A Resistência do Paraíso

O Mosteiro de São João d’Arga, situado na Serra d’Arga, no Arciprestado de Caminha, acolheu, no passado dia 24 de junho, a celebração em honra de São João, que representa “um dos testemunhos medievais mais importantes” da região. A celebração campal foi presidida pelo Pároco, Pe. Paulo Emanuel.

Notícias de Viana
15 Jul. 2021 10 mins
A Resistência do Paraíso

Num dia de sol e calor, muitos foram aqueles que se deslocaram até ao Mosteiro de São João d’Arga para participar na Eucaristia em honra de São João. Na chegada ao Mosteiro, já se viam alguns carros estacionados junto à capela, do lado de fora, e alguns eram aqueles que se aproximavam de uma banca que vendia doces. 

Em ambiente de festa, as pessoas marcaram os seus lugares bem cedo, assim como o coro, que se trajou a rigor. Alexandra Vieira, de 24 anos, e Joana Vila Pouca, de 19 anos, são primas e fazem parte do grupo coral. Vieram trajadas para cumprir com a tradição transmitida pela avó. 

“A nossa devoção começou através da nossa avó”

Joana mora em Vilarelho, Paróquia do mesmo Arciprestado, e confidencia que é “difícil” expressar a devoção por São João d’Arga. “Não há palavras, porque sempre fomos habituadas a vir até aqui. A nossa devoção começou através da nossa avó e, mais tarde, da nossa mãe”, disse.

Já Alexandra Vieira mora em Venade, outra Paróquia de Caminha, e descreve a Serra d’Arga como um lugar “calmo”. “Estamos habituadas ao stress do dia-a-dia, mas ao vir para cá, encontramos tranquilidade”, destacou, recordando o tempo de confinamento que as obrigou a estar mais longe da avó. “Foi um bocado complicado, porque poucas vezes vínhamos até cá em cima. No entanto, sempre que vínhamos, tomávamos as devidas precauções, até porque queríamos proteger a nossa avó”, referiu, admitindo que por ser “um lugar isolado” a preocupação era maior: “Como isto é um pouco isolado, ficávamos sempre preocupadas com ela. Ela mora sozinha e, por isso, procurámos sempre estar em contacto com ela para lhe mostrar que não estava sozinha”, acrescentou, assegurando que a avó “gosta muito” de morar na Serra d’Arga. 

As duas primas garantiram, ainda, que a sua devoção também fará parte do futuro dos seus filhos. “A nossa avó quis, de alguma forma, passar o testemunho de algo que fazia parte das suas raízes. Estamos muito contentes por poder vivenciar esta devoção e, por isso, também a vamos transmitir aos nossos filhos”, reiteraram.  

“É muito bom viver aqui”

Maria Fernandes, de 67 anos, também faz parte do coro. Vestiu-se igualmente a rigor, e veio acompanhada pelo marido, que faz parte da Confraria. “Moro em Arga de São João [mais uma Paroquia do Arciprestado de Caminha] e é muito bom viver aqui”, começou por admitir, acrescentando que, na pandemia, continuaram a ir trabalhar para os campos. “Como somos poucos, não nos encontrávamos muito nessa altura, evitando os aglomerados. E, por isso, viveu-se bem”, contou, salientando que não houve casos em Arga de São João. “Agarro-me muito a São João d’Arga porque lhe devo muito. Recorro muitas vezes a ele, pedindo saúde para mim e para os meus”, confidenciou.

Sobre a sua devoção a São João, Maria recorda que vem desde “muito nova”. “Naquele tempo, vínhamos a pé com o merendeiro à cabeça”, lembrou, acrescentando: “Fiz parte da festa durante alguns anos. Já não tenho muitas posses, mas ajudo naquilo que posso.” Nesta linha, confidenciou, ainda, que “há pouco a quem deixar” no que toca às tradições. “Somos uma população pequena e com muita idade. Os mais novos acabam por casar e vão morar para a cidade, embora venham muitas vezes no verão”, disse, evidenciando que a Serra d’Arga é também “muito visitada” por turistas. “Mete muita gente”, reforçou, acrescentando que “a população conhece-se toda”. “Somos uma família”, reiterou. 

“Sinto que vivo num paraíso”

Numa das cadeiras da fila da frente, estava Maria Afonso Lourenço, de 58 anos. Mora na Paróquia de Arga de Cima, lugar da Gandra, também no Arciprestado de Caminha, e afirma que morar na Serra d’Arga a faz sentir “muito melhor”. “Sinto que vivo num paraíso. Gosto muito de vir a São João d’Arga fazer a minha romaria, que é uma coisa que faço desde pequena”, contou, acrescentando que vinha com o seu pai. 

Em tempo de pandemia, a devota assegura que viveu o tempo de confinamento “melhor do que na cidade”. “Onde moro houve alguns casos, mas não sentiram nada de grave, enquanto que, na cidade, pelo que soube, iam muitas pessoas para o hospital”, recordou. Maria contou, ainda, que na sua aldeia as pessoas andam sem máscara, porque “muitas vezes” vão para o campo trabalhar. “Conhecemo-nos todos. Aliás, somos família uns dos outros, porque as casas são pegadas umas às outras”, salientou, reiterando que é “muito bom” viver na Serra d’Arga. “As pessoas vão facilmente a Caminha. Não existem assim tantos condicionalismos”, assegurou. 

“A nossa função é zelar pelo Mosteiro”

Já no bar, estava João Afonso, que faz parte da Comissão Fabriqueira de Arga de São João. Tem 63 anos e é lá que mora. “A nossa função é zelar pelo Mosteiro. Temos que vir e estar cá nos grandes eventos para verificar se está tudo bem”, explicou, confidenciando que vão “sobrevivendo com donativos e vendas de algumas recordações” de São João. “São João d’Arga acaba por ser o advogado de quase todas as partes do corpo e, quando sentimos alguma coisa fora do normal, pensamos nele”, disse, acrescentando: “É uma tradição que vai passando de geração em geração, que tentamos preservar, mantendo-a viva, embora os tempos sejam outros.”

Sobre o tempo mais crítico da pandemia, o zelador contou que “houve poucas pessoas contagiadas” porque “raramente saiam da serra”. “São poucas as pessoas que saem daqui e que têm transporte para sair. Na altura, havia apenas uma camioneta, uma vez por semana e, mais tarde, até deixou de haver. Quando fazia falta, uma vez que moramos perto uns dos outros e nos damos todos bem, um dava boleia ao outro”, esclareceu.

João garantiu, ainda, que a população se sente “congratulada” quando recebe a visita de turistas que visitam a sua serra, ficando a conhecer o seu modo de vida. “É muito bom ver a serra cheia de gente. É sinal que gostam dela”, frisou.

 

“É importante valorizar os momentos de comunhão entre a nossa comunidade e as nossas tradições”

O autarca de Caminha, Miguel Alves, explicou as razões que o levaram a marcar presença na celebração: “Enquanto presidente de Câmara Municipal, é importante valorizar os momentos de comunhão entre a nossa comunidade e as nossas tradições, que são o aglomerado de uma história feita de homens e mulheres e que nos trouxeram até aos dias de hoje, dando-nos monumentalidade deste local e a maneira de ser da população de Serra d’Arga, desde os hábitos à maneira como cuida dos seus ao longo dos séculos”, referiu, acrescentando que também veio como “homem de fé, que acredita em Jesus Cristo Ressuscitado”. “Estes momentos acabam por ser uma partilha entre o Homem e o seu íntimo. Na fé, expressamos muito daquilo que somos enquanto comunidade, e esta comunidade de São João d’Arga, mas não só, todos aqueles que nos visitam, sentem este local e a fé em São João como sua. Ou seja, faz parte do seu próprio ADN”, salientou, adiantando: “Em agosto, quando festejarmos a romaria mais popular, também marcarei presença.”

“O nascimento de São João ensina a inverter o curso da vida”

Na homilia, o pregador alertou para a “grande desconfiança que existe em relação à vida”, evidenciando que “a vida é cuidada, amparada, embalada e sustida”. “Como é difícil dizermos e pressentirmos, intuirmos e confiarmos, reconhecermos e recordarmos que, como rezamos no refrão do Salmo, ‘o Senhor nos criou maravilhosamente’; porque nós não fomos educados para isso. Não fomos introduzidos a uma visão positiva sobre nós próprios, sob pena de isso ser vaidade, orgulho e arrogância. E é precisamente isto que nos limita e nos restringe nas diversas tentativas de desimpedir o caminho, e os nós que, sem querer, carregamos anos e anos, e só mais tarde somos capazes de perceber que não fazem sentido”, referiu.

Deste modo, o Pe. Paulo Emanuel recordou o calendário solar, segundo o qual as noites, a partir do dia da Solenidade do Nascimento de São João, aumentam e os dias diminuem até ao Natal. “É curioso, por isso, que o nascimento de Jesus faça os dias crescer e o nascimento de S. João os faça diminuir, pois assim diz Santo Agostinho: ‘‎Para que o homem possa aprender a entrar dentro de si, João nasceu no dia em que os dias começam a diminuir; e para nos mostrar que Deus deve ser exaltado, Jesus Cristo nasceu no dia em que os dias começam a crescer. Aqui está um ensinamento profundamente misterioso. Celebramos a natividade de João como a de Cristo, porque este presépio está cheio de mistério. De que mistério? Do mistério de nossa grandeza. Vamos diminuir a nós mesmos, para crescer em Deus’”, evidenciou, referindo que “o nascimento de São João ensina a inverter o curso da vida”, aprendendo “a dar espaço aos outros”, “a diminuir-se”, “a dar lugar a uma visão agradecida e benévola”, e “a desimpedir o rosto e os sentidos de alegria” 

“Mas há, contudo, mais um sinal, especialmente importante para quem, como nós, tantas vezes acredita que a vida é pré-determinada, que a vida se tornou irreversível, que a vida é uma espécie de fatalismo que nos conduz necessariamente ao desânimo”, destacou. “Descobrimos ainda que, como diria Dante na Divina Comédia, o amor é um estado de locomoção e não de paralisia; que, mesmo que só nos reste uma rua estreita, por onde teremos de caminhar, por cima da rua existe, todavia, o céu inteiro. Mais importante que tentar capturar a vida em fórmulas criadas por nós mesmos, é deixarmos-mos apreender pela vida”, acrescentou, terminando: “Resta-nos a certeza de que se, hipoteticamente, sentirmos que Deus não nos ajuda, seremos nós mesmos, nesse caso, a ajudar Deus.” 

“A grande maravilha que foi premiada não foram as pedras, mas as pessoas”

No final da Eucaristia, Pe. Paulo Emanuel relembrou que aquela comunidade paroquial – São João d’Arga – tinha sido “a única no concelho a ter escapado, até ao momento, à pandemia Covid-19”. “Do mesmo modo que, há anos, quando um incêndio devastou a Serra d´Arga, esse mesmo fogo parou quando chegou às imediações do Mosteiro, que ficou totalmente salvaguardado, neste momento foi, também, São João que serviu de ‘escudo’ a esta população”, convidando os presentes a agradecer esta “graça especial”. 

O Pároco aproveitou para agradecer a todos aqueles que colaboraram na campanha que culminou com a eleição da Romaria de São João d´Arga como uma das 7 Maravilhas da Cultura Popular, indicando que “a grande maravilha que foi premiada não foram as pedras, mas as pessoas, os peregrinos e a população que cuida e reza naquele espaço”. “Proteger a Serra d´Arga é proteger a autenticidade, a Romaria e os traços que a caracterizam”, referiu.

No final da sua intervenção, recordou a memória de D. Anacleto, “que tanto gostava e tão bem conhecia a Serra”, convidando a assembleia a, conforme o pedido do Administrador Diocesano, rezar pela designação de um novo Bispo.

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