a passo, a alegria, os encontros e os diálogos que se constroem à sua frente. De um lado, compõem-se o andor, uma caravela quinhentista, cujo modelo, segundo conta, foi projetado a partir de uma moeda de 2 escudos e meio; do outro, uma […]

Notícias de Viana
26 Mai. 2022 7 mins
Alvarães: um ciclo vivido pétala a pétala

O Sr. José Maria tem 93 anos. Está sentado e acompanha, passo a passo, a alegria, os encontros e os diálogos que se constroem à sua frente. De um lado, compõem-se o andor, uma caravela quinhentista, cujo modelo, segundo conta, foi projetado a partir de uma moeda de 2 escudos e meio; do outro, uma tuna junta à sua volta, família e amigos. A sua casa, não muito longe da igreja, está, também ela, transformada num imenso adro, onde o dia parece ter-se prolongado. São as festas da terra, que este ano marcam uma efeméride especial. Foi há 75 anos que os andores floridos, que unem conterrâneos e enchem a curiosidade dos que ouvem falar das festas das cruzes de Alvarães, Arciprestado de Viana do Castelo, começaram.

A vida ao ritmo da flor

Também Júlio, de 26 anos, transformou o que parece ser uma garagem num enorme laboratório de cruzes floridas. Veio de S. Tomé e Príncipe, onde dá aulas, até à terra natal por esta ocasião, e é ele que nos traça uma origem cronológica bem detalhada. Segundo nos diz, “nos registos paroquiais de 1724, aquando da visita do visitador – padre que, como o nome indica, visitava as Paróquias em nome do Arcebispo de Braga – já existe a menção a uma festa pela altura da Ascensão, em que se abençoavam os terrenos e as colheitas”. Também Fernando Peixoto, de 55 anos, com quem nos cruzámos no caminho até ao lugar onde Júlio, com a sua equipa, vai vestindo as cruzes de flores, referiu a antiguidade das festividades e relembrou que “antes dos métodos utilizados atualmente, decoravam-se as cruzes com flores aos molhos”.

De facto, à medida que a conversa se intensifica e os testemunhos vão aumentando, vai-se adensando a certeza de que a festa é o cruzamento simultâneo de várias tradições. Por um lado, é clara a referência à celebração da Ascensão, marcada pela “hora”: uma oração que tinha lugar entre o meio-dia e a uma hora, arco temporal em que se apontava a subida de Cristo ao céu. A esta acrescentava-se a prática ancestral das rogações: súplicas e orações de origem pagã e posteriormente cristianizadas, direcionadas a necessidades públicas específicas, cuja prática coincidia com a preparação da solenidade da Ascensão ecoando, de igual forma, a prática dos romanos que, pela mesma ocasião, pediam aos deuses a proteção das suas sementeiras. A tudo isto soma-se uma coincidência temporal, o denominado Domingo da Rosa, patente em livros litúrgicos medievais, por nessa ocasião, em Roma, se simular uma chuva de rosas a partir da abertura na cúpula do Panteão.

Contudo, ficaria ainda por explicar a origem dos andores floridos. O Sr. José Maria ajuda a desvendar o enigma lançando uma pista. Segundo refere ao Notícias de Viana, “a sua origem está na coroação de Nossa Senhora e na Ação Católica”. Júlio concorda e desenvolve mais o tema, através da cronologia que tínhamos deixado suspensa. “Em 1945 terminava a II Guerra Mundial, e no ano seguinte, em 1946, quando se comemoravam os 300 anos da Coroação de Nossa Senhora como Rainha de Portugal por D. João IV, celebrou-se, também, a Coroação de Nossa Senhora em Fátima. Como estavam presentes alguns alvaranenses ligados à Ação Católica, surgiu a ideia de fazer a mesma coisa aqui, ao mesmo tempo que se compunham andores floridos”.

Mais tarde, com a ajuda de mais testemunhos, percebemos que já em 1946, em outubro, e com o apoio do Cónego Manuel Cepa, então Pároco de Alvarães, se elaboraram alguns andores, trabalho que migraria para a Festa das Cruzes, pela altura da Ascensão no ano seguinte, sendo nesse ponto que as duas tradições se encontram, e que as comemorações dos 75 anos têm a sua razão de ser.

Por detrás disto, há algo que começa a tornar-se evidente: Alvarães parece repercutir a nível comunitário o ritmo de vida da natureza e das flores em particular, porque se, em outubro, celebra o seu Padroeiro no tempo das colheitas, reúne-se em maio para, na Festa das Cruzes, colocar as sementeiras sob atenção especial.

O sentido da pétala

A tuna vai saindo e, com ela, alguns dos amigos que enchem a casa do Sr. José Maria. Ficam alguns resistentes. José Meira é um deles e, aos poucos, vai explicando, meticulosamente, todo o processo. “Há um trabalho prévio”, explica. “De um ano para o outro, os andores são guardados, após estarem uma semana na igreja. Ao longo desse tempo, as flores vão secando e murchando. Quando a festa de aproxima, é preciso remover todos os detritos do ano anterior e iniciar a decoração desse ano”.

Tudo é vivido como se se tratasse de um enorme ritual de purificação. Limpar, lixar e pintar são gestos fundamentais, mas José Meira vai acentuando a sinceridade que é imposta a todo o processo. “Estas não são flores secas e são sempre colocadas pétala a pétala”, comenta, destacando que o importante é o sentido da pétala. “Quando colamos a pétala, temos que ter atenção à direção e ao sentido dela. Por exemplo: este andor é uma caravela que tem por baixo o mar; neste caso, se o mar puxa para a frente, a pétala segue essa orientação”, descreve.

Rui Santos, de 49 anos, a primeira pessoa que encontrámos ao entrar na casa do Sr. José Maria, é testemunha deste respeito pelas dinâmicas da natureza. “As flores são naturais e, quando éramos pequenos, o nosso trabalho era colher as flores nos campos e nos jardins”, recorda. Tal como Maria de Fátima, de 62 anos, Rui assegura que vive as festas desde que se lembra e decerto concorda- ria com a afirmação da primeira quando, de volta da ornamentação de uma cruz, deixou claro que “se de pequenina aprendeu, agora está a passar a tradição”.

Júlio, o mais novo de entre todos os entrevistados, começou a fazer cruzes em 2007 e assume que “tudo começou no infantário e com os mini-andores feitos com a ajuda das Irmãs missionárias”, assegurando, deste modo, a transição de que falava Maria de Fátima, que continua o seu trabalho no meio de um conjunto ainda numeroso de membros da catequese, associação de pais e dos escuteiros.

A beleza sinodal

Em 2017 o neurobiologista vegetal Stefano Mancuso publicou o livro “A Revolução das Plantas”. Nele procurou explicar que não são seres passivos, distintos dos animais, nem seres desligados de qualquer capacidade cognitiva, mas, ao invés, modelos alternativos de inteligência. “Os animais deslocam-se, as plantas estão imóveis; os animais são velozes, as plantas são lentas; os animais consomem, as plantas produzem; os animais emitem CO2, as plantas fixam CO2”, escreveria no prefácio, adiantando, mais à frente, que no reino vegetal “descentrar é a palavra de ordem”, porque “as plantas possuem uma arquitetura modular cooperativa, distribuída e sem centro de comando, capaz de suportar perfeitamente predações catastróficas e repetidas” .“A velocidade é um fator inteiramente marginal na vida das plantas”, sentenciaria por fim.

Efetivamente, aquilo que em Alvarães se prepara, sai à rua e se guarda, num ciclo evidentemente ecológico; é um modelo alternativo de humanidade que corresponde, alegoricamente, à proposta e insistências do Papa Francisco, que se vê pelo destaque dado à flor e ao seu delicado processo de transformação. “Primeiro corta-se a parte final da pétala, depois passa-se pela cola, e a face deve estar sempre para cima, colocando-a sempre do meio para os lados”, desvenda José Meira.

No dia seguinte, serão 11 os andores que sairão rumo à igreja. Alvarães voltará a fazer da natureza a sua pele.

Tags Religião

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