D. José Tolentino Mendonça, Cardeal e Poeta Português, atualmente Arquivista do Arquivo Apostólico do Vaticano e Bibliotecário da Biblioteca Apostólica Vaticana, falou com o Notícias de Viana sobre os desafios que a sociedade enfrenta, a utilidade das coisas inúteis e aquilo que ainda falta fazer como Humanidade.
De que forma é que ser padre e poeta se complementam?
São, de facto, vocações com afinidades entre si. A religião e a arte testemunham que a vida é mais do que isto, que a nossa humanidade não se esgota na luta pela sobrevivência material, que a nossa existência ficaria tragicamente incompleta se, a par da experiência material que fazemos de nós próprios e do mundo, não houvesse lugar para uma experiência espiritual. Por consequência, o padre e o poeta existem para falar de uma fome que não se sacia com o pão; existem para servir aquela sede de verdade, de sentido e de beleza que arde no coração humano como um mistério, e que nenhuma coisa do mundo resgata.
Romano Guardini descreveu a Liturgia como um modo de “brincar com Deus”. O que é que isto pode significar para nós?
O grande teólogo Romano Guardini dizia que, se pensarmos na imagem de uma criança entregue ao seu brinquedo, se pensarmos no que significa um brinquedo nas mãos de uma criança, perceberemos realmente o que é a liturgia. Tal como o brinquedo, a liturgia não representa o útil, mas representa sim o necessário. É a experiência da graça, da pura gratuidade, que nos é absolutamente indispensável para nos sentirmos amados e vivos. É uma arte da alegria, e uma alegria integral, que toca a nossa alma, mas também os nossos sentidos. A liturgia não é só da ordem da racionalidade: exprime as nossas emoções, os nossos sentimentos, o nosso silêncio e até a nossa imaginação. A liturgia não é só um dever, é também um prazer. E o modo como celebramos as nossas liturgias deveria ter isso mais em conta.
O que é que ensina a literatura? Pode-se, através dela, fazer uma leitura do mundo real?
É curioso que parece que a literatura se afasta da realidade, porque usa uma linguagem simbólica em vez da linguagem literal, ou porque recorre ao dispositivo ficcional em vez de se ater ao relato factual dos acontecimentos. Mas a verdade é que esse aparente afastamento lhe dá uma capacidade de não ficar simplesmente refém da superfície ou da espuma dos dias, mas de ler e de compreender a vida em profundidade. Num tempo como o nosso, em que vivemos mergulhados num excesso de informação, sentimo-nos muitas vezes incapazes de perceber o que está verdadeiramente em jogo e quem somos nós no meio disso tudo. Penso nos versos incisivos do poeta T.S. Eliot que nos perguntam: «Onde está a vida que perdemos vivendo? Onde está a sabedoria que perdemos sabendo? Onde está o conhecimento que perdemos na informação?». A essas perguntas, a grande literatura responde.
No dia 10 de junho, ensinou-nos o que é amar um país. Nesta linha, de que precisamos para aprender a amar a Humanidade?
O amor não é um conceito, nem uma abstração. Pelo contrário: o amor é a anti-abstração, é o compromisso celebrado com o concreto, traduzido em gestos efetivos. As nossas sociedades precisam de concretizar. No discurso do dia 10 de junho, eu referia a necessidade de nos comprometermos com três pactos: 1) Reabilitar o pacto comunitário, pois dependemos uns dos outros mais do que habitualmente o reconhecemos, e, como desafia o Papa Francisco, temos que nos empenhar na qualificação fraterna da vida comum, ultrapassando a cultura da indiferença e do descarte; 2) Fortalecer o pacto intergeracional, pois precisamos de uma visão mais inclusiva do contributo das diversas gerações; 3) Implementar um novo pacto ambiental, pois precisamos urgentemente de construir uma ecologia do mundo, onde, em vez de senhores despóticos, apareçamos como cuidadores sensatos.
Um dos seus poemas termina dizendo que «tivesse ainda tempo e entregava-te o coração». A quem nos falta fazer este gesto?
Por exemplo, com a Criação. A profética Encíclica «Laudato Si’» insiste numa conversão ecológica do nosso modo de viver. Não podemos continuar a pensar que a emergência ambiental ou a crise climática se resolvem por si, sem alterarmos os nossos estilos de vida, sem corrigirmos o nosso antropocentrismo. Temos de redescobrir o sentido da palavra «conexão». Pois estamos, também em relação ao Criado, todos no mesmo barco e ninguém se salva sozinho.
É responsável pelo arquivo do Vaticano. Qual a maior riqueza que encontrou?
O Papa Paulo VI, numa visita ao arquivo apostólico, disse que naquele lugar se escutam os passos de Cristo através da história. Se tivesse de explicar rapidamente a maior riqueza que ali encontrei, não tenho dúvidas em dizer que é essa.
Afirmou que a pandemia podia ser vista como um acelerador. No final de tudo isto – no meio de tudo isto – o que resta de Deus?
As crises são sempre oportunidades. Estou certo que a crise atual será também uma oportunidade para Deus no coração do Homem. Um elemento nessa direção é, por exemplo, que neste tempo muita gente se fez perguntas maiores do que as habituais, se interrogou mais profundamente acerca do sentido da vida. Essas perguntas são uma alavanca, um motor de arranque para o relançamento da aventura espiritual.
O que significa, então, neste contexto, «esperar contra toda a esperança»?
Significa ler essa frase de São Paulo que surge na Carta aos Romanos à luz daquela outra, do mesmo Paulo, que vem na Segunda Carta a Timóteo: «Sei em quem acreditei…Sei em quem coloquei a minha esperança».
Depois de tantos anos, a Escritura ainda provoca, em si, «A Leitura Infinita»?
Um cristão não pode viver sem a Palavra de Deus, não é? Como diz o Salmo, ela é farol para os nossos passos e luz para os nossos caminhos. E, como recordava Santo Isidoro, quando rezamos, falamos com Deus; quando lemos a Sagrada Escritura, Deus fala connosco».
Que modos clandestinos e anónimos de espiritualidade ainda não reconhecemos?
Responder à sua pergunta podia levar-nos por caminhos muito diversos, porque a questão é ampla. Mas o que primeiro me veio ao pensamento foi isto: como nós, cristãos, somos analfabetos da nossa própria tradição espiritual, como precisamos todos de apostar mais na formação. É um risco vivermos um cristianismo sem memória. Os cristãos têm de se apropriar das riquezas espirituais do cristianismo, fazendo delas o seu mapa de viagem, o seu GPS para estes tempos de perturbação. Precisamos conhecer mais e melhor a Palavra de Deus, os grandes momentos da tradição, as grandes obras do espírito cristão. Penso, por exemplo, em obras como as «Confissões» de Santo Agostinho, o «Canto espiritual» ou a «Subida do Monte Carmelo» de São João da Cruz, os textos espirituais de Charles de Foucauld ou de Edith Stein… São textos que nos puxam pelos cabelos até Deus! Não faltam monumentos de espiritualidade que, infelizmente, permanecem clandestinos e anónimos mesmo para os cristãos que deveriam, no entanto, ser os herdeiros de toda esta riqueza.
Paul Tillich afirmou que “nós somos mais fortes na expectativa do que na posse”. Como podemos continuar a edificar o cristianismo neste horizonte?
Penso muitas vezes nisto: as grandes apostas da evangelização e da catequese deveriam ser criar a fome e o desejo de Deus, em vez de serem centros de distribuição de comida rápida. Deveriam ativar a sede mais do que satisfazê-la. Um cristianismo de sofá não serve: precisamos de buscadores, de peregrinos, de aventureiros e enamorados.
Em entrevistas, chegou a dizer que, quando morrer, gostava que dissessem que perdeu tempo a olhar para os lírios do campo? Qual o verdadeiro significado deste gesto?
Jesus mandou-nos olhar os lírios do campo e as aves do céu. E é um pedido de Jesus que não podemos esquecer e que nos fala, entre outras coisas, da importância da contemplação. A contemplação treina o nosso olhar para que saiba hospedar aquilo que é imenso, aquilo que não tem cálculo nem preço, aquilo que não passa. O olhar contemplativo compreende finalmente que o tempo, o precário e vulnerável tempo que experimentamos, pode se tornar um templo. O modo como olhamos pode ser uma forma de oração.
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