Diário de um padre em retiro

Convidámos um padre da Diocese de Viana do Castelo a partilhar as reflexões que fez ao longo do retiro que, entre os dias 21 e 25 de novembro, decorreu em Roriz, Santo Tirso. Fique a conhecer as suas inquietações, desejos e intenções.

Notícias de Viana
1 Dez. 2022 12 mins
Diário de um padre em retiro

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DOMINGO, SOLENIDADE DE CRISTO REI, 20 DE NOVEMBRO DE 2022 

Rei Crucificado, começarei amanhã o retiro espiritual, juntamente com mais 18 sacerdotes. Esta semana, diferente de todas as outras, será o nosso kairós. E digo “nosso” porque será a minha antropologia entrelaçada no caminho que Tu és. 

Faço a mala: nela meto o indispensável apenas. Aqui em casa ficarão as distrações, barulhos, papéis, números, dinâmicas, confusões, agendas… Vai cheia de simplicidade, vai plena de silêncio! Calar-me-ei para Te ouvir! Não quero ser mais um personagem do calvário que grita, ralha, blasfema… se eu deixar e Tu quiseres, serei Dimas que escuta a sentença do seu Rei: “hoje estarás comigo”. 

O retiro espiritual será isso mesmo: estar contigo, Rei crucificado. A mala está pronta e eu estou preparado! 

Amén.

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SEGUNDA-FEIRA 

Meu Tudo, Criador ex nihilo, de todas as coisas e de mim, começo o retiro espiritual de mãos vazias! Começo diante de Ti, O Criador de tudo a partir do nada. Olho o meu vazio para o preencheres de graça. Sinto-me como a viúva no tempo de Elias (1Rs7). Ela existia sem marido, sem renda, sem alimento, sem futuro… esperava a morte. O Profeta pede-lhe um pouco do nada que possuía e era. Ela junta, cozinha, entrega o pãozinho e o milagre acontece! O “nada” converte-se em tudo, numa riqueza inesperada, no começo de uma vida doada e garantida. 

De igual modo, apresentas-me no Livro Sagrado o “nada” da viúva no tempo de Eliseu; o “nada” da multidão que segue o Mestre, o “nada” dos famintos a quem o Ichthys entrega o pão e o peixe abençoados; o “nada” dos noivos de Canã, o “nada” da Samaritana; o “nada” dos Filhos Pródigos: do que sai de casa e do que nela permanece; o “nada” da adúltera observada pelas pedras; o “nada” do publicano olhado pelos corações pétreos… 

Meu Tudo, apresento-me diante da imensidão da Tua Glória como todos eles: vazio! Pousa o Teu olhar luminoso sobre mim e preenche o vácuo com a Tua graça divina, faz-me de novo, faz-me homem novo. 

Amén.

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SEGUNDA-FEIRA À NOITE 

Senhor da Bonança, que tempestade que vai lá fora: “chove a cântaros” – diz o povo! Eu diria que “chove a barris” – uns pipos maiores que os do licor de Singeverga que os Beneditinos Irmãos do nosso Abade do retiro, D. Luís Aranha, têm. 

Apesar do barulho lá de fora, em Ti encontro a paz que só o deserto do encontro contigo dá! É na paragem, na calma e em Ti que me encontro. Sabes bem quantas vezes cabeças pensam que o sacerdote não precisa de retiro. “Então quem vive quotidianamente imerso em Deus precisa de perder uma semana para novamente estar com Ele?” – cogitam alguns corações. Mas não sabem o quão é importante é a redescoberta da grandeza da vocação, do exame da intensidade com que vivemos a graça sacramental. Eles não sabem que o deserto não é lugar de isolamento, mas de encontro! E que encontro! 

Senhor da Intimidade Trinitária, é algo difícil, mas não é impossível encontrar-me comigo mesmo; escutar-me, questionar-me; meditar-me a partir da minha fragilidade e analisar-me, começando nos meus limites. É neste deserto de paz que Tu e eu iremos habitar comigo mesmo. 

Voz da sarça ardente, fala comigo e ajuda-me a sair deste deserto como saiu Moisés; aproximar-me-ei do fogo que queima o arbusto para que ele ilumine os apegos, prisões, circunstâncias, cacos, ídolos, rotinas em que estou acorrentado. Ouço a Tua Voz e o meu coração não se fechará, não Senhor! 

Amén.

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TERÇA-FEIRA DE MANHà

Sol Nascente, que a todos iluminas e que sempre me acompanhas, dá-me a Tua Mão, vamos descer às minhas profundezas. Como o homem do Restelo, tenho um “saber de experiência feito” e posso com verdade dizer que a suavidade mão da Tua Benevolência retira o medo dos calos da minha miséria. A luz libertadora que és liberta-me sempre das fábulas e ilusões em que o orgulho me prende. Quantas vezes tentei em vão sozinho encontrar a chave das cadeias com que a soberba se prendeu em mim?! Esta é uma raposa matreira: entra e instala-se, prende-se e esconde a chave, de modo que, mesmo tendo uma vontadezinha, não a consigo expelir da existência. A única chave que abre 3 aqueles cadeados é a Tua Mão, a Mão poderosa que me tira as escamas da vista e ajuda a ver-me no pó que sou, no barro que ternamente refazes, com arte amorosa. Vejo-te pelos óculos de Isaías sempre entranhavelmente enamorado por mim e pelos meus irmãos de todo o universo. És O Pai Materno do amor, da ternura, da misericórdia, da humildade, sim, a pequenez que, por vezes tanto escasseia por cá superabunda em Ti. Humilhas-Te para dares espaço às Tuas criaturas, para nos presenteares com a liberdade diante de Ti. Quantas vezes te dizemos “não”, “não” e “não”?! Porque somos livres e, por vezes “humildes não praticantes”. 

Senhor da Humildade e da porta de casa, que tanto esperas por nós, pelo nosso regresso, pela nossa conversão… O Amor que és espera-nos, dá-nos tempo! Não desistas de nós, não deixes nunca que me divorcie e canse de mim mesmo! 

Amén.

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TERÇA-FEIRA DE TARDE 

Senhor da Entrega, que Te dás ao homem por amor, que te fizeste Pai e Mãe com entranhas de Misericórdia, habitas no mais íntimo do Teu povo e queres habitar no mais íntimo de mim mesmo. 

Edificaste a tenda entre nós para partilhares connosco as dores e alegrias, sinto o calor da Tua presença, pois acompanhas-me em cada passada que dou, em cada passo que ando… Nada da minha existência Te é alheio: não és frio nem longínquo, és presente! 

A tua presença é atuante. Não és um espetador que me olha, mas um agente que me conhece como só Tu sabes, que me examina na ternura da Tua misericórdia. Dizes-me a verdade acerca de mim próprio e revelas-me a primeira das atitudes: a confiança. 

Mestre da oração, ensinas-me de novo a rezar: “quando rezares, diz assim: ‘Papá’ “. Jesus, foste o primeiro judeu da História a falar assim ao Pai e convidas-me hoje a fazer “assim”. Nem mais, nem menos, “assim”. 

Confiança! Hoje, terça-feira, medito os mistérios dolorosos do rosário e, como no horto, na hora da total solidão, quando tudo se desmorona, penso na confiança que O Divino Agonizante tem ao Se entregar nas Divinas e Maternas Mãos: “seja como Tu queres”. Que vergonha sinto em mim, Mestre, quando penso em tantas rezas que não são esta oração! Que medo inexplicável é este que tantas vezes foge dos abraços do “Papá”? Quem tem reservas diante do Deus humilde, de Compaixão, de Ternura, que paga o preço supremo do amor? 4 Por terra caem os méritos da nossa parte. Não os temos, mas como dizemos em cada Eucaristia, “não sou digno… mas dizei uma só Palavra e eu serei salvo”. E essa “Palavra” és Tu, Jesus, que tudo sabes. E sabes bem que Te amo, que Te adoro, que em Ti creio. 

Amén.

5

TERÇA-FEIRA À NOITE 

Bom Pastor do peito ardente, deixa-me encostar a minha lã ao Teu Coração. Ofereces a Tua vida por mim e por todas as ovelhas que tão bem conheces! Dás (a) Vida voluntariamente, na total liberdade, porque amas. Nunca, nunca, nunca exerces o Teu poder contra a nossa liberdade e é tal o Teu amor que aceitas até parecer impotente: és tolerante até com o mal e os males do mundo… 

No final deste dia tão grande, escuto as vozes de tantos que perguntam “onde está Deus?”, “se Deus existe, porque não mostra o Seu poder?”. Já no calvário estas interrogações foram colocadas, mostra-lhes o Teu rosto tão terno. 

Ao fechar os olhos, penso na Tua Serva Imaculada e digo-lhe “mostrai-nos Jesus, o bendito fruto do vosso ventre”. 

Amén.

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QUARTA-FEIRA DE MANHà

Cristo Ressuscitado do Corpo de Luz, que manhã radiante! O hoje não parece irmão de ontem. Hoje adivinha-se um dia pleno de luz, a Tua Luz. É excelsa a sensação de admirar o brilho da Tua graça, e reconfortante sentir o Teu fogo que não me queima, mas quer destruir a minha ruptura com O Amor. O pecado é um atentado ao amor infinito e eterno com que criaste tudo e, em concreto, é uma ofensa ao Teu amor pessoal para comigo. 

2022: guerra, egoísmo, ódio… e quando olho à minha volta: “está-se bem!”. O que importa é a black Friday e o preço do gasóleo. De norte a sul, do este ao oeste, assistimos a uma perda da consciência do sentido do pecado e uma ausência de necessidade da graça sacramental. Nasci no século XX e há muita coisa que lá vi e não me orgulho: o ser humano pôs todas as suas esperanças nele mesmo e na possibilidade de construir um paraíso sem Deus. Não acabou nada bem esta brincadeira! Era bom que todos os ódios fratricidas tivessem acabado no momento da abertura da porta santa do 6 grande jubileu da Encarnação! Mas o III Milénio sucedeu ao II e o século XXI é filho do XX. A sociedade vive afogada num absoluto relativismo onde tudo vale para atingir os fins. 

Mestre que escreves no chão, hoje não temos bússolas espirituais na sociedade; perdemos a consciência do pecado e desapareceu a esperança no perdão. A beleza da reconstrução da pessoa deu origem a uma situação de tristeza existencial. Não é necessário afastar-me muitos metros de casa para sentir a instabilidade emocional que tantas vezes se traduz em instabilidade mediante outras opções fundamentais da vida, nomeadamente as vocacionais. Percebemos isso tão bem quando os assuntos são matrimónio, família, aptidões, carácter, razão, vontade… Mestre, que sois O Caminho, estou a ser pessimista ou jornalista? 

Amén.

7

QUARTA-FEIRA DE TARDE 

Senhor do “faça-se”, sou um elemento que integra esta sociedade onde abunda o pecado. Nem sempre sei fazer a melhor escolha e, quando assim acontece, peco! Preciso de Ti, da alegria que brota do Teu perdão. Vou receber o Teu abraço no sacramento da Reconciliação. Lá dir-me-ás o teu amén.

8

QUARTA-FEIRA À NOITE 

Pai Amoroso, obrigado pela festa, pelo anel, pelas sandálias, pela túnica, pela música, pelo perdão! 

Amén.

9

QUINTA-FEIRA DE MANHÃ

Senhor do meu tempo, não posso mudar o passado, não vivo no futuro, mas no presente. O “aqui” e “agora” são o meu tempo e o meu lugar.

A sociedade em que cresço e sou está imersa num processo de apostasia silenciosa e pauta-se pela perda da memória e da herança cristãs. Unindo uma espécie de agnosticismo prático à indiferença religiosa, muitos europeus vivem sem base espiritual e, apesar de herdeiros, maltratam o património europeu, tentando excluir a herança religiosa e a enraizada alma cristã do quotidiano.

É neste contexto que hoje te rezo! É neste clima de crises: moral, espiritual, social e económica que tenho que me confrontar com a minha vocação, pois Tu me chamas todos os dias para o seguimento na radicalidade.

Lembro, Jesus, quando me disseste “tu segue-me” pela primeira vez. Foste exigente e eu fui entusiasmado: nunca me arrependi, apesar de, na minha inocência, pensar que te ia dar alguma coisa… só recebi!

Tenho que ir mais vezes à origem da nossa história e rezar todos os passos da minha vocação. Rezar! Sim, Bom Pastor, preciso de rezar mais o “sim” fresco dos inícios. Chamaste e chamas hoje para ser sacerdote, para me identificar contigo para amar, servindo! Quero reacender em mim a chama do serviço, pois também Tu vieste “para servir, não para ser servido” e sinto que, nos dias de hoje, como nos de S. Paulo, a palavra de ordem do nosso testemunho sacerdotal é a doação total e plena.

Servo da humanidade, auxilia-me a não buscar os meus interesses, mas a vontade do Pai.

Amén.

10

QUINTA-FEIRA À TARDE

Cristo Jesus de condição divina, nesta quinta-feira santificada pela Tua presença, olho-Te colocado no trono da custódia sagrada.

Quanta humildade! Quanta humildade!

Olho-Te e aprendo de Ti.

Amén.

11

QUINTA-FEIRA À NOITE

Eucarístico e Omnipotente Jesus, sem Ti nada podemos fazer!

É verdade!

Esta é a última noite aqui no Mosteiro e quero adormecer com este pensamento: sem Ti, fazemos coisas sem critério nem rumo; contigo operamos maravilhas!

Segura-me a Ti, Mestre!

Amén.

12

SEXTA-FEIRA DE MANHÃ

Senhor da caminhada, agora começará a colheita do retiro espiritual! Iluminado pela luz da estrada de Damasco, vou com os meus com-padres disposto a ser mais “homem de Deus”. Sem isso nada feito e de nada valem todas as coisas. Serei, com a Igreja em caminhada sinodal, “homem da Igreja”, disposto a servir sempre e com todas as energias, porque a energia vem da fonte da santidade: de Ti.

Amén.

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