Por uma vida não descartável

Compete-nos, como comunidade dos discípulos de Jesus, testemunhar e provar aos homens e mulheres deste tempo, crentes ou não, que a vida é dom não descartável, precioso, que vale a pena abraçar até ao fim com amor, não obstante as lágrimas e as feridas, os fracassos e os medos impostos pela incerteza quanto ao futuro.

Notícias de Viana
17 Dez. 2021 6 mins
Por uma vida não descartável

1. No final do mês de Novembro, o senhor Presidente da República vetou pela segunda vez a Lei da Eutanásia no nosso país. Independentemente das razões apontadas pelo próprio para a referida rejeição da proposta de lei, é de salientar, embora o chefe de Estado o não afirme expressamente, o sentido ético que lhe está subjacente. 

Algumas vozes denunciadoras do ‘cinismo’ da tomada de posição com base em ‘convicções pessoais’ por parte do Presidente, não demoraram a fazer-se notar.  Impõe-se, por isso, a seguinte pergunta: não foram apresentadas propostas de lei sobre a despenalização da eutanásia e do suicídio assistido, entretanto votadas e aprovadas no parlamento, essas sim baseadas nas convicções pessoais e ou partidárias dos seus proponentes? 

Na verdade, o chefe de Estado solicitou «à Assembleia da República que clarifique se é ou não exigível ‘doença fatal’ como requisito de recurso a morte medicamente assistida e se, não o sendo, a exigência de ‘doença grave’ e de ‘doença incurável’ é alternativa ou cumulativa. E, ainda, pondere, no caso de não exigência de ‘doença fatal’, se existem razões substanciais decisivas, relativamente à sociedade portuguesa, para alterar a posição assumida em fevereiro de 2021, no Decreto n.º 109/XIV». 

Na mensagem enviada ao Presidente da Assembleia da República, sublinha: «Como deixei claro em dois compromissos eleitorais, entre 2016 e 2021, não pesa na decisão que tomo qualquer posição religiosa, ética, moral, filosófica ou política pessoal – que, essa, seria mais crítica – mas, apenas – como aconteceu noutros ensejos similares – o juízo que formulo acerca do que corresponde ao que considero ser o sentimento valorativo dominante na sociedade portuguesa.»

2. Sem pretender dar exclusividade ao veto presidencial e menos ainda aos seus opositores, a propósito do tema eutanásia e demais atentados à dignidade da vida, no actual contexto considera-se merecedor de destaque e reflexão o número 27 da Constituição Pastoral Gaudium et Spes.

Refere o documento: «Vindo a conclusões práticas e mais urgentes, o Concílio recomenda a reverência para com o homem, de maneira que cada um deve considerar o próximo, sem excepção, como um «outro eu», tendo em conta, antes de mais, a sua vida e os meios necessários para a levar dignamente. […] São infames as seguintes coisas: tudo quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho; [… ]Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador.»

O texto conciliar remete-nos para aquele tesouro antigo e novo da antropologia fundada nos alicerces da Revelação de Deus ao seu Povo. Destarte, não é pensável um ser humano cuja dignidade não seja transparência do próprio Criador e Senhor de todas as coisas e, por essa mesma razão, digno de respeito, cuidado e reverência. 

A doutrina do Concílio Vaticano II, de acordo com os princípios da Revelação e na senda da Tradição da Igreja consciente e implicada na cultura contemporânea, é-nos um importante alerta para os perigos da instrumentalização da pessoa, e recorda com clareza a necessidade de permanecermos firmes no anúncio do Evangelho da Vida, ainda que este seja politicamente desconfortável.

3. Em grande medida, leis como as da eutanásia, atendendo aos sinais que estão à vista, sintomatizam doença sistémica num corpo civilizacional atingido pelas metástases neoplásicas do indiferentismo reinante face à pessoa humana. O desejo desenfreado de ‘viver a vida’ sem grandes questionamentos, desligada de compromissos e se possível antecipando de forma autocrática o próprio fim, apenas colocam a descoberto a gravidade e a dimensão do problema.

É comum dizer-se existirem inúmeras razões para se ser favorável à despenalização da eutanásia. A este respeito, talvez seja oportuno deixar-se surpreender pela seguinte interpelação: não haverá muitas mais razões para discordar de uma prática totalmente situada nos antípodas do que se espera ser uma cultura defensora da vida, humanista, coroada pela ética personalista e, portanto, promotora do cuidado por quem sofre ou se aproxima do seu fim natural em razão de doença grave, crónica, progressiva e ou incurável? 

4. A Carta Samaritanus Bonus, da Congregação para a Doutrina da Fé, no número 10, afirma: «O momento da morte é um passo decisivo do homem no seu encontro com Deus Salvador. A Igreja é chamada a acompanhar espiritualmente os fiéis nesta situação, oferecendo-lhes os “recursos sanantes” da oração e dos sacramentos. Ajudar o cristão a viver tal momento num contexto de acompanhamento espiritual é um acto supremo de caridade. Dado que ‘nenhuma pessoa de fé deveria morrer na solidão e no abandono’, é necessário criar em torno do doente uma sólida plataforma de relações humanas e humanizantes que o acompanhem e o abram à esperança.

A parábola do Bom Samaritano indica qual deve ser a relação com o próximo sofredor, quais as atitudes a evitar – indiferença, apatia, julgamentos, medo de sujar as mãos, fechamento nos próprios assuntos – e quais assumir – atenção, escuta, compreensão, compaixão, discrição.»

Compete-nos, como comunidade dos discípulos de Jesus, testemunhar e provar aos homens e mulheres deste tempo, crentes ou não, que a vida é dom não descartável, precioso, que vale a pena abraçar até ao fim com amor, não obstante as lágrimas e as feridas, os fracassos e os medos impostos pela incerteza quanto ao futuro.

Apesar dos dias conturbados, revela-se fulcral dispor-se novamente à ousadia de contemplar o rosto de Deus naquele Menino de Belém e, nesse encontro de olhares e corações, compreender, aceitar e acreditar que só n’Ele e d’Ele é possível apreender algo de significativamente transformador para o inegável e incontornável hoje que nos é dado viver.

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