Luísa Ávila da Costa: “Cristianismo e desporto continuam a promover e investir na sua muito própria ética ascética e pedagogia da espera”

Luísa Ávila da Costa é Professora Auxiliar de Sociologia e Antropologia do Desporto na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, onde leciona a disciplina de Desporto e Religião.

João Basto
19 Jan. 2023 8 mins
Luísa Ávila da Costa: “Cristianismo e desporto continuam a promover e investir na sua muito própria ética ascética e pedagogia da espera”

Notícias de Viana (NdV): Que pontos de contactos estabelece entre o cristianismo e o desporto?

Luísa Ávila da Costa (LAC): Esta é uma pergunta de uma abrangência muito grande.

Há fatores históricos que lhe poderia referir, assim como heranças axiológicas que marcam presença ainda hoje.

Do ponto de vista histórico, poderia referir-lhe, por exemplo, a forma como Paulo de Tarso, discípulo de Cristo, a quem se atribui a autoria de treze dos vinte e sete livros do Novo Testamento, recorreu no seu tempo a uma utilização simbólica das metáforas agonísticas antigas no sentido de divulgar uma nova cosmovisão cristã, quando ela ainda era embrionária.

Ele, artesão pregador que viajou por todo o Mediterrâneo durante mais de quinze anos, num período em que os jogos do mundo antigo estavam em grande ebulição, não teve alternativa se não ver e ouvir os sinais e repercussões sociais de toda a explosão agonística vivida nessa época, adaptando a sua linguagem evangelizadora aos costumes, valores e práticas vigentes nas atrativas práticas sociais dos jogos, às quais os seus interlocutores seriam, culturalmente, sensíveis.

Talvez possamos afirmar que a reinterpretação que Paulo de Tarso faz da metáfora atlética, a partir de um novo horizonte de sentido (a fé em Cristo), constituiu um elemento central na redefinição dos valores agonísticos a favor da origem do cristianismo.

Estes valores, herdámo-los até hoje.

Há valores desportivos muito importantes que fazem também parte do universo axiológico cristão e vice-versa: os valores do sacrifício, do esforço, da luta pela superação e da procura pela transcendência, a sede e busca pela perfeição, o reconhecimento de uma dignidade metafísica e não meramente material, do corpo, são apenas alguns exemplos constituintes do Agon desportivo e da Competição atlética.

Numa era contemporânea do imediatamente tangível, da procura pela permanente gratificação instantânea em tudo, das velocidades alucinantes do quotidiano, cristianismo e desporto continuam a promover e investir na sua muito própria ética ascética e pedagogia da espera, do esforço, do sacrifício, de entrega ao caminho de experiência em mundo, sabendo habitá-lo, nele amadurecendo, nele permanecendo com paciência, sem atalhos ou soluções fáceis ou imediatas.

Ao mesmo tempo, toda essa busca pela perfeição é realizada de forma semelhante no cristianismo e no desporto, a partir da humildade do autoconhecimento, da auscultação interior, do reconhecimento da realidade própria e, por isso, também da necessidade de aceitação e acolhimento da limitação própria, para, a partir dela, se poder caminhar e edificar.

(NdV): Os gregos associaram os jogos olímpicos ao fogo, à chama. Fogo esse que, segundo a mitológica helénica, foi roubado aos deuses. O desporto pode ser visto, por isso, como uma transgressão? Um desafio, antes de mais, a Deus?

(LAC): São várias as leituras possíveis.

Desporto e fé são realidades culturais e, por isso, dinâmicas e em constante evolução.

Poderíamos pensar que o desporto, particularmente o futebol, tem vindo a roubar o Domingo ao cristianismo, pois os estádios (e também as audiências televisivas) encontram-se cheios e as igrejas tendem a ver-se progressivamente vazias.

Mas na sua essência, e se vivido com autenticidade, o desporto pode ser veículo de intuição do divino também, como é, aliás, o que muitos atletas expressam, nos seus agradecimentos e homenagens a Deus em plenas arenas desportivas e tantas vezes divulgadas pelos media.

(NdV): Os primeiros cristãos tinham uma postura contrária a diversos desportos romanos, mas hoje não se levanta qualquer questão semelhante relativamente à vivência do cristianismo. O que permitiu esta mudança?

Não sei se concordo que não se levanta qualquer questão. Repare, o desporto é uma realidade polimórfica e polissémica. São muitas as formas das suas práticas e muitos os sentidos com que estas são vividos.

Não sei se, por exemplo, a exacerbação do elemento de construção de uma imagem corporal com base em critérios de imagem estereotipados (não refiro critérios estéticos porque o meu olhar sobre a estética é filosófico e não materialista), que excluem o diverso, o imperfeito, o real, o limitado, o fraco, o doente, como o que vemos com frequência no mundo do fitness, não coloca alguns desafios ao olhar cristão sobre o corpo e a pessoa. E isto no campo das práticas desportivas mais informais.

Mas também no campo do desporto formal, não sei se a obsessão pelo resultado, a falta de fairplay financeiro, o problema do doping, ou até a existência de modalidades desportivas tolerantes com níveis de violência significativos (como as artes marciais mistas, por exemplo) não colocam também desafios aos valores cristãos.

Parece-me que em todas as épocas, religião e desporto encontrarão as suas aproximações e tensões.

(NdV): Como conjugar a verdade de “não bastar participar”, com a intuição cristã que vê na derrota a possibilidade de vitória?

(LAC): Eu diria que com a ideia válida de que não basta, de facto, participar, mas é necessário participar na inteira doação de si, no desporto como na vida, umas vezes conduzirá à vitória e outras à derrota.

Repare: no desporto há muito mais perdedores do que vencedores. Muitos competem, para apenas um ganhar. Veja todos os corredores da maratona, ou mesmo todas as equipas de um campeonato de futebol… são uma multidão de perdedores! Se o ethos do desporto fosse apenas a vitória, seria um projeto enormemente fracassado e contraditório.

(NdV): Que ligação existe entre a ideia do desportista, “herói” e “super-homem”, e a de santidade?

(LAC): Penso que a ligação é que quer o herói, quer o santo, não são produtos acabados nunca, mas homens em caminho até ao limite das suas possibilidades e da sua vida. A carreira de um desportista de alta competição é potencialmente mais curta do que a da pessoa em caminho de santidade. Mas se olharmos para a pessoa desportista para além do profissional, mas da pessoa que pratica e usufrui do desporto como modo de estar ao longo de toda a vida, ambos são seres em caminho, em edificação, e, por isso, sempre inacabados.

(NdV): Vemos o desporto como algo separado da “vida a sério”, como uma atividade que fazemos depois ou antes do trabalho, como uma “ocupação” dos tempos livres. Mas, o desporto é, também, criador de comunidades e de associativismo, muitas vezes de forma precária e informal. Como pode o desporto, cada vez mais, ser transportado para a vida, e a vida continuar a catalisar o desporto?

(LAC): Hum… esta pergunta é de difícil resposta…

A progressiva prescrição de exercício físico e atividade desportiva para o cuidado com a saúde (não apenas física, mas sobretudo mental), pode ser um indicador de que o ser humano precisa de ócio, de tempo livre, de equilíbrio entre as várias dimensões da sua vida. Nesse sentido, o desporto pode tornar-se bem sério, porque evidencia o quanto precisamos de momentos “não sérios” para encontrarmos o nosso equilíbrio (internamente e com os outros, com o mundo que nos rodeia). Além disso, a liberdade experienciada nesses momentos “não sérios”, não regulados pelas amarras das imposições formais do quotidiano, é profundamente regeneradora e potenciadora do surgimento de novas ideias, de criatividade, e do desenvolvimento também de outras dimensões humanas para além do racional, como a sensibilidade, o prazer e as emoções. Uma vida que se permite ser ocupada pelo desporto torna-se genuinamente mais vida, por sua vez, por ser humanamente mais global e completa.

(NdV): Viana do Castelo será Cidade Europeia do Desporto. O que pode fazer-se para que o desporto não seja visto só como uma fonte de aptidão física e de saúde, mas como potenciador de uma “cultura que seja ciência, consciência” e sentido de vida?

(LAC): O desporto permite-nos uma experiência de corpo inteiro, de relação com o outro e também com a natureza, relações das quais somos tantas vezes privados nos nossos gabinetes, nas nossas secretárias, nos nossos escritórios, nos nossos trabalhos, nos nossos lugares de vida abundantemente sedentária.

Ora estas relações de abertura, atenção e sensibilidade ao que nos rodeia (e por isso de uma certa fuga ao autocentramento) tem, pelo menos, o interessante potencial de promover um mais profundo conhecimento sobre nós próprios, sobre o outro e sobre o mundo, nos seus limites e potencialidades. O mesmo poderia dizer da música ou da arte em geral. A ignição que isto pode dar a uma vida boa, porque vivida com sentido, é incomensurável.

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