“É preciso ver a longo prazo”: as sementes e os obstáculos da Sinodalidade por Nathalie Becquart, Subsecretária do Sínodo dos Bispos

Participou nas Jornadas Diocesanas da Pastoral de Viana do Castelo entre os dias 1 e 2 de dezembro. Nathalie Becquart, Subsecretária do Sínodo dos Bispos, entrevistada pelo Notícias de Viana, falou da sinodalidade como possível inspiração para novos modelos de liderança, explicando que o processo sinodal exige uma dimensão dinâmica da realidade. Questionada sobre a ligação entre Sínodo e Vaticano II, destacou “inculturação” e “diálogo” como palavras-chave.

João Basto
12 Jan. 2024 8 mins
“É preciso ver a longo prazo”: as sementes e os obstáculos da Sinodalidade por Nathalie Becquart, Subsecretária do Sínodo dos Bispos

Notícias de Viana (NdV): Uma das intuições do Concílio Vaticano II é “assumir” o mundo e deixar uma forma desconfiada de olhar para ele. O Sínodo é considerado uma concretização deste caminho, mas exige uma lentidão que contrasta com a velocidade a que o dia-a-dia corre. O Sínodo não pode ser visto, por isso, como uma forma contra-cultural que foge das intuições-chave do Concílio?

Nathalie Becquart (NB): Bem, penso que, como disse, a sinodalidade é, em poucas palavras, o Concílio Vaticano II posto em prática. O Sínodo é uma implementação do Concílio. Trata-se de uma forma de ser Igreja no mundo de hoje, na história, no nosso contexto. Ora, uma das conclusões do Concílio é que não pode pensar-se a Igreja fora do mundo, que existe uma relação de mutualidade, de reciprocidade, entre a Igreja e o mundo.

Neste sentido, a sinodalidade tem duas perspetivas: é uma forma de ser Igreja como batizados, mas que termina com um estilo de diálogo com o mundo. Portanto, não usarei a expressão contra-cultural porque se trata, e essa é a linha da Igreja, de inculturação. É um caminho para caminhar como Povo de Deus entre os povos da terra. É um estilo de diálogo, e é por isso que não pode falar-se de sinodalidade sem falar de ecumenismo, de diálogo inter-relacionado, de diálogo com o mundo político, com o mundo empresarial, de diálogo com a sociedade. Podíamos dizer que se trata de discernir, na nossa cultura, quais são as sementes do Evangelho. Ou até assumir que, em cada cultura, há sementes de sinodalidade e há obstáculos à sinodalidade, especialmente nos nossos países ocidentais, na Europa, cada vez mais moldados pelo individualismo.

É claro que a sinodalidade é uma forma de recuperar e construir a unidade. Às vezes digo que se trata de passar do tu ao nós, mas não fora da cultura. É por isso que precisa de processos que levem às pessoas como elas são, onde elas estão. É verdade que, por exemplo, o que é difícil na sinodalidade é que estamos numa cultura muito focada em resultados de curto prazo e queremos coisas imediatas. Estamos focados na eficiência, nos resultados imediatos, no curto prazo, mas o Concílio, com esta ideia afirmada pelo Papa Francisco, de que o tempo é maior que o espaço, reclama que é preciso paciência e que é preciso ver a longo prazo. Nesse sentido, sim, podemos dizer que é um pouco contra-cultural, porque a nossa cultura é muito centrada no curto prazo.

 

(NdV): Tem-se diagnosticado um crepúsculo das democracias e têm sido vários os alertas acerca do crescimento de populismos e atores políticos demagogos. Como pode a sinodalidade ser uma nova forma de compreender o que significa construir e governar o mundo?

(NB): Bem, isso é verdade, se olharmos para um dos discursos mais importantes do Papa Francisco sobre a sinodalidade, que é o discurso pelo 50º aniversário da instituição do Sínodo dos Bispos. Foi em outubro de 2015, durante o Sínodo sobre a Família. Ele disse muito claramente que, num mundo em que vivemos muito fragmentados, precisamos de sinergias, e a sinodalidade é o caminho. E, no final deste discurso, expressou como a sinodalidade é também uma espécie de caminho profético para as nações.

A sinodalidade não é um parlamento, não é como uma democracia, mas o facto de estarmos a viver numa democracia e em alguns processos democráticos pode inspirar-nos, e ao mesmo tempo, o que vivemos durante este mês de outubro na sala do Sínodo, com pessoas vindas de tantos países, divididas, polarizadas, foi uma forma de experimentarmos uma metodologia e uma forma de superar esta grande divisão, porque a verdade é que estamos cada vez mais num mundo muito dividido e numa sociedade muito polarizada, e não pode construir-se uma sociedade com apenas metade da população.

Nesse sentido, a metodologia sinodal, temos de o dizer, vem apenas da nossa espiritualidade cristã. Por exemplo, na cultura indígena, quando têm uma grande decisão a tomar acerca da comunidade, eles estão em círculo, ouvem todos os membros… E, de facto, este caminho vem de fontes de sabedoria de muitas partes diferentes do mundo.

A crise da nossa democracia, hoje, é que não temos formas de realmente incluir e ouvir todos. E a verdade é que muitas das divisões surgem porque as pessoas não conversam entre si, ou apenas nas redes sociais e com base em preconceitos. Além de que, em muitas democracias, a crise vem do facto de que muitas pessoas não participam e não vão votar. Nesse sentido, penso, e isso foi bem expresso no documento do Sínodo, que o que estamos a viver com a sinodalidade é também um possível sinal profético, e uma mensagem que pode dirigir-se ao mundo.

(NdV): Na sessão, as pessoas presentes perguntaram sobre a visão da Igreja acerca da homossexualidade e sobre o acompanhamento da homossexualidade. Esse tem sido, aliás, um dos temas mais abordados na leitura mediática do Sínodo. Em muitos casos, a referência ao acompanhamento não é uma desculpa para não se dar uma resposta e deixar tudo na mesma?

(NB): O objetivo do acompanhamento é ajudar todos a se aproximar de Cristo e a discernir como ser discípulos. E acho que o que entendemos sobre as questões morais da Igreja não pode ser compreendido fora de um encontro com Cristo. Principalmente hoje, alguns ensinamentos da Igreja são difíceis de compreender de fora, se ainda não se vivenciou esse encontro com Cristo e as consequências para implementar o Evangelho em sua vida.

Mas é um caminho aberto. Não se pode dizer antecipadamente o resultado. Trata-se de uma forma de caminhar com as pessoas como Jesus com os discípulos, para começar onde eles estão. E talvez a conversão, o novo caminho, seja aceitar a gradualidade. O que quero dizer é que quanto mais a Igreja caminha com as pessoas que amam pessoas do mesmo sexo, com pessoas que estão à margem, mais a Igreja discernirá qual é o caminho.

O que o Sínodo disse é que precisamos de aprofundar a compreensão também desta realidade e aprofundar uma reflexão antropológica. Porque se se pensa na homossexualidade da mesma forma como a entendíamos há um século, e em muitas sociedades ela era considerada uma doença, agora existem novos estudos, estudos científicos, que dão a volta a essa ideia. Então, em alguns casos – e não sei se será esse o caminho – a Igreja mudou a forma de encarar algumas doutrinas. Se falo, por exemplo, sobre a pena de morte, a Igreja foi mudando a sua perspetiva. Ela entendeu, em alguns contextos, que mesmo com o Evangelho, se poderia apoiar a pena de morte; mas, agora, é muito claro que a Igreja condena a pena de morte e o catecismo mudou. Ou seja, existe uma ideia de desenvolvimento da doutrina que significa que, através da sociedade e da sua evolução, há coisas que se entendem de outra maneira.

(NdV): Acha que a Igreja está preparada para procurar caminhos diferentes, para refletir sobre si mesma, e para as consequências desse caminho?

(NB): Quando se fala sobre sinodalidade, o Papa Francisco diz, em italiano, “il cammino si fa camminando”. Isso significa que a jornada é feita através da jornada. E é por isso que tudo isto é difícil; nada está escrito antecipadamente. Se pensar em si há dez anos, há 20 anos, olhar para trás e olhar para si hoje, é o mesmo, mas também é diferente. Disse-me que nunca pensou em ser jornalista, mas depois vieram as circunstâncias, e descobriu, provavelmente, uma nova dimensão sua, ou habilidades que nunca imaginou antes. É por isso que a visão da Igreja sinodal é uma visão dinâmica de identidade. É a mesma, a Igreja, através de um novo contexto e das novas circunstâncias. Por exemplo, agora estamos confrontados com a questão da inteligência artificial. Não era na época do Evangelho, e devemos perguntar como ser Igreja, o que fazer, o que dizer, e como considerar a inteligência artificial. É algo novo. É, talvez, através disso, que a Igreja terá uma nova experiência.

(NdV): Falamos de cansaço relacional na Igreja, quando o Sínodo exige um retomar das relações. O que isso significa? Não entendo o cansaço relacional.

(NB): O que posso dizer, é que se pode ter um Centro muito bonito como este, ou uma organização diocesana muito boa, mas se não vamos ao encontro das pessoas na Paróquia, não as acolhemos, estamos longe delas, ou as vemos à luz dos nossos preconceitos – e eu não digo, atenção, que não precisamos de nenhum tipo de organização – acabamos por ter dificuldade em entender e colocar em prática o central de uma Igreja que é relação. Há muitos padres e Bispos, que, no final, se sentem sobrecarregados com o trabalho administrativo, ou têm de fazer muitas reuniões e coisas assim, e não têm disponibilidade suficiente para o que está no centro do seu ministério: estar em relação com as pessoas, ter tempo, tempo livre.

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