Acompanhar, discernir e “deixar as expetativas à porta do Seminário”

Os Pes. José Domingos (48 anos), João Martinho (33 anos) e João Basto (24 anos) constituem a equipa formadora do Seminário Diocesano de Viana do Castelo. Na Semana de Oração pelos Seminários, conversaram com o Notícias de Viana sobre a necessidade de, na formação, serem “saudavelmente tolerantes ao erro”, da importância de “preparar e capacitar os futuros sacerdotes para uma realidade diferente daquela a que estão habituados e trazem como referência” e dos desafios que “uma cultura cada vez mais digital” apresenta à formação dos novos presbíteros.

Micaela Barbosa
4 Nov. 2021 9 mins
Acompanhar, discernir e “deixar as expetativas à porta do Seminário”

Notícias de Viana (NdV): O que significa ser formador, ou, como descreve a experiência de ser formador?Pe. José Domingos (PJD): Posso descrever a experiência enquanto formador como uma vivência importante da minha vida sacerdotal, que me permitiu e permite viver o sacerdócio para além de Pároco e pastor de uma comunidade paroquial. Contudo, esta missão de formador dos futuros sacerdotes carrega uma grande responsabilidade e uma grande tensão interior, porque a preparação dos futuros sacerdotes não pode assentar nos modelos do passado, vivenciados no meu tempo de seminarista, mas preparando-os para os novos desafios que a Igreja enfrenta.

Pe. João Martinho (PJM): De facto, o formador é aquele que contribui para o desenvolvimento de competências; é aquele que acompanha os jovens num tempo e num espaço, ajudando-os a aprofundar a intimidade com Jesus Cristo e a fazer caminho com Ele.

Pe. João Basto (PJB): Por isso, julgo que existe uma proximidade muito grande entre o “ser formador” e uma passagem do Evangelho, em que Jesus diz para que, se alguém nos pedir para caminhar uma milha, deve caminhar com essa mesma pessoa durante duas (cf. Mt 5,41). De facto, “ser formador” exige de nós a disponibilidade para um caminho longo, muitas vezes imprevisível, e que, por isso, nos deve fazer saudavelmente tolerantes ao erro, ajudando a que cada um se torne realmente o que é, e não o que gostaríamos que fosse. Esse é sempre o trabalho mais urgente, que nos exige deixar, muitas vezes, as expetativas à porta do Seminário. 

(PJD): É isso, porque a missão do formador não pode ser encarada como ser superior ou chefe, mas em saber colocar-se ao lado dos adolescentes e jovens que lhe são confiados. Muitas vezes me interrogo se sou a pessoa certa no lugar certo; e, quase sempre, a resposta é que não sou. Mas esta tensão, e por vezes até angústia, é suavizada pelo facto de este não ser um trabalho solitário, mas partilhado com os colegas que constituem a equipa formadora.

(NdV): Qual a importância do formador na vida dos jovens que procuram respostas e, quem sabe, um dia, tornarem-se sacerdotes?(PJM): A forma como o formador vive o seu ministério é fundamental. É importante que os jovens nos vejam e sintam como alguém que está no Seminário para caminhar com eles, contribuindo para a sua formação enquanto seres humanos e, quem sabe, um dia mais tarde, sacerdotes.

(PJD): Aqui, destaca-se o trabalho no discernimento vocacional. Sabemos que Deus Se serve de muitas formas e meios para tocar o coração e chamar ao sacerdócio. No entanto, seja pelo ruido ou por falta de atenção, as reais motivações e o ideal de sacerdócio de muitos que chegam ao Seminário, não raras vezes, são distintos e distantes daqueles que a Igreja propõe com modelo de identidade sacerdotal. Por isso, o papel do formador torna-se também importante quando as respostas de quem acompanhamos não passam pelo Seminário.

(PJB): Contudo, em certa medida, o nosso papel é, também, sempre relativo, e é bom que assim seja, porque, na verdade, ser formador, como já dissemos, não é ser “dono da formação”. O trabalho verdadeiramente fundamental é feito no interior da relação entre Deus e cada um. Somos, possivelmente, mais como os jardineiros: tentamos proteger as plantas, cuidar do terreno, preparar o que virá, mas há dinâmicas no interior que não somos nós que dominamos ou controlamos.

(NdV): Quais os maiores desafios que os tempos vão colocando ao trabalho de quem está nas equipas formadoras dos Seminários?(PJB): Aqui, se calhar, cada um vai apresentar desafios diferentes segundo a sensibilidade de cada um. Na minha ótica são dois: em primeiro lugar, a dúvida constante de podermos estar ou não a agir segundo aquilo que Deus nos pede; são-nos confiadas vidas, projetos e expetativas e isso exige de nós grande responsabilidade; por outro lado, a tensão que existe entre o tempo da formação e o tempo do ministério, porque podemos estar a “formar” os seminaristas para um modo de perceber e agir em Igreja, que não existirá no futuro.

(PJD): A meu ver, o primeiro é fazer do Seminário uma comunidade cristã e, nesse ambiente, proporcionar a cada seminarista uma verdadeira relação com Deus. O candidato ao sacerdócio necessita de encontrar no Seminário uma atmosfera onde se respira Cristo e onde a Palavra de Deus é o principal alimento. Se este passo não for alcançado, os futuros presbíteros até poderão ser grandes filantropos e tecnicamente bem formados, mas não serão homens de Deus, nem serão verdadeiros discípulos de Jesus. Já o segundo grande desafio é, na linha daquilo que dizia o João, preparar e capacitar os futuros sacerdotes para uma realidade diferente daquela a que estão habituados e trazem como referência. O futuro sacerdote não pode ser um mero repetidor daquilo que viu, ouviu e viveu na sua comunidade cristã, enquanto jovem seminarista.

(PJM): Talvez apresentasse mais um: a influência crescente de uma cultura cada vez mais digital que, se por um lado, tem e trouxe aspetos muito bons, por outro, tem também perigos associados, perigos estes a que os seminaristas também podem estar expostos.

(NdV): Nos últimos quase dois anos, a pandemia veio pôr a nu muitas fragilidades, as dificuldades em lidar com a solidão, com o medo e com a doença. Aos próprios sacerdotes tem sido exigida mais disponibilidade para ouvir, e acompanhar as pessoas. Será esta uma área que os Seminários devam reforçar, em termos de formação e preparação dos futuros padres? (PJD): A pandemia veio questionar e lançar novos desafios não só à Igreja, mas a toda a sociedade. E penso que, de uma maneira geral, a Igreja soube estar na linha da frente, não só nas medidas de prevenção, mas também de assistência e prestação de cuidados. Creio que a melhor forma de preparar os futuros padres para enfrentar situações como esta, passa por seguir as recomendações do Papa Francisco, ou seja, centrar toda a formação para que o padre coloque Deus e o Povo de Deus no centro de suas preocupações diárias, deixando de lado o autointeresse e os desejos mesquinhos de grandeza e protagonismo bacoco.

(PJB): Ou seja, é importante preparar os seminaristas para a normalidade, isto é, antes de mais, para serem capazes de perceber dentro de si todas estas moções interiores, não tendo medo de si mesmos e dos seus sentimentos, mas de um modo que isso lhes permita reconhecer-se no Povo que lhes for confiado. Muito possivelmente, isto é um eixo fundamental: levá-los a viver a normalidade do ser humano, e não uma dimensão supra-celeste que o leve a considerar que paira sobre os seus irmãos e irmãs. E nisto há ainda um aspeto relevante. Na formação dos Seminários, existe um investimento muito grande na criação de um ambiente em que a brincadeira e o bom humor são fundamentais; noutras palavras, o desafio à autocrítica, ao saber relativizar, à presença de espírito nas situações mais caricatas, à capacidade de ser o inverso das circunstâncias…

(PJM): Contudo, estou – e estamos, também, enquanto equipa – convencidos de que as verdadeiras consequências desta pandemia ainda não são todas conhecidas, o que nos faz estar sempre disponíveis para ler os sinais dos tempos.

(NdV): Em todo o mundo, todos tiveram que se adaptar aos novos tempos. Como se adaptou e trabalhou o Seminário Menor, em tempo de pandemia?(PJM): A pandemia trouxe desafios novos a toda a gente, mas também proporcionou descobrir ou redescobrir novas formas de trabalhar. Aquando do primeiro confinamento, os seminaristas acabaram por ir para casa, de onde, à semelhança dos outros alunos, acompanhavam as aulas através da Internet. Contudo, a formação do Seminário continuava e, ainda que à distância, os seminaristas continuavam a ter encontro de Formação Humana, encontro com o Diretor Espiritual, mas também encontro/reunião com a Equipa Formadora, duas vezes por semana.Com o segundo confinamento, e uma vez que tinham entrado oito seminaristas novos para o Seminário, decidimos que todos os seminaristas ficariam no Seminário e, a partir deste, acompanhariam as aulas à distância. Com esta decisão, os seminaristas apenas iam a casa duas vezes por mês. Foi esta decisão que permitiu um maior acompanhamento aos seminaristas, verificando como se estavam a adaptar ao ensino à distância, mas também continuar com a formação proporcionada pelo Seminário.

(NdV): Hoje, os jovens estão mais afastados da Igreja. Esta afirmação é justa? De que forma dá a equipa formadora dos Seminários resposta a este desafio? Há poucos jovens interessados em optar pelo sacerdócio?(PJB): Acho que podemos dizer que os jovens podem estar, em grande medida, mais afastados de um certo retrato da Igreja que foram construindo e lhes foi oferecido. Muitos deles acreditam até, de forma legitima, que não existe lugar para eles, porque percebem e pensam a Igreja de um modo tão abstruso, que isso é mesmo a única solução possível. Por isso, o primeiro trabalho é de desconstrução e de perceber pontos de vista. Neste sentido, talvez seja até mais pertinente perguntar se o nosso “radar” ainda é eficiente, ou se necessita de ser calibrado, para compreender e acolher novas sensibilidades. 

(PJM): Aliás, dizer apenas que, hoje, os jovens estão mais afastados da Igreja, apesar de ser verdade, penso que não será inteiramente justo, pois isto não se verifica apenas na Igreja, mas também em outros setores da sociedade. Estou convencido de que este afastamento se deve, sobretudo, a um problema com a palavra “compromisso”… Por parte da equipa formadora, para dar resposta a este desafio em concreto, existe um trabalho em articulação com os Párocos da nossa Diocese, de modo a que haja uma aposta no pré-seminário. Também procuramos dar a conhecer o Seminário nos encontros com os grupos de catequese, por ocasião da Semana dos Seminários e também da Semana das Vocações.

(PJD): Mas, neste momento, estamos, também, a começar a pensar de que modo podemos ir alargando a nossa ação.

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