José Carvalhido da Ponte: “Ter sentimentos humanos para com uma pessoa que nos inferniza a vida, é muito complicado”

A Diocese de Viana do Castelo reativou a Comissão Justiça e Paz, que visa “promover e defender a Justiça e a Paz, à luz do Evangelho e da Doutrina Social da Igreja”. José Luís Carvalhido da Ponte, de 73 anos, é natural de Meadela (Viana do Castelo), e é o presidente do organismo, que conta ainda com Ana Palhares Lima, António Lira Fernandes, Maria de Fátima Bastos, Sónia Rodrigues e Mons. José Fernando Caldas, como Assistente Eclesiástico. “Espantado” com o convite de D. João Lavrador, o professor considera que o motivo é por, desde sempre, se dedicar a causas solidárias. Apesar de “alguma dificuldade” em encontrar as respostas às questões – o que o leva a pensar “profundamente” –, José Carvalhido da Ponte afirma não tolerar injustiças, sobretudo, a violência contra crianças e idosos.

Micaela Barbosa
13 Out. 2022 14 mins
“Ter sentimentos humanos para com uma pessoa que nos inferniza a vida, é muito complicado”

Notícias de Viana (NdV): O que o levou a aceitar o convite de D. João Lavrador para assumir a Comissão Diocesana Justiça e Paz? De que modo o seu percurso pessoal o foi colocando em contacto com estas temáticas?

José Carvalhido da Ponte (JCP): Como já afirmei duas ou três vezes, e penso que uma delas foi publicada no NdV, a nossa vida é a nossa viagem, em que há pórticos, como nas autoestradas, sendo que o principal é o da cidadania. Alguns assobiam para o lado, escondem a matrícula e passam-nos a grande velocidade para não pagar a portagem. Fazem-no como o levita da parábola “O Bom Samaritano”. Outros pagam, como o Samaritano, porque sentem que nesta casa comum, quando alguém sofre, todos sofremos. Por isso, Deus perguntou a Caim depois que este, por ciúme, matou o irmão: “Onde está, Abel?” De alguma forma, todos estamos conectados. Ninguém vive sozinho por mais que se autoexclua ou isole.

Faço voluntariado há mais de 50 anos e cooperação para o desenvolvimento, na Guiné-Bissau, há mais de 20. Neste tempo todo, fui membro da gestão ou mesmo diretor de uma grande escola durante mais de 20 anos. Por dinheiro? Nem pensar. Por dinheiro, naquele tempo, ninguém se comprometia com tal tarefa. Porquê? Porque pensava e penso que, se achamos que podemos ser úteis ao caminhar de outros, temos a obrigação de o fazer. Por outro lado, reconheço a injustiça feita aos que nasceram e vivem no passeio sem sol das ruas. E é por isso que ando pela Guiné-Bissau há muitos anos.

No homem, que se sente continuamente injustiçado, pode crescer o germe da revolta e, logo, o da violência. Portanto, achei que podia ser útil nesta Comissão.

(NdV): Como foi feita a escolha da sua equipa?

(JCP): Numa Comissão destas, pensei ser necessário alguém das áreas do Direito – para podermos opinar sobre determinadas situações, urge saber ler as leis que nos regem –, da Economia – porque temos de estar atentos às questões laborais, ao liberalismo desenfreado e ao desemprego –, da Sociologia – para perceber que padrão de relações socioculturais pode definir a nossa Diocese –, da Psicologia – para entender os nossos comportamentos –, da docência – um professor tem a familiaridade com o ambiente escolar, que é muito importante para a reflexão que queremos iniciar –, e do virtual – porque, hoje, a nossa viagem não se concebe já completamente à revelia do virtual. Assim, convidei uma mulher do Direito, a Dra. Ana Maria Branco Palhares Lopes Lima, uma mulher da Economia e da Sociologia, a Dra. Maria de Fátima Simões Viana Bastos, uma Psicóloga e Investigadora, a Dra. Sónia Pires de Lima Araújo Rodrigues, e um professor e homem da comunicação virtual, tão pertinente na praxis hodierna, o Eng. António José Ramos Lira Fernandes.

Já como Assistente Eclesiástico, pensei num amigo de longuíssima data, Mons. José Fernando Caldas Esteves.

(NdV): “Não há paz sem justiça e não há justiça sem dignidade humana”. Esta foi uma das frases que fez parte do seu discurso na cerimónia da tomada de posse. De que forma é que se interligam?

(JCP): Quando alguém nasce já com a mão estendida à caridade pública e não vê, nem lhe permitem ver, qualquer forma de autossustentabilidade, que dignidade lhe assiste? Margaret Thatcher, quando afirmou que a pobreza é “um defeito de personalidade” e que reside no indivíduo, e é o indivíduo quem tem de a superar sozinho, estava errada.

A pobreza aniquila o futuro, concordo com George Orwell, e quando vemos pobres tomarem decisões erradas, não o fazem por serem inaptos, “mas porque vivem em contextos em que qualquer um de nós tomaria decisões desacertadas” (cito, de cor, Rutger Bregman em “Utopia para Realistas”).

Por isso, lutar contra a pobreza, a ignorância, a violência e as dependências, não é um favor que fazemos aos deserdados da vida, aos sem-abrigo, aos dependentes, antes um dever que temos, um pórtico a pagar.

(NdV): Também adiantou que a Comissão já se reuniu para definir os seus propósitos. Quais são eles?

(JCP): Os objetivos do nosso trabalho, definidos pelo Sr. Bispo, e sobre os quais já refletimos, são:

  • Estudar e divulgar a Doutrina Social da Igreja;
  • Promover colóquios, jornadas ou seminários sobre a Doutrina Social da Igreja e a sua iluminação nos diversos contextos culturais e sociais;
  • Estudar os diversos problemas sociais e culturais e divulgar esse estudo junto da opinião pública;
  • Analisar, com critério evangélico, as correntes de pensamento que interferem na sociedade, e propor um diálogo sereno e objetivo em benefício da dignidade humana e do bem comum;
  • Oferecer aos diversos organismos que atuam no domínio da marginalidade, da pobreza e da exclusão, os princípios orientadores da Doutrina Social da Igreja.

(NdV): Em 2023, vão realizar as primeiras jornadas sob o mote “Quem é o meu próximo”. Quem considera que é o seu?

(JCP): Citei, no início, a narrativa que nos fala de como Caim matou o seu irmão e da forma como aquele respondeu a Deus que lhe perguntou por Abel: “Sou, porventura, guarda de meu irmão?”. Ora, em toda a narrativa posterior, percebemos que Caim era guarda de Abel e Abel guarda de Caim.

Quem é o meu próximo? Todo o mundo. É aquele que gosta de mim e o que não gosta. O que me magoa e me beija e o que me ostraciza. E Putin, também? Putin, também. “Mas é um assassino”, dir-me-ão uns quantos. Sim (recordem: “Zaqueu, desce do sicómoro que esta noite quero dormir em tua casa!”). O facto de fazer parte do meu próximo, não impede que eu defenda que deva ser presente a um tribunal internacional dos Direitos Humanos. Se o vir caído na berma de uma estrada, ferido e maltratado, devo cuidar dele e, logo que esteja curado, é minha obrigação levá-lo à justiça.

Ter sentimentos humanos para com uma pessoa que nos inferniza a vida é muito complicado, porque não estamos habituados. E é aqui que se dá o perdão.

(NdV): Em Viana do Castelo e, em particular, na Igreja diocesana, que trabalho há para se fazer no âmbito da justiça e da paz?

(JCP): Esse é o estudo que vamos fazer. Provavelmente, será semelhante ao que acontece no resto do país. Vamos ouvir, quer a Comissão Nacional, quer uma ou outra Comissão Diocesana Justiça e Paz, no sentido de percebermos como trabalharam e trabalham. O caminho que tiverem já feito poderá ajudar-nos. Mas dou-lhe, de imediato, uma rápida achega: há jovens a abandonar a sua inscrição no ensino superior porque entre propinas, alojamento e livros, têm de desembolsar uma pequena fortuna todos os meses. Há justiça nisto? Claro que não. Esta situação provoca mal-estar e até alguma raiva, ainda que comedida? Em mim, provocaria. Logo, pelo menos, durante uns tempos, não viveria em paz. O que se passará na Diocese de Viana?

(NdV): O que mais o comove no mundo de hoje?

(JCP): Acima de tudo, revolta-me e comove-me a violência, o abandono e a aparente falta de futuro:

  • A violência física e verbal sobre os mais indefesos: crianças e velhos;
  • A solidão/o abandono pelas próprias famílias, muitas vezes, dos mais velhos;
  • O desemprego, em especial, de jovens casais que, de repente, ficam sem saber como garantir o futuro dos seus filhos;
  • O abandono a que estão votados os sem-abrigo;
  • A fome e a ausência de futuro de muitos povos em África.

(NdV): Que leitura faz dos problemas económicos, sociais e culturais de hoje? De que modo isso torna a Comissão mais urgente?

(JCP): Os dados estatísticos estão aí… Cada vez há mais pobres. Cada vez há mais gente, da chamada classe média à porta dos refeitórios sociais.

Em 1967, na Carta Encíclica “Populorum Progressio”, Paulo VI denunciou aquilo a que Pio XI, na Encíclica “Quadragesimo anno”, de 1931, havia apelidado de “imperialismo internacional do dinheiro”. Na verdade, diz Paulo VI, e cito o nº 26, a sociedade construiu “um sistema que considerava o lucro como motor essencial do progresso económico, a concorrência como lei suprema da economia, a propriedade privada dos bens de produção como direito absoluto, sem limite nem obrigações sociais correspondentes”. As Encíclicas papais não diabolizam o lucro, de todo, apenas o condenam quando este se torna no bem supremo.

Há milhares de anos, ou milhões, não interessa, tudo era de todos: os mares e os rios eram de todos, a terra era de todos, a flora e a fauna eram de todos. Não havia cercas. Depois, com medo dos animais mais bravios, começaram a cercar algumas comunidades. Mais tarde, os espaços cercados tornaram-se pequenos e foi necessário alargá-los e uns começaram a colidir com outros e os mais fortes foram vencendo as contendas e os mais fracos foram ficando fora dos muros. E, aos mais fortes, couberam mais privilégios: as melhores terras, as melhores reses, o melhor de tudo.

Hoje, como há milhares de anos, esta lógica permanece. As guerras, a fome e a violência empurraram milhares de homens e mulheres e crianças, de África para o Mediterrâneo e para a Europa. Veio a pandemia, e milhares de homens e mulheres ficaram no desemprego; veio a invasão da Ucrânia por parte da Rússia, e a morte e a destruição e a fome vieram também. São sempre os mais fracos a quem cabe a fatura.

Por outro lado, as grandes empresas têm lucros de milhões e, na sua maioria, não partilham. Santo Ambrósio duvidava da nossa generosidade para com o pobre, uma vez que nada lhe damos que não lhe pertença, já que nesta casa comum tudo foi criado para todos. Temos empresários atentos a isto; veja-se o caso do sr. Rui Nabeiro, por exemplo. Mas são as exceções, não a regra.

Sabe o que cada vez mais me parece que seria justo? Já que ninguém foi ouvido para nascer, todos deveriam, à nascença, ter direito a um rendimento básico que lhes garantisse, pelo menos, a sua sobrevivência. Depois, não haveria nem subsídio de desemprego, nem de inserção, nem de qualquer outra coisa. Quem quisesse mais, teria de trabalhar e esforçar-se e, quem não quisesse, viveria, tão só, com esse mínimo. Isto foi experimentado, em alguns países, como Canadá e Estados Unidos, e só não avançou porque as avaliações dos vários processos foram manipuladas, sabemo-lo hoje, no sentido de dizerem que a ideia não era boa.

Em paralelo, e apenas a título de exemplo, estejamos atentos aos programas de entretenimento de alguns canais televisivos, que procuram adormecer-nos e até à programação em que pontifica, por exemplo, o futebol – e eu gosto de futebol –, mas tanto, torna-se tóxico. E na educação? A UNESCO definiu, em 1999, e por proposta de Jacques Delors, quatro pilares para a Educação para o séc. XXI: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a socializar e aprender a ser. Qual destes parâmetros define a entrada de um jovem em Medicina, por exemplo? O cognitivo / o aprender a conhecer. Entra quem tiver melhor média final. O sociológico, o pragmático e o ontológico não pesam para a seleção.

(NdV): A sensibilidade cristã a estes temas corre o risco de ser apenas exterior. De que modo se pode educar rumo a uma sensibilidade interior?

(JCP): Tudo passa pela educação. Penso ter sido Churchil, mas não tenho a certeza, a fazer a afirmação, desnecessária pela sua evidência, de que “uma boa política de um país rumo ao sucesso, a médio e longo prazo, deve assentar na educação”. E nós sabemos ser assim: urge mudar mentalidades; demora é gerações.

Assim sendo, e porque não se ama o que se não conhece, questiono: os sacerdotes, os catequistas e os cristãos com responsabilidade paroquial ou diocesana conhecem os documentos da Doutrina Social da Igreja? E se sim, acreditam nela? E se acreditam, como a didatizam? Como a levam aos jovens, na catequese? E às famílias? Mas, repito, não é suficiente conhecer. É necessário crer que esse é o melhor caminho. Então, há que, logo desde a primeira classe catequética, trabalhar os conceitos de voluntariado, solidariedade, cooperação para o desenvolvimento, diálogo, diversidade, equidade, inclusão e etc. Trabalhar/praticar estes conceitos com as crianças e com os pais, para que em casa, pelo menos, não façam contravapor. Mas, trabalhar e praticar. Quando se aplica o velho aforismo “Bem prega Frei Tomás”, os jovens passam ao lado das possíveis aprendizagens. Divulgar e praticar estes conceitos, continuamente, para que se tornem parte das nossas rotinas.

(NdV): Que impacto a Comissão Diocesana Justiça e Paz terá na vida das pessoas? E numa visão mais ampla, a Igreja Universal?

(JCP): Não nos compete atuar diretamente na sociedade. O sr. D. João traçou-nos o caminho: estudar os documentos da Doutrina Social da Igreja e levar esse estudo a toda a comunidade; estudar os problemas sociais e culturais da Diocese e divulgá-los; estudar as correntes de pensamento à luz dos critérios evangélicos; promover uma serena reflexão. Se conseguirmos levar isto a bom porto, aumentará, pelo menos, o conhecimento que as pessoas têm desta problemática.

E que impacte mais profundo será mensurável? Qualquer mudança que se pretenda em sociedade, deve começar por acontecer, primeiramente, em cada um de nós. NÓS-Comissão e NÓS-cristãos-todos. Medir isso será quase impossível, pelo menos, na nossa geração. Estamos numa corrida de fundo, pois este é um trabalho para o futuro.

(NdV): Quais os maiores desafios que a Comissão terá?

(JCP): Para fazermos um trabalho diferente, não apenas teórico ou generalista, será importante começarmos a conhecer a nossa Diocese:

  • Não estamos vocacionados para, apenas, organizar reflexões gerais e puramente teóricas. Não! Queremos trabalhar a nossa Diocese. O que se passa em Melgaço, em Arcos de Valdevez, em Paredes de Coura e em Viana do Castelo?;
  • Qual o objeto e a praxis das outras Comissões da Diocese de Viana do Castelo?;
  • O que pensam, deste tema, outras instituições laicas?;
  • Que mecanismos vamos utilizar para, mais fácil e assertivamente, colocar as nossas reflexões na praça pública?.

Esta última é fundamental, porque queremos chegar ao máximo de pessoas nos vários meios comunicacionais. Vamos divulgar. É preciso que as pessoas escutem, analisem e divulguem.

(NdV): De que forma pode toda a comunidade contribuir para a missão da Comissão?

(JCP): Vamos pedir à comunidade cristã que nos ajude a entender a realidade de cada Arciprestado/concelho. Os Srs. Arciprestes serão muito importantes para nos ajudar a constituir um Conselho de Reflexão, uma espécie de Conselho Consultivo, e para nos dar conta de situações de pública ou privada injustiça, não porque seja nossa competência advogar uma qualquer causa, em especial, mas porque queremos refletir as praxis e colaborar com os agentes da pastoral paroquial ou diocesana, na sua análise.

A “Justiça” e a “Paz” são um trabalho coletivo e, só coletivamente, o poderemos encarar.

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