Isabel Martins da Silva: “Acredito que aquilo a que chamamos ‘crise migratória’ é, na verdade, uma crise da resposta europeia e dos seus valores”

Uma semana depois do Dia Mundial do Refugiado, o Notícias de Viana entrevistou Isabel Martins da Silva, Coordenadora do projeto MEERU Aproxima e Gestora de Comunidade na Associação para o Desenvolvimento MEERU | Abrir Caminho, da qual é Co-Fundadora.

João Basto
1 Jul. 2021 12 mins
Isabel Martins da Silva: “Acredito que aquilo a que chamamos ‘crise migratória’ é, na verdade, uma crise da resposta europeia e dos seus valores”

Com 24 anos, a jovem nasceu e cresceu entre a Freguesia de Carapeços, em Barcelos, e a Cidade de Esposende. 

Descobriu o poder de viver ao serviço da comunidade, enquanto animadora do Grupo de Jovens da terra. É licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto, que a fez “descobrir que é possível escrever uma história do mundo mais humana, quando as leis são um serviço concreto a cada pessoa”.

A Pós-graduação em Direitos Humanos pela Universidade Católica Portuguesa – Porto fê-la descobrir que “não há histórias únicas, e que existem sempre diferentes formas de contribuirmos para a solução de tantos problemas complexos”.

Em 2016, tropeçou nas dores e nos sonhos de uma família síria refugiada em Portugal. Desde aí, integrou 2 missões humanitárias da Plataforma de Apoio aos Refugiados na Grécia, num trabalho de educação, empoderamento e inclusão de pessoas refugiadas.

Já em 2019, foi uma das fundadoras da ONGD (Organização Não-Governamental para o Desenvolvimento) MEERU | Abrir Caminho, na qual é Gestora de Comunidade e Coordenadora do Projeto MEERU Aproxima.

Determinada em transformar em realidade os sonhos do mundo à sua volta, Isabel vive “sempre desassossegada”, mas “firme na certeza de que é possível vivermos juntos, em igual dignidade”.

Notícias de Viana: Como descreve a experiência de voluntariado? Que episódio mais a marcou?

Isabel Martins da Silva: Estive em Lesbos, no campo de refugiados de Kara Tepe, no verão de 2017, e em Atenas, num abrigo do Serviço Jesuíta aos Refugiados, no verão de 2018. Não consigo isolar estas 2 missões como experiências de voluntariado pontuais. A missão tinha começado já antes, em casa, e continuou sempre depois. 

Na Grécia, tanto em Atenas, como em Lesbos, fui como voluntária da Plataforma de Apoio aos Refugiados. A minha missão foi tentar cuidar da espera destas pessoas que estão num limbo burocrático e político e que aguardam uma resposta que lhes permita avançar no caminho. Passávamos tempo com as pessoas, conversávamos, tomávamos chá, brincávamos com as crianças, facilitávamos algumas questões do dia-a-dia, tentávamos criar momentos de normalidade. Não fazíamos nada de extraordinário: estávamos com as pessoas de forma a que eles não se sentissem sós e pudessem, mesmo nos momentos mais angustiantes, encontrar algum calor humano.

Passaram quatro anos desde a primeira vez que estive na Grécia. Hoje, embora não vejamos as mesmas imagens desumanas nas notícias que víamos em meados de 2016, a situação dramática nas fronteiras da Europa permanece. Acredito que aquilo a que chamamos “crise migratória” é, na verdade, uma crise da resposta europeia e dos seus valores. E dou-vos alguns exemplos de como este problema é presente, real, a acontecer.  Desde o início deste ano, já 743 pessoas perderam a vida na travessia do Mar Mediterrâneo. Há uns meses, assistimos ao incêndio brutal do campo de refugiados de Moria e seguiu-se o realojamento de cerca de 7.000 pessoas num novo campo, em condições miseráveis. O Governo grego anunciou, nos últimos dias, a construção de muros e o reforço da vigilância de alguns dos campos de refugiados.

Há muito por fazer. Há quase tudo por fazer. 

NV: Que momento(s) a catapultou(aram) para o interior desta realidade? Que papel teve a fé, nesse(s) momento(s)?

IMS: Em setembro de 2016, tropecei nos sonhos e nos medos da Safaa, do Mahmood, da Rafif e do Omar. Conheci-os no momento em que chegaram a Portugal, num misto de grande desespero e alguma esperança, de quem quer recomeçar a construir as suas vidas num lugar completamente desconhecido.

Percebi a essência profundamente humana desta realidade no momento em que estas 4 pessoas entraram na minha vida. Deixou de ser um drama que passava nas televisões e um problema sério distante. Tornou-se palpável e real. E, acima de tudo, tornou-se difícil. Percebi que construir pontes seguras com esta família implicava ser capaz de permanecer nas dificuldades e para além delas.

Sobre a fé nesse momento? Pouco tempo antes da chegada da família da Safaa, tinha vivido a Jornada Mundial da Juventude em Cracóvia. Lembro-me de ter ficado muito desassossegada porque não sabia bem como se podia concretizar, na prática, aquele apelo de construção de pontes que o Papa Francisco nos deixava com tanta esperança. O que eram, afinal, essas periferias da existência de que ele falava? Quando, algumas semanas depois, sem contar, conheci a Safaa, o Mahmood, a Rafif e o Omar, encontrei uma resposta. Depois vieram muitas mais perguntas.

NV: O que é a MEERU? Como surge? Qual a sua missão? Que significa o nome?

IMS: A MEERU é um projeto de vida. É o resultado de muitas histórias, do encontro entre pessoas. 

A MEERU surgiu da vontade de um grupo de pessoas com experiência de voluntariado em diversos contextos internacionais e também em Portugal, de colocarmos o nosso olhar sobre todos aqueles que, desenraizados, procuram em Portugal um lugar onde pertencer. Encontrámo-nos no momento em que sentíamos a urgência de trabalhar na nossa realidade, aqui e agora. Queríamos ser o testemunho de um muito de muitos mundos, em casa. Juntámo-nos, discutimos e trabalhámos sem parar, com a certeza da necessidade de responder às urgências do mundo. Com entrega, disponibilidade, serviço e sentido de urgência, criámos a MEERU. 

Desde a nossa fundação em 2019, já escrevemos e reescrevemos muitas vezes a nossa missão. Ainda assim, acreditamos que existimos para, através do Diálogo e da Proximidade, promover a coesão comunitária.

Queremos ser o rosto do Meeru, que nos dá nome. Um menino paquistanês que quase todos os elementos da nossa equipa conheceram em missão no centro de acolhimento do JRS (Serviço Jesuíta aos Refugiados, na sigla inglesa) em Atenas. Somos Meeru, porque ele é o rosto da espontaneidade e do acolhimento genuíno, sem fronteiras.

NV: Como podemos ir além de um acolhimento meramente burocrático?

IMS: Na MEERU queremos arriscar ultrapassar os limites da integração formal, muitas vezes padronizada e homogénea, para que o Acolhimento seja, para todos, uma aventura de aceitação, diálogo, partilha e resiliência. Fazemo-lo assumindo a proximidade como meio e como fim, e cremos profundamente que esse é o caminho para dar um salto que transforma o Acolhimento em verdadeira partilha da vida, lado a lado. Concretizamos esta missão no projeto MEERU Aproxima. Os nossos voluntários, após uma capacitação inicial, são organizados em diferentes equipas, cada uma responsável por partilhar a vida com uma família. O compromisso dos voluntários é exclusivamente a criação de relações de amizade, afeto e confiança. E cada família faz também um compromisso de partilhar a vida com esta equipa de voluntários. Não é por isso uma missão unilateral: é antes construir – reciprocamente – projetos de vida partilhada. A proximidade surge nos diferentes encontros que constroem juntos. Desde julho que temos voluntários a acompanhar famílias. Nas memórias que nos relatam, estão passeios pela praia, piqueniques no jardim, visitas ao Bom Jesus ou trocas de prendas no Natal. Mas também temos equipas que juntaram amigos para pintar e tirar a humidade de uma casa. Outras que se juntaram para um almoço de comida típica indiana, partilhada entre a família e as famílias dos nossos voluntários.

Além disso, a proximidade e relação criada com a família permite, ao longo do tempo, a facilitação de muitas questões técnicas e formais. Os nossos voluntários, através das suas redes, facilitam muitas vezes contactos de potenciais empregadores às entidades de acolhimento, acabam por ajudar as famílias a preparar os seus currículos e acompanham-nos em entrevistas de emprego. O desafio da língua, que à primeira vista poderia ser uma potencial dificuldade na criação de relações de proximidade, acaba por ser também um dos contributos dos voluntários, que em alguns casos, se organizam para preparar sessões informais de “treino” da língua portuguesa com as famílias.

Os desafios e dificuldades com os quais os voluntários se deparam são colmatados com a aprendizagem inter-equipas que, acompanhando diferentes famílias, muitas vezes têm obstáculos comuns. A Equipa Técnica da MEERU está ao serviço de todas as Equipas de Proximidade permanentemente, ouvindo-as, aconselhando-as, facilitando a comunicação com as entidades de acolhimento e a ajuda na procura de soluções. Por isso, a proximidade é para nós uma dimensão transversal – com as famílias que acompanhamos, entre voluntários, com a equipa da MEERU e com os parceiros do projeto.

NV: De que modo a pandemia influenciou a ajuda que é pensada e prestada?

IMS: A pandemia trouxe o cancelamento de muitas atividades de voluntariado de proximidade que respondiam às dores e necessidades destas e outras periferias: quantos deixaram de estar onde eram mais necessários, quando a necessidade se agravou. Nestes meses, em que o mundo foi dominado por um vírus que trouxe distância, dor e morte, na MEERU decidimos não adiar a missão. Desde o arranque, em julho de 2020, temos já 37 voluntários (9 Equipas de Proximidade) a partilhar a vida com 10 famílias de pessoas refugiadas e imigrantes, da Síria, do Iraque, dos Camarões, do Bangladesh e da Índia, a viver em Portugal.

Aos fatores que já antes contribuíam para o isolamento de tantas famílias refugiadas e imigrantes nas nossas comunidades, acrescentamos agora o risco de as poucas e ainda frágeis relações que mantêm se enfraquecerem, ou até, não existirem nos momentos mais cruciais.

Reestruturadas as equipas de voluntários para reduzir possíveis cadeias de contágio, com máscara, atenção à distância física, redução da duração dos encontros, preferencialmente ao ar livre, e cumprindo o limite de pessoas por ajuntamento, é possível construir proximidade. Por isso, com as adaptações essenciais, continuamos no terreno, a viver intensamente, com criatividade e compromisso, a Missão. Durante este tempo pandémico de incertezas, mantivemos sempre uma certeza: não podemos não estar presentes quando e nos lugares onde somos mais necessários. Seria um paradoxo – uma incoerência desonesta perante o nosso propósito – pararmos e confinarmo-nos à nossa própria segurança, quando se torna mais indispensável uma solidariedade autêntica, com os olhos postos nos, cada vez mais, últimos entre os últimos.

NV: Que fronteiras, face aos mais fragilizados, há ainda a transpor? Como o podemos fazer?

IMS: Não sei se estou à altura desta pergunta. Mas tentarei. 

Tendemos a falar de fragilizados em abstrato, e escondemos assim uma multiplicidade de formas de expressão da pobreza e da miséria. Ficamo-nos por estatísticas que nos assustam, mas esquecem rápido. Aliviamos a consciência com esmolas esporádicas. Penso que é aqui que reside a principal fronteira a ultrapassar, que está em nós próprios. Temos de humildemente reconhecer que isto não chega. É necessário antes encararmos com seriedade e compromisso o desafio do serviço. E falando concretamente do desafio do acolhimento e integração de pessoas refugiadas: não chega, de forma nenhuma, decidir receber heroicamente estas pessoas. Há um caminho longo e difícil a percorrer, lado a lado, com elas. Isto não se fará nunca com ajudas fáceis, unilaterais e fugazes. Transpor verdadeiramente fronteiras, é caminhar para que estas pessoas sejam novamente responsáveis pelos seus próprios passos. Isso faz-se devagar, com paciência, diálogo e partilha real de vida.

Se é serviço autêntico e comprometido, não pode ser sobre nós e as gratificações que merecemos, mas sobre restaurar verdadeiramente a dignidade dos nossos irmãos e irmãs. É esta a fronteira que temos que ultrapassar.

NV: Qual pode ser o nosso papel, enquanto cristãos, diante da realidade que contacta?

IMS: Tenho em crer que não precisamos de ir mais longe e mais profundo do que a mensagem real, humana e concreta de Jesus. Ele disse-nos, sem meias palavras e sem termos que ler nas entrelinhas, onde o podíamos encontrar. Peguemos, por exemplo, na Parábola do Bom Samaritano: desafia-nos, sem deixar margem para dúvidas, a deixar de lado toda a diferença e, perante o sofrimento, fazermo-nos vizinhos de quem quer que seja. É esse o desafio!

Há uns tempos cruzei com umas palavras do Cardeal Tolentino Mendonça que resumem de forma simples o que acredito ser a oração cristã, rezada com os pés a trilhar os caminhos reais da vida: Onde é que nós vamos ver Deus? Vamos ver Deus tocando a humanidade, servindo a humanidade, ajudando a humanidade uns dos outros. E, sobretudo, ajudando a humanidade mais vulnerável, mais frágil, mais sem esperança, trazendo ao colo, trazendo aos ombros, dizendo uma palavra, acreditando até ao fim, não desistindo nunca. Isso é a nossa oração, isso é a nossa visão!

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