António Bagão Félix: “Não confundamos crescimento económico com desenvolvimento humano”

António José de Castro Bagão Félix, de 73 anos, casado há 49 anos, pai de 2 filhas e avô de 4 netos, licenciado em ciências económicas e financeiras, foi Vice-governador do Banco de Portugal, acumulando uma vasta experiência governativa, de que se destacam os cargos de Ministro da Segurança Social e do Trabalho e Ministro das Finanças e da Administração Pública, nos XV e XVI Governos Constitucionais, respetivamente. Em entrevista ao Notícias de Viana, o também ex-Presidente da Comissão Justiça e Paz alertou para o facto da atual situação pandémica por a nu “o servilismo do dinheiro, a tirania da ambição desmedida, a pobreza espiritual (...) e o pendor materialista em que muitas vidas se deixaram aprisionar”, focando a dignidade da pessoa, a defesa e promoção do bem comum e a primazia dada aos mais pobres, como centrais na proposta da Doutrina Social da Igreja, deixando claro que “o essencial de nós, enquanto pessoas, não pode ser vertido para a lei”.

Micaela Barbosa
6 Mai. 2021 13 mins
António Bagão Félix: “Não confundamos crescimento económico com desenvolvimento humano”

Nas proximidades de um mês em que o Papa Francisco pede a oração pelo mundo das finanças, quais pensa serem as traves mestras da cultura e proposta humanista cristã neste âmbito?

O Papa Francisco sublinhou, com rara mestria, aquilo que é um património não só da Igreja como um património universal destinado a todas as pessoas de boa vontade, que é a Doutrina Social da Igreja. E a Doutrina Social da Igreja é muito clara quando repudia, quer formas de coletivismo castrador, quer formas de capitalismo selvagem e de liberalismo sem freios. Neste sentido, entendo que a proposta humanista cristã, no âmbito económico e financeiro, começa por valorizar os princípios básicos que estão inscritos nas Encíclicas papais. Ou seja, em primeiro lugar, a dignidade e a centralidade da pessoa, em segundo lugar, a defesa e a promoção do bem comum, em terceiro lugar, a primazia dada aos mais pobres, aos últimos da escala social, em que se incluem os pobres do ponto de vista material, os pobres do ponto de vista da saúde, de falta de trabalho e de relações, etc.. Tudo isto baseado em dois princípios fundamentais: o princípio da solidariedade e o princípio, que tantas vezes é esquecido, e no nosso país é muito esquecido, da subsidiariedade social, pelo qual se defende que não devemos subir no patamar das organizações sociais se pudermos resolver os problemas em organizações mais básicas, desde logo na família. 

Na Evangelii Gaudium, o Papa Francisco afirmou: “esta economia mata”. Quais são os grandes desafios que o mundo da economia lança aos cristãos?

Há um que me parece absolutamente fundamental, que é que a economia precisa da ética para ser verdadeira, para não exprimir uma situação de rutura com a dignidade das pessoas. Por outro lado, a economia precisa de ser humanizada, ou seja, nós, qualquer que seja a nossa posição na economia, como sujeitos de comunidades de consumo, ou como trabalhadores e empregadores, deveremos ter em conta que somos fins e sujeitos das ações, e não meios e instrumentos, como se fôssemos coisificados. E, na verdade, hoje há uma tendência à nova idolatria do dinheiro, como lhe chama o Papa Francisco, e o desafio é que ele seja um meio, e não um fim em si mesmo. Nesta linha, costumo inclusive dizer que, a economia social de mercado é sempre bem-vinda, na medida em que saiba conjugar a nossa capacidade de investir, de poupar, de realizar e de concretizar, ao mesmo tempo que o sabe fazer com o pano de fundo do humanismo de coesão e de defesa dos mais desfavorecidos. Com efeito, digo sim à economia de mercado, e não à sociedade de mercado, pois uma coisa é uma economia de mercado, que corresponde aos desafios da produtividade, da competitividade e de uma globalização algumas vezes muito agressiva, outra coisa é a sociedade ser “de mercado”, em que vale mais o ter que o ser, em que as pessoas se deixam trocar, às vezes, por coisas efémeras, avulsas e circunstanciais. 

“Caminhos para um mundo em mudança” faz parte do subtítulo do seu novo livro “Um dia haverá…”. Consegue enunciar alguns destes trajetos?

Em primeiro lugar, não confundamos crescimento económico com desenvolvimento humano; o crescimento económico é necessário para o desenvolvimento humano, mas não é suficiente, aliás como indica o facto de a seguir a desenvolvimento aparecer a palavra “humano” e não “económico”, dado que esse é mais alargado. E o grande desafio é esse: não nos deixarmos seduzir apenas pela ideia do ter, como referi há pouco, mas irmos mais longe, ou seja, não endeusar a globalização ignorando os perigos morais. Por outro lado, destaco a ideia de personalizar os mercados e a política, não nos transformando em meros invólucros estatísticos, que, às vezes, provocam nevoeiro e retiram humanização e humanidade às decisões. Por exemplo, neste momento nós estamos confrontados com uma situação em que um microrganismo nos mostra que, nós que vivíamos num mundo de êxtase científico e tecnológico, em que o infinito parecia ser o limite, muito embora tendo ao nosso dispor uma notável parafernália tecnológica, somos mais pobres de espírito; há, aliás, uma aridez espiritual, e este vírus, de certa forma, alerta-nos para o futuro, nomeadamente para o servilismo do dinheiro, a tirania da ambição desmedida, a pobreza espiritual de que falei e o pendor materialista em que muitas vidas se deixaram aprisionar. Como indica um provérbio sul-americano, “à procura de água, encontramos petróleo e morremos à sede”. 

Numa entrevista, afirmou que “a ética não se confunde com a lei”, ao contrário do que se poderia imaginar. Pode explicar de que modo se pode compreender esta afirmação?

A lei é o patamar inferior da exigência ética, por isso esta é mais do que a lei. Por exemplo, nenhuma lei me obriga a ser leal no trabalho para com um colega, nenhuma lei me obriga a ser solidário, nenhuma lei me obriga a estar disponível para os outros, assim como nenhuma lei jurídica proíbe a ganância, o ódio e a mentira. Ou seja, o essencial de nós, enquanto pessoas, não pode ser vertido para a lei, e é nesse sentido que a ética é um elemento superior ao ordenamento jurídico.  Neste sentido, quando alguém diz “eu sou eticamente irrepreensível, porque cumpro toda a lei”, pode estar a referir um aspeto que não o qualifica, necessariamente, como boa pessoa, visto que uma pessoa pode cumprir plenamente a lei e ser um grande falsário, tal qual os fariseus, que eram escrupulosos cumpridores da lei e, no entanto, faltava-lhes substrato ético. Por isso, é bom que a lei tenha cada vez mais componentes éticos, e creio que isso é uma evolução positiva das sociedades, mas não se confunde com ela. Dando um exemplo, a lei hoje obriga a classe política a determinado tipo de regras, como é o caso da legislação que proíbe que um Ministro saia do Governo para uma empresa que antes titulava; mas quando isso ainda não estava na lei, a exigência ética já determinava que fosse assim. Daí que seja importante que a lei vá absorvendo cada vez mais imperativos de consciência ética, mas nunca chegarão ao ponto de se confundir porque, por exemplo, não há nenhuma lei que proíba uma pessoa de odiar outra, nem nunca haverá.

Refere a existência de uma “cultura de morte” nos nossos dias. Como é que ela se manifesta? O que está ao nosso alcance para a combater?

Enquanto cidadão e católico, para mim a vida é um bem supremo, o que decorre, aliás, do direito natural e é o fundamento para todos os direitos e deveres do plano ético da consciência, e do plano da lei positiva. Ora, a vida é um contínuo, desde a sua conceção até à sua morte, e desvalorizar qualquer um desses momentos é pôr em causa o valor inalienável da vida e relativizá-la. No fundo, é aceitar uma métrica técnica que afirma, por exemplo, “ainda não é vida; só é vida a partir de um determinado momento” segundo um método arbitrário, em que se subentende, também, que alguma gente já velha é descartável, quando a velhice, antigamente, era uma dignidade, e agora é um peso, um enfado para muita gente, mas não para toda, claro. Portanto, a cultura de morte revela-se, hoje, na banalização do aborto, nas ideias de eutanásia, na criação do eufemismo “morte clinicamente assistida”. Aliás, há uma expressão do Papa João Paulo II que afirma que existe, nas sociedades pós-modernas, uma espécie de coligação contra a vida; não por acaso, mediaticamente, o que hoje é notícia não é a vida, é a morte.

Como olha para a sedução do autoritarismo dentro das democracias?

Hoje há, efetivamente, radicalismos, quer do espectro da direita, quer do espectro da esquerda, e temos que perceber as causas destes fenómenos, mas combater as consequências. E o facto é que, diante de uma economia cada vez mais desumana, perante uma sociedade que anda distraída com a espuma dos dias, que é incapaz de olhar para o longo prazo, onde estão os grandes problemas como o problema do inverno demográfico, o problema ambiental, o problema da educação e da justiça, o problema da dívida pública, que não se discutem e que não abrem telejornais, porque o que abre telejornais e faz capa de jornal são minudências de uma cultura do atualismo, do presentismo; deixou, inclusive, de haver memória do passado, ao menos para servir como lição, que deu lugar à cultura do dia seguinte, e isso gera nas pessoas uma sensação de vazio que qualquer populismo é capaz de seduzir, porque apresenta o difícil como sendo fácil. Há como que um toque de magia que tende a dizer que, perante um grave problema, “isto, afinal, é muito fácil”. Mas repito, essas lógicas de radicalismo, de direita e de esquerda, beneficiam muito da impotência e da incapacidade das autoridades políticas e das sociedades procurarem resolver estruturalmente os problemas. 

Quais acredita serem os direitos mais ameaçados hoje em dia? 

Em primeiro lugar os geracionais, e em dois sentidos: por um lado, porque as pessoas mais velhas estão cada vez mais guetificadas, estando sujeitas a uma lógica de isolamento, de desconsideração, de descentração dos seus problemas e da menos valia da sua sabedoria, e esses direitos são importantes para uma sociedade harmoniosa e que se queira geracionalmente equilibrada; por outro lado, aqueles referentes às crianças e aos jovens, que têm à sua frente um futuro dificílimo, com um dívida pública que têm que pagar, com um degradação ambiental que os fazem sujeitar-se a situações ainda hoje não visíveis. E isto reflete a dificuldade de resolver os problemas estruturais, porque, a verdade é que o poder político, em Portugal ou outros países, só olha para as próximas eleições, deixando de olhar para as próximas gerações, como quem diz: “Que interessa! Já cá não estamos!”.

No entanto, há ainda a realçar os direitos laborais, numa perspetiva humanista, personalista e de conjunção entre o capital e o trabalho, mas que não pode ser sujeito à coisificação do trabalho, e, no atual contexto, há que destacar o teletrabalho, que agora é muito falado, e que é uma figura importante, mas em que é preciso acautelar o seu abuso, porque pode ser uma situação que ponha em causa o princípio fundamental de equilíbrio entre as responsabilidades laborais e as responsabilidades familiares de cada trabalhador. 

E finalmente, o direito da intimidade e da privacidade das pessoas, visto que, atualmente, sentimos que o nosso quotidiano pode ser descodificado com todos os instrumentos que banalmente usamos, desde os cartões bancários às passagens nas autoestradas, passando também pelas redes sociais, e que levantam novas e insondáveis questões. 

É conhecido o seu gosto pela botânica. O que é que as plantas nos podem ensinar? Que respostas podem dar às nossas inquietações?

De facto, tenho um sentimento de fascínio pelo mundo vegetal, mas também um sentimento de gratidão, não só por aquilo que ele fornece do ponto de vista alimentar e medicamentoso, mas, sobretudo, por nos permitirem falar, porque sem a fotossíntese das plantas, sem a captura de dióxido de carbono que elas fazem, não podia haver vida.  

Acima de tudo, tendo a olhar para elas como seres vivos. Muitas vezes falo com amigos meus, pergunto-lhes há quantos anos vivem em determinada casa; muitos deles respondem “há 30/40 anos”, mas não sabem como se chama a árvore que está em frente da casa. As árvores também precisam de comunicar, de ser bem tratadas, de ser acolhidas, e nós vemos tanta patifaria a esse nível, mesmo nos poderes públicos, que eu acho que são uma grande ingratidão muitas das nossas atitudes.

Por outro lado, elas alimentam em mim esta curiosidade sôfrega com que vivo e hei de viver até ao último dia, se Deus quiser; e quando falamos de plantas, à medida que sabemos mais, temos claramente consciência que sabemos cada vez menos. Mas essa luta é positiva, enche-nos de curiosidade, permite-nos a capacidade, que hoje está a cair em desuso, de nos espantarmos.        

Por último, como lê este tempo de pandemia? Que urgências deteta e que paradigmas vê emergir? 

O paradigma é voltar a pôr as pessoas no coração dos problemas, e não as estatísticas, e não os soundbytes, e não a lógica do presentismo, e não a cultura do descarte, como fala o Papa Francisco. Em segundo lugar, é importante ressaltar que, em certa medida, só somos dignos da nossa existência se soubermos respeitar a nossa existência, ou a irmã-Terra como diz o mesmo Papa, aprendendo a ouvir os seus gritos. Porque a ética não é meramente antropocêntrica, a ética é pluricêntrica, voltada para nós e para aquilo que nos rodeia: os mares, o ar, a terra, a natureza, em síntese. E, como último ponto, destacava o seguinte: creio que vivemos num mundo que, à semelhança a um triângulo, é composto pelo vértice do individualismo-consumismo, o vértice do subjetivismo, pelo qual muitos acreditam que o que conta são as opiniões e não os valores e os princípios de vida, que não se confundem, nem terminam nas primeiras, e o vértice do relativismo. Destes três vértices, é a área que eles formam que julgo ser o principal mal das nossas sociedades, a que se chama “indiferença”. Como alguém escreveu: Deus não teme os opositores, mas a indiferença. Porque a indiferença é aquela lógica de que “isso não tem nada a ver comigo”, “eu vivo no meu cantinho” … Mas, o meu medo é que não haja uma mudança, que estejamos ansiosos por voltar ao mesmo. Julgo ser importante repetir: não nos meçamos pelo ter, que tem, hoje, uma força brutal. Repare: hoje ninguém diz que está preocupado, diz que “tem um problema”. E, hodiernamente, já não é só o ter, mas é o ter de ter, que é o trocar. E com tudo isto, creio que se está a perder a sensibilidade para a poupança, seja ela uma poupança para uma necessidade futura, ou uma poupança com vista aos filhos ou aos netos. Hoje, chapa ganha, chapa gasta. Mas, haja esperança.  

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