Médicos “coagidos” lutam por melhoria do SNS, contra “desplante” do ministro

É quinta-feira. Dia 14 de Setembro. Enquanto Manuel Pizarro se prepara para apresentar, no Conselho de Ministros, a reforma do Serviço Nacional de Saúde (SNS), mais de meia centena de médicos do Alto Minho juntam-se para esclarecer dúvidas e apresentar reivindicações contra as medidas que serão anunciadas, publicamente, dentro de momentos.

Notícias de Viana
25 Set. 2023 7 mins
Médicos “coagidos” lutam por melhoria do SNS, contra “desplante” do ministro

“A caravana da FNAM” (Federação Nacional dos Médicos) é o nome da iniciativa que decorre no auditório da Escola Superior de Saúde. “Uma visita aos locais de trabalho para ouvir os profissionais”, diz, ao Notícias de Viana, Joana Bordalo e Sá, presidente do organismo, classificando a proposta do Governo como “inaceitável” e “unilateral”, poucas horas depois de o Ministro da Saúde ter falado “num ponto de equilíbrio negocial”.

“Os hospitais não são a Autoeuropa”, refere um dos presentes no encontro sindical. A preocupação é comum a todos. Como parar e mostrar o descontentamento face às medidas tomadas, sem deixar de salvaguardar os cuidados necessários à população? Como evitar uma prática clínica putativamente negligente, não deixando de mostrar o quão prejudicial pode ser a reforma que será implementada?

Conforme explica Tiago Baptista, médico de família na USF (Unidade de Saúde Familiar) Tiago de Almeida, em Viana do Castelo, o que se pretende é a “dignificação do trabalho no SNS que permita a sustentabilidade do próprio SNS”. “Esta é muito mais do que uma questão salarial”, refere, do mesmo modo que Joana Bordalo e Sá salienta, precisamente, que “das 8 propostas da FNAM, só uma delas é que se refere às grelhas salariais”. Apesar de, como a mesma refere, “o anunciado aumento do salário implicar, na prática, perda de direitos, como o aumento das horas de trabalho, num total de mais 7 semanas de trabalho anuais, alterações ao regime do descanso compensatório, terminando com o prejuízo de horário do descanso após o trabalho noturno, assim como o aumento da jornada de trabalho diária de 7 para 9 horas”. 

No conjunto da proposta apresentada pelo Ministério da Saúde, e entretanto aprovada em Conselho de Ministros, outra das medidas mais polémicas prende-se com a generalização das USF de modelo B. Segundo a FNAM, esta medida traz a inclusão de indicadores de desempenho que não dependem diretamente da atividade médica, como a entrada de doentes em Serviço de Urgência, assim como a associação entre a remuneração e a produtividade, onde se inclui a prescrição de fármacos e de meios auxiliares de diagnóstico, o que fomenta, nas palavras do sindicato, “uma prática clínica que aumenta o conflito entre médico e utente”.

Tiago Baptista, que reconhece que “se a minha esposa fosse médica não conseguia ter filhos”, assegura, de novo, que “os médicos não estão só interessados numa revisão salarial, eles querem melhorar as condições de trabalho e poder conciliar o seu trabalho com a vida familiar e pessoal”. Segundo ele, o SNS entrou num círculo vicioso que começa com a constante degradação das condições de trabalho, escala através da perda de poder de compra dos recursos humanos, que optam, consequentemente, pela fuga ao SNS, colocando-o em risco de sobrevivência. 

Quer Tiago, quer Joana, não hesitam em falar do tom demagógico do Ministério, uma “tentativa óbvia de circulação de desinformação” nas palavras do primeiro, e uma clara “falta de vontade política e má-fé”, na expressão da segunda, que acrescenta: “é muito fácil ter um discurso demagógico e depois não valorizar os médicos”.

Voltemo-nos para os factos. Na última década, a despesa alocada ao SNS aumentou, conforme afirma Manuel Pizarro, mas só em valores absolutos. Em percentagem do PIB, diminuiu de 9,9%, em 2009, para 9%, em 2018. Tendo, em 2022 e 2023, o período pós-pandemia, diminuído a percentagem do PIB dedicada ao SNS, em 0,2% e 0,25%, respetivamente. Em junho deste ano, por exemplo, apenas estavam já executados 13,5% do valor orçamentado, sendo que, no final do ano de 2022, só 45% do valor orçamentado que foram realmente postos em prática.

Estatisticamente, a despesa destinada ao SNS tem servido não para reformas estruturais, mas para pagar serviços privados ou soluções temporárias e precárias de emprego, como as convenções com os privados, a contratação de médicos tarefeiros e o pagamento de horas extraordinárias. 

A verdade é que, entre 2011 e 2023, tem existido uma redução do poder de compra da classe médica que corresponde a 23%, estando ela obrigada, no atual regime, a 40 horas de trabalho semanais, ao contrário da restante administração pública, cuja Lei nº 18/2016 restabeleceu 35 horas como período normal de trabalho. 

Na reunião sindical era já claro que, conforme afirmou um dos presentes, a ULSAM (Unidade Local de Saúde do Alto Minho) decidira não “fechar a urgência de maneira nenhuma, alocando o horário normal ao serviço de urgência”. Em causa estava a intenção de faltar às horas extraordinárias para lá das contratadas, com a intenção de dar força à luta sindical e mostrar que “os médicos aplicam aquilo que os sindicatos reivindicam”, conforme afirma Helena Terleira, médica de Medicina Interna na ULSAM, que esclarece, à partida, nada ter contra o “Hospital ou o Conselho de Administração”. 

Segundo explica, “a início de agosto foi apresentada uma escala de urgência em que, preenchidos os turnos normais, quem tinha já cumprido as 150 horas extra, podia afirmar a sua indisponibilidade de realizar mais trabalho suplementar. É perante horários em branco, que impossibilitavam a cobertura de todo o serviço, que o Conselho de Administração solicita uma escala na qual se cobrem esses mesmos turnos, escala essa que foi apresentada na sexta-feira de tarde, a poucas horas da ação de luta, em que constavam médicos que tinham já cumprido as 150 horas extra e que tinham assinado o documento no qual afirmavam não pretender realizar mais horas extraordinárias”. 

Helena Terleira conta que, se houve médicos que fizeram cumprir o seu propósito, “outros foram de tal modo coagidos” que se apresentaram ao trabalho. A profissional de saúde fala em medo de processos, apesar de contarem com todo o apoio dos advogados dos sindicatos. “Somos seres humanos, e temos sempre receio de não cumprir uma ordem que vem diretamente do Conselho de Administração, mesmo sendo ilegal”, declara.

Face à situação do fim-de-semana, Helena Terleira afirma que houve um antecipar do escalonamento, o que permite assegurar um funcionamento regular da ULSAM, nos próximos Sábado e Domingo. Adiantando que, a partir de outubro, há já cerca de uma quase dezena de hospitais, em que 80% dos médicos entregaram as minutas de indisponibilidade de realizar mais horas extra além das contratadas.

Em comunicado, a FNAM acusa a Administração do hospital de Viana do Castelo de pressionar e chantagear os médicos para trabalharem mais que as 150 horas suplementares.

“Faremos denúncia às entidades competentes, e não nos deixaremos atemorizar quando sabemos ter a razão e a lei do nosso lado”, acrescenta o comunicado, em que pode ler-se que se “registaram tentativas de intimidação e desrespeito de direitos laborais dos médicos de Medicina Interna da ULSAM, que foram coagidos, e alguns deles obrigados, a trabalhar à margem do previsto na lei, tendo sido escalados, apesar de terem já ultrapassado o limite legal das 150 horas suplementares”.

“O Ministro tem que negociar a sério, tem que ouvir os colegas, tem que negociar com os sindicatos”, conclui. Afinal, como escreveu Hipócrates, o filósofo grego que dá nome ao juramento que todos os médicos fazem no início da sua carreira, “onde quer que a arte da Medicina seja amada, há também o amor pela Humanidade”.

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