A Carta Samaritanus Bonus, dada em 14 de julho, dia litúrgico de São Camilo de Lélis, sobre o cuidado das pessoas nas fases críticas e terminais da vida, está para a actualidade como a água da chuva está para o deserto.
O Papa Francisco, ao assinar este documento da Congregação para a Doutrina da Fé, manifesta, em continuidade com os seus antecessores, sobretudo os mais recentes, de que lado se situa a Igreja Católica no respeitante às questões da vida e da sua fundamental e intrínseca dignidade, designadamente nos estágios de maior vulnerabilidade, como são os da doença progressiva e incurável que culminará na morte da pessoa enferma. Na verdade, e em fidelidade ao mandato do Senhor, outra não pode ser a parte, a melhor parte, escolhida pelos seus discípulos: o amor ao próximo não cria excluídos nem oferece pontapés aos esquecidos na berma da estrada; eleva sempre e jamais rebaixa; reconhece e restaura a dignidade, e nunca a oculta ou obscurece. O amor ao próximo começa precisamente no reconhecimento do valor mais básico e necessário para o desenvolvimento dos demais valores, a vida.
A Carta Samaritanus Bonus vem recordar aos homens e mulheres de boa vontade, particularmente aos cristãos, que não é possível viver na sombra dos dias sem integrar como norma de centralidade existencial o cuidado integral da pessoa, mormente a pessoa doente em fase terminal. Para isso, impõe-se potenciar a sua qualidade de vida minimizando a dor física, o sofrimento psicológico e espiritual e, mais ainda, recordar e renovar a esperança cristã, cuja Ressurreição de Cristo é fundamento e meta. A parábola do Samaritano Bom [Lc 10,30-37], que o médico São Lucas fez questão de maravilhosamente esculpir no seu Evangelho, serve de mote para o presente documento e fundamenta os alicerces da ética cristã do cuidado. Inaugura uma forma nova de agir em consequência da antropologia do cuidado transversal a todos, judeus e ou samaritanos, e a cada um de nós.
O Samaritano, isto é, o ilustre desconhecido divino e humano, vem transformar o olhar e o agir estáticos e estilizados de uma humanidade incapaz de se compadecer e abaixar perante quem necessita verdadeiramente desse toque empático e compassivo. O Samaritano é, por assim dizer, paradigma inultrapassável de um descentramento de si e dos próprios interesses, ideologias e preconceitos, confortos e cálculos utilitaristas, para se transformar em testemunha fiel que garante a cura e a salvação do homem ferido, mas inteiro.
A ética samaritana é profundamente reveladora do quem de Deus e inspiradora para o quem do homem. Só por grande distração alguém imaginaria que a parábola em causa diz respeito a uma ética meramente humanista e desligada do conceito de transcendência divina e humana. O Evangelho da Vida irrompe na História para lhe conferir participação nessa Vida divina, e não apenas para ‘revolucionar’ socialmente os ditames da vida em comum, imprescindíveis, mas não exclusivos.
A teologia do corpo, inegável neste contexto, escancara-se para nós na epifania do acontecimento divino e humano de um Deus que se aproxima da vulnerabilidade humana para a revitalizar, curar e salvar. Eis o contributo específico da ética agápica: ser apelo e concretização da excelência da ação no modo de cuidar do outro, no amor que se oferece por inteiro e sem reservas, agindo, em consequência, à imagem de Deus.
Se agir bem do ponto de vista médico, é agir de acordo com a natureza e finalidade da profissão, de modo a não causar dano [primum non nocere] àquele que me está confiado, agir de modo excelente, do ponto de vista cristão, é fazer o melhor possível pela pessoa enferma, numa relação de confiança mútua em que nenhum dos interlocutores é privado da sua dignidade e integridade, nem o doente, nem o médico ou qualquer outro profissional de saúde.
A excelência da arte médica exige a medida alta do amor ao próximo de que nos fala a parábola evangélica, e cuja presente Carta vem lembrar e sublinhar no contexto de uma cultura do descarte, como repetidamente afirma o Papa Francisco.
Com o intuito de percorrermos todo o documento em mais dois momentos, dividiremos a nossa análise em duas partes: da introdução ao terceiro capítulo e, finalmente, do quarto capítulo à conclusão. Limitar-nos-emos, nas duas sucessivas edições, a destacar aquelas ideias que consideramos sintetizadoras deste contributo importantíssimo do magistério da Igreja, designadamente no contexto português atual.
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