Confesso: há coisas que simplesmente não entendo. Diz-se que em tempos de crise conhecemos o verdadeiro carácter das pessoas. Ora bem, se assim é, parece que o carácter nacional é composto por gasolina, atum e rolos de papel higiénico em quantidades capazes de forrar o nosso monte de Santa Luzia! Bastou um apagão e, em vez de acendermos velas e rezarmos por paciência, acendemos os motores e corremos desenfreadamente para as bombas de gasolina e supermercados.
Ora então, bastaram umas horas de falha no fornecimento de energia em Portugal e Espanha para se instalar um cenário digno de um filme apocalíptico de domingo à tarde. E não estou a exagerar. Pessoas a correr para as bombas de gasolina como se o fim do mundo estivesse a duas rotundas de distância. Filas intermináveis, carros com jerrycans, garrafas, tupperwares… tudo o que desse para encher com combustível! Mas encher para ir para onde, exatamente? Para fugir do escuro? Ir para outra cidade igualmente sem energia? Ou é uma questão de orgulho: se o mundo acabar, pelo menos eu morro com o depósito cheio!
E depois temos os supermercados. A secção do atum esvaziou-se num piscar de olhos, como se a próxima refeição fosse só em 2050. Papéis higiénicos? Desaparecidos. Garrafões de água? Um bem de luxo. Alguns até encheram a banheira, que nem mergulhadores profissionais. Imagino o pensamento: “Se isto durar, ao menos tenho onde tomar banho”. Frio, claro. Questiono-me se depois essas pessoas (que pensam ter um QI mais elevado) deram banho nessa mesma água (fria!) ou se, como já havia eletricidade à noite, aproveitaram e tomaram um banhinho de água quente deitando a água fria fora, desperdiçando-a pelo esgoto abaixo.
Desculpem, mas não entendo. Acham mesmo que esta atitude de correr a comprar como se fosse Black Friday no fim dos tempos ajuda alguém? A quem correu a encher bidões de gasolina, deixo a pergunta: se todos tínhamos de passar pela mesma crise, a vossa prioridade é garantir que vocês ficam com tudo e os outros que se “amanhem”? E se o mundo acabar, ao menos morrem com as prateleiras bem recheadas?
Pior: tenho o privilégio de trabalhar numa das linhas das frentes na distribuição de energia. Fiz parte da enorme equipa que religou este país, literalmente. Vi operadores a correrem contra o tempo, colegas a fazerem milagres técnicos, e sistemas a serem reiniciados numa operação tão delicada quanto bela (porque sim, mesmo com os percalços, há uma harmonia em repor a ordem no caos elétrico). E o mais surpreendente? Hotéis, oficinas de automóvel e pequenos negócios conseguiram alugar geradores com combustível antes que os próprios operadores da rede de energia os conseguissem requisitar.
Isto faz sentido para alguém? Alguém parou para pensar que, enquanto estavam a correr pelos corredores do supermercado com 28 latas de atum no carrinho, os profissionais no terreno estavam a tentar garantir que a luz voltava a casa de todos?
A mim, isto relembra os tempos dourados da pandemia de COVID-19. Lembram-se? Quando o medo nos transformou em colecionadores de papel higiénico. Mal sabíamos que o vírus não era intestinal… Mas o impulso de armazenar coisas, como se estivéssemos prestes a enfrentar uma guerra nuclear de 30 anos, permanece bem vivo.
Não aprendemos nada?
A vida cristã é, entre muitas outras coisas, um convite constante à partilha, à confiança e ao cuidado com o próximo. A mensagem do Evangelho não diz “armazena tudo o que puderes antes que o vizinho chegue”. Pelo contrário, convida-nos a partilhar o pão, a viver com simplicidade e ter esperança. E, convenhamos, esta corrida desenfreada ao supermercado ou à bomba de gasolina está mais perto do surrealismo do que da fé.
Temos medo, é certo. Somos humanos. Mas precisamos mesmo de nos tornar selvagens ao primeiro sinal de crise? A solidariedade desaparece tão rapidamente quanto a energia?
A verdade é que somos uma sociedade habituada à imediatez das coisas. Queremos tudo, agora, e para mim. E se possível, duas vezes. Perdemos o hábito de confiar uns nos outros e, mais grave ainda, de confiar em Deus. Vivemos como se tivéssemos de resolver tudo sozinhos, quando a verdade é que as soluções vêm muitas vezes em comunidade.
Durante o apagão, vi também gestos bonitos: vizinhos a ajudarem-se, pequenos comércios a abrirem as portas para distribuir água fresca e comida e bairros a deitarem fogo de artifício quando a eletricidade “voltou”. Há esperança. Mas precisamos urgentemente de reaprender a confiar. A confiar que a energia volta, que o supermercado reabastece, que a nossa prioridade não deve ser “ter tudo” mas “ter o suficiente e deixar para os outros”.
Não se trata apenas de educação cívica. Trata-se de vivência cristã. De coerência entre o que dizemos e o que fazemos. De compreendermos que, mesmo na adversidade, somos chamados a ser luz. E que bonito seria se, num apagão, em vez de correr desenfreadamente, nos uníssemos. Se partilhássemos. Se acendêssemos velas, literalmente e metaforicamente.
Porque, no fim, de que serve o atum, o papel higiénico e a gasolina, se não formos capazes de partilhar, de confiar e de cuidar? O mundo não precisa de mais “açambarcadores”. Precisa de corações generosos, mesmo nos momentos escuros. E da próxima vez que houver um apagão, tentemos acender a luz dentro de nós. Pode ser que ilumine mais do que imaginamos.
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