Um cartaz que fala e dá que falar

Embora a promoção de qualquer acontecimento já não passe tanto, como em tempos passados, pela sua comunicação feita em cartaz, no entanto, esta forma de publicitar eventos de interesse colectivo ainda é usual. Normalmente, as festas, na maioria religiosas, são publicitadas, a par com outros meios, por cartazes que, em simbiose desigual, com prejuízo para […]

Notícias de Viana
15 Jun. 2023 7 mins
Um cartaz que fala e dá que falar

Embora a promoção de qualquer acontecimento já não passe tanto, como em tempos passados, pela sua comunicação feita em cartaz, no entanto, esta forma de publicitar eventos de interesse colectivo ainda é usual.

Normalmente, as festas, na maioria religiosas, são publicitadas, a par com outros meios, por cartazes que, em simbiose desigual, com prejuízo para a parte religiosa, dão a conhecer não só o patrono da festa como o elenco de actividades que a compõem.

Desde logo é notória a descaracterização mais ou menos generalizada das festas religiosas que, deste titulo, têm a missa e a procissão, tantas vezes em letra tão sumida a par com a espessura das letras que apresentam os restantes números da festa.

Estamos perante uma descaracterização do fenómeno religioso, já não só no que depende dos princípios doutrinais da fé cristã, mas também perante um fenómeno que, caracterizado por piedade popular, pertence ao património de um povo que merece o máximo de respeito.

Se em muitos contextos, a feitura de um cartaz para anunciar uma festa religiosa não se reveste de muita importância e acaba por ser uma manifestação marginal, em Viana do Castelo e Alto Minho, estamos perante algo de muito relevo.

Senão vejamos. Há um regulamento a que todos os concorrentes se deveriam obrigar a respeitar; há um conjunto de concorrentes que se apresentam com a sua proposta gráfica, com inovação, beleza e criatividade; há um júri que selecciona o vencedor; e há uma sessão publica, para a qual são convidados, entre outros, os representantes da sociedade civil, militares e académicos.

Em Viana do Castelo, festas de Nossa Senhora Agonia, que remontam ao final do séc. XVII ou inícios do séc. XVIII, certamente que ninguém colocará em causa que estamos perante uma festa cujo tronco é religioso e cuja representação está na imagem de Nossa Senhora da Agonia e no seu respectivo santuário, Igreja de Nossa Senhora Agonia.

Esta festa teve no seu inicio a característica de ser a manifestação da devoção dos pescadores à Virgem Maria e que posteriormente se foi estendendo progressivamente a toda a Cidade, atraindo pessoas de todo o pais e mesmo do estrangeiro.

Acresce, neste caso, e muito bem, que tratando-se de uma festa de cariz de piedade popular, se  junte a figura da mordoma, que de há anos a esta parte figura como alguém muito importante no conjunto das festas de Nossa Senhora da Agonia.

Esta figura da mordoma reveste-se de profundo significado que vai para além da sua apresentação exterior e que vale a pena descobrir para se deixar inebriar pela beleza divina que estes sinais revelam.

Chegados aqui, entremos o assunto que me levam a escrever estas linhas. O cartaz que publicita as festas em honra de Nossa Senhora da Agonia deste ano de 2023 foi apresentado com toda a solenidade, no passado dia 6 de Junho.

Para a pessoa que não saiba do que se trata, enfrenta a imagem da mordoma que sobressai de um nevoeiro que não deixa vislumbrar nada para além dele e uma frase que diz «Romaria da Agonia». Claro que reconhecendo que há mais palavras que se erguem na vertical, e com um pouco de esforço, mesmo rodando a cabeça, consegue ler a frase «Nossa Senhora».

Na minha pessoa, interessa-me naturalmente defender a verdade dos acontecimentos, a identidade das realizações, o respeito pela tradição viva de que somos herdeiros e contribuir para que no presente e no futuro tenhamos uma convivência no respeito, na verdade, na beleza da dignidade do ser humano e das instituições e na verdadeira promoção da vida cultural e religiosa que circula na história e que nos alenta no presente para solidamente construirmos o futuro.

A modernidade e a postmodernidade, na complexa teia das suas manifestações e desconstruções, entre outras afectações, atacou ferozmente a identidade pessoal e social, a que não está imune a vida religiosa.

Este é um facto, mas o mais preocupante, e sabendo que nada poderá sobreviver sem preservar a sua identidade, certamente sempre renovada, parece querer arrastar-nos por esta onda sem qualquer reflexão e tomada de posição.

Neste sentido, a partir de um cartaz, aparentemente inofensivo, transparece uma questão profunda de caracterização cultural e de respeito pela identidade dos acontecimentos e das instituições, cujo nevoeiro ofusca o que deveria estar patente à vista de todos.

Lembro uma passagem da Enciclica do Papa Francisco, «Laudato Si», onde refere que «para uma relação adequada com o mundo criado, não é necessário diminuir a dimensão social do ser humano nem a sua dimensão transcendente, a sua abertura ao “Tu” divino» (n.119).  E continua, «com efeito, não se pode propor uma relação com o ambiente, prescindindo da relação com as outras pessoas e com Deus» (n.119). Aliás, «seria um individualismo romântico disfarçado de beleza ecológica e um confinamento asfixiante na imanência»(n.119).

         Embora esta expressão do Papa se situe na sua reflexão sobre a criação e as consequências que para ela poderá vir um exacerbado antropocentrismo que prescinde de Deus, serve também para ilustrar a nossa reflexão.

Neste mesmo texto, o Papa Francisco sublinha o papel do cristianismo ao dizer que «espera-se ainda o desenvolvimento duma nova síntese, que ultrapasse as falsas dialécticas dos últimos séculos» (n. 121). Na verdade, «o próprio cristianismo, mantendo-se fiel à sua identidade e ao tesouro de verdade que recebeu de Jesus Cristo, não cessa de se repensar e reformular em diálogo com as novas situações históricas, deixando desabrochar assim a sua eterna novidade» (n. 121).

O Papa fala de uma nova síntese, nós diremos, que é necessário encetar um novo diálogo capaz de restabelecer o bem comum assente na verdade, no respeito e na identidade própria de cada pessoa, instituição e de cada acontecimento.

De nada vale falsear o passado ou querer adulterá-lo porque sendo cultura de um Povo, ele ressurgirá como braseiro do meio das cinzas. Basta que o vento do bom senso actue para limpar a cinza que a cultura dominante dos últimos séculos projectou sobre a sociedade.

Voltando ainda ao mesmo texto do Papa Francisco, reconhecemos nas suas palavras, que «um antropocentrismo desordenado gera um estilo de vida desordenado» (n.122); e que «a cultura do relativismo é a mesma patologia que impele uma pessoa a aproveitar-se de outra e a tratá-la como mero objecto» (n. 123).

Deixemos transparecer o que de mais profundo nos caracteriza e que traz á cidade de Viana do Castelo milhares de pessoas, Nossa Senhora da Agonia e tenhamos «chieira» em evidenciar o lugar onde ela se encontra, o Santuário da Senhora da Agonia». Então também reconheceremos que Ela habitará nos nossos corações.          Certamente teremos oportunidade de voltar a este assunto e a continuar a nossa reflexão.

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