Luís e Vítor: As vidas paralelas do 25 de Abril

Phil Mailer chegara há pouco tempo a Portugal. Vinha para ser professor de inglês, mas acabaria por contactar, em primeira pessoa, com a revolução dos cravos. Anos mais tarde, escreveu que tudo lhe parecia surreal, inclusive que os “tanques tinham um ar gigantesco nas ruas estreitas”.  É a partir desta imagem que percebemos o que separa Luís Brito e Vítor Barros. Ambos lutaram contra o Estado Novo. O primeiro, nas operações militares do 25 de Abril, em Lisboa. O segundo, candidatando-se pela C.D.E nas eleições de 1973. Desejaram um “outro país”, mas, hoje, entre a esperança e a desilusão, a distância coloca-os em lados diferentes da mesma moeda. Os dois são, à maneira de Plutarco, duas vidas paralelas.

João Basto
24 Abr. 2023 6 mins
Luís e Vítor: As vidas paralelas do 25 de Abril

“Não havia volta a dar” 

A reunião decorreu num apartamento por cima do antigo Café Satélite, em Lisboa, numa perpendicular à Av. da República. O convite partiu do capitão Teófilo Bento, diante de um jovem oficial miliciano, Luís Brito, na altura com 23 anos, com curiosidade em perceber “a orientação política da intervenção militar” para a qual tinha sido desafiado. Já ligado à oposição democrática, pelo menos desde os tempos em que partiu para o Porto para estudar engenharia, e aí contactou com grupos católicos contra a guerra colonial, Luís Brito conheceu, nessa noite, o slogan que resumiria o programa do MFA: Democratizar, Descolonizar e Desenvolver. Ficou convencido. Quando a rádio transmitiu a senha, soube que “não havia volta a dar”. 

Ficara encarregue de participar na coluna que ocuparia os estúdios da Rádio Televisão Portuguesa, então no Luminar. “Uma ocupação pacífica”, resume. Mas esse acabaria por ser um lugar relevante. Primeiro, porque muitas das unidades que chegavam ou partiam de e para Lisboa passavam por lá, tornando a cantina da RTP um posto de alimentação dos militares. Segundo, por ser a partir daí que, ao fim da noite, a recém-formada Junta de Salvação Nacional se dirigiria ao país. 

Ao todo, Luís Brito ficou 72 horas sem dormir. Os dias foram de azáfama, entre a escolta a antigos agentes da PIDE, ou tentativa de detenção do Almirante Henrique Tendeiro, conhecido, na altura, pela sonante alcunha de “patrão das pescas”. O 1º de Maio foi, no entanto, visto através dos muros do quartel onde estava de prevenção. 

“Versão manipulada” 

É com a referência ao avô pescador, que recitava poesia no meio do rio, que a conversa com Vítor Barros termina. Após a tentativa de candidatura em 1973, fugiu para a então URSS – União Soviética, via França. “Um país bom para se viver, mas não para eu viver”, diz entre o esboçar de um sorrio. Conta que, para lá da cortina de ferro, encontrou um regime num ponto de rutura. “A esquerda deixou as suas referências – classe social, trabalho, desigualdade – e não criou outras. Quis utilizar os métodos do capitalismo e enforcou-se, calmamente”, refere. 

O diálogo leva-nos noutras direções. Vítor, que pede várias vezes para não ser tratado por Sr., assume que “não liga muito ao passado”. Afastou-se da luta política, desiludido com o que veio depois do 25 de Abril. Esperava mais participação, esperava ver o continuar de tudo o que o encheu de entusiasmo naqueles dias de 1974. Quando lhe perguntamos porque se candidatou um ano antes “contra o regime”, responde sem grandes elaborações “porque era preciso”, explicando que, na altura, não se “interessava com o que ia fazer depois, mas com o que ia e tinha de fazer”. Preocupa-o, antes de mais, o ambiente de conformismo e o ciclo fechado em que as sociedades hoje vivem. “Hoje viaja-se por todo o lado, mas não temos nada para dizer, nem com quem falar. Estamos nas mãos do poder”, afirma. 

No fundo, o que sente é mais que frustração, algo mais profundo que a simples sensação de ter sido vencido. “É pior”, confessa, “é o sentimento de banalidade, a perceção de vivermos numa versão manipulada da realidade”. 

Segundo ele, “Portugal foi um país pequeno para a revolução”. Conta que “o pessoal saiu para a rua, mas acabou por aceitar o que veio a seguir”. Ele próprio assume: “também deixei de me interessar”. 

“As revoluções silenciosas”

Nesse ponto Luís Brito discorda. “Fizemos uma revolução magnífica, que ficou como referência no mundo inteiro”, sublinha. Mas tem pena que o “sucesso económico” dos primeiros tempos tenha sido muito pontual. Mesmo comparando o 25 de Abril com a transição pacífica do franquismo para o restabelecimento da monarquia constitucional no país vizinho, Luís afirma perentoriamente: “não me arrependo”. “O sucesso do processo espanhol teve mais a ver com o facto de Espanha ser um país economicamente mais forte, do que com o método utilizado”, considera. 

Ainda assim, hoje olha para o futuro com um misto de preocupação e de esperança. Lamenta que, na altura, não se tenha ido mais longe “na intervenção ao nível dos campos, da cidade e das habitações”, mas reconhece que havia algum lirismo excessivo no 25 de Abril. “Para levar uma certa ideia de revolução por diante, tínhamos de ter capacidade de criar um homem novo, diferente deste homem envolvido na sociedade de consumo. Naquela altura, acreditávamos que isso era possível abalando o regime e afastando os PIDE´s. Hoje percebemos que era preciso algo mais profundo que a dissolução do aparelho fascista”, reitera. 

Preocupa-o “a destruição a que o mundo está a ser sujeito” e o “ressurgir de regimes autoritários”. Porém, celebra com entusiasmo o que acredita ser uma nova consciência política, designadamente juvenil. “Os jovens começam a perceber que se não se mobilizarem, o mundo vai mesmo para o maneta”, revela. “É necessário terminar com a poluição, com a produção massiva de carros e de armas”. 

É por aqui que Vítor Barros acredita que pode estar um caminho de redenção. “Já não podemos fazer revoluções com muita gente, mas podemos fazê-las com pouca gente; ou seja, revoluções silenciosas. Tens uma posição sobre um assunto qualquer. Eu posso dar-te a minha, e tu pensas nisso”, comenta. 

Luís Brito acha que é nesta atitude que reside o “espírito do 25 de abril”, “esse espírito de debater as coisas e não ficar satisfeito com elas, chegando a questionar até a minha própria razão, o meu princípio, o meu objetivo, a minha forma de levar à prática e de concretizar o que penso ser justo”.

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