José Carvalhido da Ponte: “A fé dá-me a certeza de que tudo vale a pena”

José Luís Carvalhido da Ponte tem 70 anos e é natural da freguesia da Meadela, em Viana do Castelo. Descreve-se como um “homem de fé” e tem dedicado toda a sua vida a causas solidárias. Desde há 13 anos, faz parte do Rotary Club de Viana e, atualmente, ocupa o cargo de Governador do Distrito Rotário 1970, constituído por 89 clubes com 2.000 associados, distribuídos entre a Marinha Grande e Bragança e Monção.

Micaela Barbosa
12 Mar. 2020 10 mins
José Carvalhido da Ponte: “A fé dá-me a certeza de que tudo vale a pena”

De que forma é que o voluntariado contribui também para a sua felicidade?

Há uns dias revisitei o poema de Sophia de Mello Breyner “Vemos, ouvimos, lemos / não podemos ignorar”, cantado pelo Francisco Fanhais e relembrei o filósofo Sócrates: “Somos cidadãos do universo” e, como tal, devemos ver, ouvir, ler e não ignorar. Não podemos ignorar a fome, a miséria, as catástrofes, as modernas bombas de Hiroxima, as injustiças; mas também não podemos passar a lado dos alunos e profissionais de excelência porque devemos falar deles para que os mais novos aprendam com o seu exemplo. Ou somos cidadãos interventivos e proativos, ou limitamo-nos apenas a consumir o que os outros fazem, de uma forma quase, às vezes, parasita. 

A sociedade não avança apenas com regras e serviço pago porque só com isso não construímos a diferença. Os Sanchos Panças são necessários, mas os D. Quixotes também. Sou cliente do IPO do Porto há mais de 20 anos e sempre fui ótima e humanamente tratado pelos técnicos, médicos e enfermeiros, mas há ali uma cereja no topo do bolo, os voluntários. Eles vêm ter comigo e perguntam-me se quero água, chá ou uma bolacha ou se preciso de ajuda para encontrar o serviço pretendido. Não esperam que eu pergunte. Oferecem. Estão sempre ali para que não nos sintamos perdidos, nem sozinhos. São eles que aumentam a dimensão humana e o abraço naquilo que é, às vezes, a fria gramática do quotidiano. Quando sou professor, durante as horas de trabalho, sou “obrigado” a cumprir um programa e sou pago para isso. Posso ser mal pago, mas sou pago, mas não chega. A vida não é um filme a preto e branco. Há os cinzentos, por isso é necessário saltar para fora das aulas e criar outras atividades e eventos que vão dar cor e sabor àquilo que são as aprendizagens do nosso dia-a-dia. Costumo dizer, em tom de brincadeira, que o que faz evoluir os automóveis não é a nossa condução diária de acordo com as regras do trânsito, mas são os ralis. É a metáfora. O que está fora da margem e da caixa… o que está para “além de”, e isso é o voluntariado. É o sonho e a cooperação. É D. Quixote.

A mortalidade materna, na Guiné-Bissau, decorrente dos partos, é de uma grávida em dezanove e a mortalidade infantil é de 150 nascituros em mil, no primeiro ano de vida. Um dia consegui muito dinheiro para construir uma maternidade na Guiné, em conjunto com a Associação de Cooperação com a Guiné-Bissau (Viana), o Rotary Club de Viana do Castelo, o Laboratório “Manuel Pimenta, Análises Clínicas” e o apoio da Rotary Foundation. A maternidade foi inaugurada em dezembro de 2011 e, até abril de 2019, o relatório mostrou que não morreram nem mulheres, nem crianças no primeiro ano de vida, naquela localidade. É isto que faz feliz um voluntário. É isso que enforma um cooperante.  É isso que justifica a existência de D. Quixote. É a cereja no bolo.

O que é o Rotary Internacional e a sua missão, em particular, em Viana do Castelo?

Foi constituído em 1905, em Chicago, por Paul Harris, advogado, e mais três amigos no intuito de transformar relacionamentos profissionais em amizade. Trata-se de uma rede mundial de profissionais que dedicam os seus distintos talentos a causas sociais para transformar sociedades, interagindo e interajudando-se. 

Os 35. 981 clubes rotários constituem o Rotary internacional que se organiza em 528 distritos rotários, distribuídos por 217 países, contando com mais de 1.227.585 associados. 

Em Portugal, existem dois distritos rotários com cerca de 160 clubes e perto de 3.500 associados. Já o Rotary Club de Viana do Castelo tem mais de 30 rotários e ainda três clubes das nossas Novas Gerações: o Rotary KIDS Club (jovens entre os 7 e os 11 anos), o INTERACT Club de Viana (jovens entre os 12 e os 19 anos) e o ROTARACT Club de Viana (jovens entre os 19 e os 30 anos).

O nosso lema/ filosofia é “Dar de si antes de pensar em si” e ensina-nos a estarmos atentos à comunidade pois para a transformarmos teremos de partir sempre do pressuposto que não podemos avaliar o que o outro precisa por aquilo que nós achamos que necessitaríamos se estivéssemos no seu lugar, mas sim pelo que ele realmente pretende. Este ponto de partida exige-nos a conexão, o encontro, o irmos até ele, o escutá-lo e o lê-lo. Só assim nos tornaremos úteis. Por outro lado, somos desafiados a construir projetos transformadores de comunidades. Isto é, dar um cabaz a uma família sem comida, é necessário para que não morra desnutrida, mas acabado o cabaz a fome regressa. O nosso desafio é trabalhar para que o outro apreenda os mecanismos da sua própria sobrevivência. 

A nossa ética para o caminho é baseada na regra das três peneiras do filósofo grego Sócrates (a prova quádrupla). Na verdade, todo o cidadão em geral, mas pelo menos os AMIGOS / os AMANTES devem ter como postura recorrente estes quatro desafios:  

  • é mesmo verdade o que vou afirmar na reunião do clube/da empresa/da associação? Na mesa do café, perante os meus amigos? Num post do Facebook? 
  • é justo para todos os interessados que diga o que vou dizer? O que era justo para os ingleses no tempo de Gandhi, não era justo para os indianos”.
  • Criará boa vontade e melhores amizades ou apenas servirá para lançar mais lenha na labareda? Tudo o que gera divisão não cria Boas Vontades e melhores Amizades.
  • Será benéfico para todos os interessados ou apenas para alguns? O que pensamos, dizemos ou fazemos só faz sentido quando beneficia a humanidade por inteiro.

Como é que foi o seu percurso no Rotary até chegar a governador?

Entrei no Rotary Club de Viana há 13 anos. A minha entrada surgiu na sequência de um projeto que tinha para construir uma maternidade na Guiné. Organizei sessões de esclarecimento com o intuito de arranjar dinheiro para a obra e, um dia, um amigo falou-me do Rotary, que me ajudou a conseguir o montante. Ao mesmo tempo, percebi a filosofia rotária e, como diz um outro amigo, peguei de estaca.

Em 2011/2012, servi o movimento como presidente do Rotary Club de Viana do Castelo e, no ano rotário 2015/2016, sugeriram-me que me candidatasse a Governador o que veio a acontecer em dezembro de 2016. Enquanto governador, o meu papel é ser ponte entre o Rotary Internacional e todo o Distrito Rotário, com especial enfoque nos clubes. 

Cada ano temos um lema de trabalho e este ano é “Rotary conecta o mundo”. Aplicando este lema ao meu trabalho como Governador, para dar de mim tenho de me relacionar com os outros e é através das visitas aos clubes que o faço, procurando não apenas apreender o seu funcionamento como ainda ajudando-os a ultrapassarem os seus próprios desafios. Compete-me, em última instância, ser um elemento inspirador do seu percurso.

Que projetos já foram desenvolvidos pelo Rotary Club de Viana? Este ano, já há algum em mãos?

Desenvolvemos projetos dentro e fora de Viana do Castelo. Na cidade, já oferecemos bolsas de estudo (para jovens carenciados) e de mérito (para estudantes de excelência); recuperamos duas casas para famílias carenciadas (Alvarães e Areosa) e, há uns anos; oferecemos uma carrinha frigorífica para o Banco Alimentar; participamos na reflorestação de áreas ardidas; apoiamos, de várias formas, várias IPSS’s locais (Casa dos Rapazes, Lar de Santa Teresa, ACISJF, APPACDM, ÍRIS INCLUSIVA, etc).

Lá fora, desenvolvemos projetos relacionados com as operações às cataratas e luta contra a cegueira evitável em Cacheu; construção e apetrechamento de uma maternidade, dotação de água potável a toda a comunidade cacheuense, extraída por painéis fotovoltaicos; apetrechamento de 20 salas de aula com carteiras, cadeiras, armários, quadros, kits de matemática, geografia e português e; ainda a dotação de energia elétrica na maternidades e centro de saúde através de painéis fotovoltaicos.

Este ano, para além de outros projetos locais, assumimos a campanha de requalificar e aumentar o Jardim de Infância de Cacheu que alberga, atualmente, 30 crianças. Trata-se de um grande projeto da autoria do arquiteto Pedro Pinto, companheiro do R.C. dos Arcos, com   cálculos do gabinete S.A. Baganha, companheiro Serafim Baganha do R.C. de Viana. Este novo espaço albergará cerca de 100 crianças. 

De que forma é que a sua fé influência a sua vida enquanto voluntariado? 

Acho que mesmo que não tivesse fé faria muitas das coisas que faço. Contudo, a fé dá-me a certeza que tudo vale a pena. Isto é, não preciso de compensações cá porque as terei em algum sítio. Se mais não for, as compensações do dever cumprido, do ajudar os outros a caminhar.

É uma questão complicada de responder porque conheço amigos que levam uma vida muito simpática, certinha e organizada e são muito solidários. Eles não têm fé, mas são (talvez) tão voluntários como eu. Os valores da minha religião falam-me de fraternidade, tolerância, saber escutar e ver. Assim, os seus credos lhes ditam também comportamentos similares. Além disso, dizem-me que mesmo quando tudo está em derrocada deve haver sempre esperança, uma luz no fundo do túnel e uma ressurreição algures. Sou doente oncológico há 20 anos e não quero acreditar que tudo vai acabar quando fechar os olhos. O acreditar que vou ter uma vida para “além de” exige-me quase o carpe diem de Horácio, o fazer com que cada momento da minha vida seja único, vivido como se fosse o último. Ou seja, que o viva com toda a dignidade como ser humano, com toda a fraternidade pelos outros, tendo a capacidade de os ouvir e atender quer sejam “os outros” a minha família, os meus companheiros rotários ou os africanos. Por que, primeiro, são meus irmãos e, depois, se vou ter uma vida para além desta, vou procurar ser o melhor, o mais justo, o mais honesto e tolerante possível. Ninguém tem uma vida longa garantida, mas quando eu partir, espero que a minha almotolia tenha azeite.

Inquestionavelmente os valores do Evangelho são fantásticos e, por isso aderi muito bem ao Rotary, onde encontrei os mesmos valores do meu credo. O Rotary não é cristão católico, muçulmano nem judeu, mas, independentemente disso, os seus valores – companheirismo, amor, tolerância, ética, integridade, o serviço ao outro – são os valores das grandes religiões… são os valores universais. 

A fé dá continuidade metafísica à minha vida física, oferecendo-me esperança e isso aumenta a minha capacidade de ajudar os outros e relativiza os percalços da minha caminhada.

Tags Entrevista

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