Sem laranjas, mas cheio de memórias

Hoje, após a partida da minha avó já há mais de 4 anos, posso dizer que não me é sequer complicado recordar-me dela. Não me é, de todo, difícil lembrar o seu sorriso e as suas sábias e meigas palavras. Dizem que ter esta memória tão presente de quem nos deixa fisicamente, advém de termos tido a oportunidade de nos cruzarmos e partilharmos o dia-a-dia com pessoas genuinamente bonitas. Garanto que, depois de lerem este texto e conhecerem a história e lema de vida da minha avó, poderão confirmar isso mesmo.

A minha avó nasceu e cresceu num tempo em que ser mulher era não ser. Era ainda mais difícil do que é hoje. Ser mulher trazia obrigações, mas raramente direitos ou, sequer, sonhos. O regime autoritário e castrador em vigor nessa época privava as mulheres de almejar algo mais do que as obrigações domésticas. Devido a todas essas memórias tão limitadoras, a minha querida avó teve como lema de vida possibilitar aos outros tudo aquilo que ela não pôde pensar ou fazer. Durante a sua vida viveu para servir, sempre na busca incessante do bem-estar do próximo, e, infelizmente, muitas vezes negligenciando o seu bem-estar, necessidades ou anseios.

Casou com o meu avô ainda muito nova e criou dois filhos, o meu pai e a minha tia e madrinha. Chegou a trabalhar, mas foi a maior parte do tempo uma “dona de casa”. Sinto verdadeiramente que a minha avó “encaixava” em cada minúcia deste termo. Era nela que todos procuravam respostas para todos os momentos de cada uma das suas vidas. Cada um desses caminhos era traçado sempre com a presença da minha avó, e em cada vitória pessoal de qualquer membro da nossa família, ela lá estava presente (como sempre), viveu cada sucesso como seu. Sou o mais novo de 3 netos. Por outras palavras, sou o mais novo de toda uma família que se reunia na casa da minha avó (naquele ponto de encontro – o colo de toda uma família), e onde todos nós, a partir da sua presença, nos sentíamos mais seguros e livres. Há pouco tempo, Bruno Nogueira escreveu um artigo para a revista “Sábado”, contando que, após a sua família ter vendido a casa que outrora pertencera à sua avó, decidiu trazer de lá as duas laranjeiras que sempre tinham estado no quintal, e que, no seu entender, eram a maneira mais genuína que encontrara de se recordar da mesma. Tentando, através deste exemplo, analisar algo que me pudesse colocar mais próximo da minha avó e da sua maneira de ser, percebi de imediato que não necessito de trazer ou procurar qualquer matéria física ou palpável. Aquilo que me é necessário é viver com o sentido de servir o outro, ouvi-lo e entendê-lo e procurar guiá-lo sem que eu tenho de receber algo ou ser “louvado” por isso. Não será fácil fazê-lo como a minha avó, mas se cada um de nós tentar, mesmo dentro de cada uma das nossas imperfeições, ser mais como ela a cada dia e em cada interação com o outro, o mundo será um lugar tão mais acolhedor e humano. Para me colocar mais próximo da minha avó, basta-me usar a minha própria presença com empatia, seja para ouvir mulheres, seja para as empoderar. No geral, a minha avó ensinou-me que, qualquer que seja a injustiça, não devo responder com silêncio mas sim com voz, a voz que ela não teve por muitos anos.

Longos eram os meses de verão que passava lado a lado com a minha avó. Fazíamos de tudo, e a energia que tínhamos parecia não acabar. E em todos os passeios que demos, em todos os bolos que fizemos, em cada detalhe que vivemos e partilhámos, eu fui sempre feliz. Não me arrisco a pedir mais nada do que vivi com ela. Tudo foi tanto. Resta-me continuar a viver a sua beleza todos os dias, em mim e nos outros.

Com amor,

Para ti, querida avó.