Circunstância(s)
Do que é ser Humano e em síntese, daquilo que me vou ocupar hoje nesta linhas partilhadas, não sou pessoa para esclarecer. Aliás, ninguém é e paradoxalmente, todos somos. José Ortega y Gasset bem isso explica na sua obra Meditaciones del Quijote, de 1914: ”Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo”. (trad. livre – “Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo a ela, não me salvo a mim”).
É indubitável que o ser Humano não se define da mesma forma ao longo dos tempos históricos, e o presente, não é exceção. Também sei que apesar dos tempos que atravessamos não serem tempos felizes, de horizontes límpidos e de contornos certos, só mais adiante, e pela mão de outras gerações, será possível definir a nossa circunstância, e o nosso Eu coletivo. Para se escrever corretamente a História é necessária distância temporal aos acontecimentos. É necessário nos obrigarmos a esta disciplina de pensamento, sob pena de tornarmos a Parte, um Todo.
Ainda que a nossa circunstância, nas sábias palavras de Ortega y Gasset, seja determinística para o Eu, e esta, nas suas várias vertentes, é imutável (ou não nos está diretamente acessível), na mesma frase sentencial, está nas nossas mãos, também e paradoxalmente, a salvação.
Diagnóstico
E voltamos, de novo, por isso ao tema da Educação (cf. O Ambiente e a Liberdade: conquistas da Educação, Notícias de Viana, 25.04.2024). Proponho-me avaliar algumas das nossas circunstâncias – só as inquestionáveis – e de que forma a Educação – as pode positivamente modelar.
É, pois, indiscutível que nunca estivemos tão capazes, como hoje, de fazer circular mensagens. Diz-se amiúde que estamos ligados como nunca. Do exigente mundo presencial, com forçados heterónimos, temos Eu dispersos, agora também, no mundo desmaterializado proporcionado na Internet, permitindo-nos projeções múltiplas de nós próprios, adaptadas às circunstâncias de cada circunstância digital.
Sem me querer deter em grandes considerações, o resultado do que acabei de descrever (a que se soma um sentimento de coletiva imprudência de que a tecnologia é necessariamente boa e é um caminho que se faz sem desvios ou hesitações), sobra-me uma leitura (com a devida reserva por ser instantânea) de que a nossa presença, desregrada, no mundo digital, seja através do telemóvel ou computador, e em particular nas variadas plataformas de redes sociais, nos tornaram mais ignorantes, mais alienados, mais eticamente pobres, menos empáticos, menos críticos, menos tolerantes. Escrevemos cada vez pior, temos um léxico cada vez mais magro. E como o pensamento assenta em palavras, receio que nos estejamos a tornar menos capazes de pensar. Somos hoje, seguramente, menos Humanos. De alguma forma, a pulverização do controlo sobre a qualidade da informação que circula e nos chega, que tradicionalmente se fazia residir nos autores consagrados, nos homens e mulheres da Ciência, nos Professores ou na Imprensa, hoje traz-nos pacotes de informação cuja autoria não se conhece e principalmente, cuja intenção não se conhece. E se nós adultos, nos cabe a capacidade de não sermos incautos, quanto às nossas crianças e adolescentes – na linguagem de Professor – aos nossos alunos, vejo com grande e inquieta preocupação os efeitos de anos de informação bafejada sem que se conheçam os autores e as motivações.
E estamos, todos, também, algo esgotados. Para compreender este estado de pré-loucura, quase permanente e mais ou menos inconsciente, é importante não esquecer que em pouco mais de 10 anos, desde que pudemos estar permanentemente ligados à internet através do telemóvel, acentuamos, como nunca registado na nossa evolução enquanto espécie humana, a alienação ao próximo, o afastamento aos espaços naturais e à Natureza.
Pedaços de Salvação 1
É preciso voltar às origens. Respeitarmo-nos, que mais não seja, biologicamente. Essa honra que se faz ao que reside no nosso ADN, transportado e depositado em nós pelos nossos antepassados. Recordar e reconstruir em nós, o que é a essência da Vida: a proximidade ao próximo, a empatia, o respeito e a tolerância; a promoção e a valorização da Arte e da Cultura nas suas diversas manifestações. Promover, indiscutivelmente, a leitura de obras de referência. Valorizar o estudo da História. Procurarmos valorizar os saberes transgeracionais. Procurar oportunidades de comunhão com a Natureza. São estas algumas das formas de salvar a nossa circunstância, e por conseguinte, de nos salvarmos. Quantos de nós temos vindo a perder este Norte? E, principalmente, quantos de nós, pais, temos perdido o garante desde Norte nos nossos filhos?
A Escola
A reforma educativa trazida pelo Regime Jurídico da Educação Inclusiva (DL54/2018) e o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (DL55/2018), bem como a revogação das Metas Curriculares das várias disciplinas (Despacho n.º 6605-A/2021) e a definição de Aprendizagens Essenciais, retoma, em parte, as condições favoráveis a uma plena Escola Cultural, conceito com mais de 7 décadas, introduzido pela mão de Pires de Lima na reforma educativa de 1947.
Do mais importante a reter para o tema trazido, dá-se força de lei a um currículo que se quer enraizado nas realidades locais – saberes e património –, de lógica construtivista e interdisciplinar (portanto tendencialmente flexível), focado no aluno e na valorização da sua diferença – capital cultural e ritmo (portanto diferenciado).
Vários passos na direção certa, tendo em conta que é preciso conhecer-se para se amar. E devemos amar, em primeiro lugar, os lugares, as coisas e os nossos mais próximos: sejam da família, sejam os homens e mulheres que fizeram do lugar (e o Mundo) que vivemos, um espaço melhor. Ortega Y Gasset sintetiza genialmente esta visão: Hay, pues, en el amor una ampliación de la individualidad que absorbe otras cosas dentro de ésta, que las funde con nosotros”. (Trad. livre: “Há pois, no amor, uma expansão da individualidade, que absorve outras coisas dentro de si, que as funde connosco”.
Pedaços de Salvação 2
É, pois, necessário para o sucesso da reforma educativa de 2018, em curso, redefinir o conceito de manual escolar (que tenha enfoque regional!!), assunto ainda mais premente tendo em conta que desde 2019, o Ministério da Educação assume integralmente seu custo (através do Orçamento de Estado), oficializando a sua centralidade no processo ensino-aprendizagem. É necessário reconquistar para a sala de aula e para casa, os LIVROS, consagrando-os (esses sim!) como os instrumentos de eleição em Educação e as BIBLIOTECAS ESCOLARES, como epicentro da atividade letiva dentro de portas. Que façam par com a Natureza e os elementos culturais (a nossa identidade!), consagrados como os epicentros da atividade letiva fora de portas.
Por último, é absolutamente necessário que se garanta, em qualquer reforma educativa proporcionada pelo Ministério da Educação, o envolvimento ab initio das autarquias locais e das instituições de ensino e investigação de proximidade, com preponderância para as Escolas Superiores de Educação.
As Origens
A nossa presença digital, e principalmente, a presença digital dos nossos filhos e alunos, quer-se compreendida como uma ferramenta a que se acede. A escola deve trazer essa ferramenta para a sala de aula, esteja esta entremuros ou fora deles, na justa medida e equilibrada, complementar aos restantes recursos que estão disponíveis.
A função insubstituível de segurar o lápis entre os dedos, o desenho das letras e das linhas, o exercício dos recortes, são funções biológicas treinadas, nos seus equivalentes, pelos nossos ascendentes, desde há 30 a 40 mil anos e que nos permitiu os primeiros registos do conhecimento, nas suas formas simbólica, intelectual e artística, e a sua transmissão usando as rochas como suporte. O treino da motricidade fina, a prática espacial das composições, a organização física do espaço (de trabalho), a textura das folhas e o seu cheiro, não se consegue digitalmente e exerce função cerebral além da estritamente motora.
Conclui-se que sendo a evolução das espécies, lenta, contínua e gradual (Charles Darwin, A Origem das Espécies, 1859) e a aprendizagem, uma função biológica, as mudanças que sobre esta função se possam operar, devem respeitar a natureza humana. Sob pena de ser esta uma mudança que opere um novo ser humano e ao que tudo nos prova a evidência até ao momento, menos capaz e menos humanizado que até então.
Obrigar os alunos a mudar-se para o mundo virtual, sob o lema do Futuro, e permitir que aí se mantenham, é violar a sua essência e compactuar com práticas que impedem o normal desenvolvimento cerebral das crianças, e adolescentes. É também, uma porta aberta, para a formação de extremismos e intolerâncias, de toda a índole, terreno fértil de movimentos políticos populistas e de seitas.
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