Isabel G. Neto: “A vitória não é tanto uma questão de cura ou não cura. É muito mais o modo como afrontamos as dificuldades que se nos apresentam na vida.”

Há um brilho inconfundível, tremendamente familiar, no modo como fala. Isabel Galriça Neto tornou-se, há muito, uma das vozes mais reconhecidas no combate à legalização do aborto e da eutanásia. É a própria que, no decurso da entrevista, nos pede para não dizermos despenalização. “É um erro”, afirma liminarmente. Transparece uma compulsão pelo cuidado. Não cede a “confortos alienantes”, nem esquece que a medicina não é um desporto em que, no final, se premeiam os “vencedores”. Entre a importância dos cuidados paliativos, as supostas inevitabilidades da legislação da eutanásia e a importância da democracia-cristã, a conversa com a ex-deputada do CDS, decorreu no final da apresentação do livro “Da Ciência, do Amor e do Valor da Vida”, na Sala António Couto Viana da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, enquanto amigos e convidados iam trocando impressões sobre o que acabavam de ouvir.

João Basto
20 Mar. 2023 10 mins
“A vitória não é tanto uma questão de cura ou não cura. É muito mais o modo como afrontamos as dificuldades que se nos apresentam na vida”.

Notícias de Viana (NdV): Como ajudam os cuidados paliativos a aprofundar a tarefa da medicina?

Isabel G. Neto (IGN): A tarefa da medicina é acompanhar todos, quer se curem, quer não se curem. E o objetivo dos cuidados paliativos são as pessoas que têm doenças graves, incuráveis e avançadas. Os cuidados paliativos surgem para lembrar à medicina que não é apenas a cura que tem de ser o seu objetivo. Aliás, a realidade encarrega-se de nos mostrar que, de facto, no nosso país, todos os anos há muitas pessoas que precisam de cuidados paliativos. Infelizmente, a maioria não tem acesso a eles. Mas, portanto, este é o nosso mandato: ajudar a tratar aqueles que não têm cura.

(NdV): Na conferência falou dos perigos de uma linguagem bélica e triunfalista quando aplicada à medicina. Ainda assim, essa não é uma necessidade, uma espécie de conforto, mesmo que possivelmente alienante? Ou é a vitória consumada da autoajuda?

(IGN): Gosto da expressão “conforto alienante”, porque, de facto, é um engano. Tudo isso remete, de alguma forma, para uma ideia de que o homem é a medida de todas as coisas, o vencedor, no sentido de que é capaz de vencer a sua própria mortalidade. Ora, a mortalidade não é uma questão de opção é, antes, um facto inevitável da própria vida. É uma realidade.

É muito importante que se transmita esta mensagem de que o facto de nós nascermos e morrermos, vindo a ter um período de fim de vida, não pode ser olhado como um drama, mas deve ser olhado de outra forma, como parte integrante da nossa vida, para valorizar a vida de outra forma e não viver com medos e preconceitos sobre o que desconhecemos, porque não queremos falar.

A vitória não é tanto uma questão de cura ou não cura. É muito mais o modo como afrontamos as dificuldades que se nos apresentam na vida. As pessoas podem não se curar e ser na mesma vencedoras, porque enfrentam essas dificuldades com coragem, com determinação, com grandeza, com generosidade, com espírito de partilha. E isso é ser vencedor.

(NdV): Como vê que, numa sociedade que pretende eliminar a vulnerabilidade, haja, ao mesmo tempo, uma sensibilidade cada vez maior a temas como a saúde mental?

(IGN): São, de alguma forma, realidades escondidas, mas que são transversais a todas as famílias. E de alguma forma, pelo sofrimento que essas realidades acarretam, quando são desacompanhadas, existe uma tendência para falar delas. No entanto, eu gostava que esse movimento fosse para além do falar. Esse é um primeiro passo, mas gostava que houvesse ações concretas. Mas infelizmente, do ponto de vista do âmbito da saúde, as áreas de vulnerabilidade – e isto prende-se com a questão anterior – são olhadas como áreas de fraqueza e de derrota. Eu gostaria que a vulnerabilidade fosse olhada como um traço da nossa humanidade, que nos aproxima a todos e que é uma oportunidade de crescimento e de entrega para muita gente.

(NdV): Como os sucessivos pronunciamentos do Tribunal Constitucional, a eutanásia não se torna quase inevitável?

(IGN): Espero que não. Mas gostaria de clarificar uma coisa: não se pode, nem se deve, falar de cuidados paliativos a propósito da eutanásia. Compreendo que possa haver essa associação, mas é muito importante que se fale cada vez mais sobre cuidados paliativos, não apenas quando a questão da eutanásia vem a debate.

Sobre a questão da inevitabilidade, independentemente de qual venha a ser o desenvolvimento, e eu recordo que, ao contrário de outros países e numa posição de defesa de princípios e de realidade que é conhecida, vejo muita gente a defender a eutanásia sem conhecer – de todo – a realidade dos cuidados paliativos e o que eles têm de intervenção ativa no sofrimento das pessoas, não deixando que esse sofrimento se torne destrutivo. Por isso, eu gostava que a tónica da inevitabilidade fosse posta nos cuidados paliativos, porque isso sim, é cuidado, isso sim é um direito e, portanto, como defensora da liberdade, como defensora dos direitos humanos e da promoção da dignidade, encontro todos estes valores do lado dos cuidados paliativos e não do lado da eutanásia.

Vejo na eutanásia um conforto, um pseudo-conforto, uma alienação social, como disse há pouco, que, de facto, está longe de contribuir para edificar o individuo, indo por um atalho mais fácil, que não é a intervenção no sofrimento mas a eliminação do que sofre. Eu considero que, se essa é uma solução, a solução é enganosa. Eu também não tenho como visão eliminar a pobreza eliminando os pobres. Eu quero intervir na pobreza enquanto tal. Quero intervir na situação. Não vou eliminar os desempregados. Intervenho na situação.

(NdV): Ao contrário de outros países europeus, como Bélgica ou Suécia, onde Há um brilho inconfundível, tremendamente familiar, no modo como fala. Isabel Galriça Neto tornou-se, há muito, uma das vozes mais reconhecidas no combate à legalização do aborto e da eutanásia. É a própria que, no decurso da entrevista, nos pede para não dizermos despenalização. “É um erro”, afirma liminarmente. Transparece uma compulsão pelo cuidado. Não cede a “confortos alienantes”, nem esquece que a medicina não é um desporto em que, no final, se premeiam os “vencedores”. Entre a importância dos cuidados paliativos, as supostas inevitabilidades da legislação da eutanásia e a importância da democracia-cristã, a conversa com a ex-deputada do CDS, decorreu no final da apresentação do livro “Da Ciência, do Amor e do Valor da Vida”, na Sala António Couto Viana da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, enquanto amigos e convidados iam trocando impressões sobre o que acabavam de ouvir. os partidos ligados à democracia-cristã – como o CDS – têm estado ao lado dos governos, em Portugal parece que vivemos um contraciclo.

(IGN): O CDS continua no Parlamento Europeu, e continuamos a estar ativos. O problema é a falta de representação. Há falta de representação da democraciacristã, mas nós temos autarcas, e é injusto dizer-se que o CDS está morto. O CDS não tem representação parlamentar, e isso é terrível, mas passar daí para o CDS estar morto, isso é falso, e é até um desrespeito pelos militantes, pelos autarcas …

Mas não acha curioso que a democraciacristã, que nasceu dos influxos das duas grandes guerras do séc. XX, esteja precisamente, num momento em que se volta a um cenário próximo de conflito e violência, sem essa representação, que era até a salvaguarda de um conjunto de valores que parecem ter desaparecido?

Existe, sim, uma menor representatividade, até porque a comunicação social não lha dá. Mas esse património existe. E não pode deixar de ser um legado e, ao mesmo tempo, um desafio para que se mantenha vivo, por ser uma salvaguarda, como disse, um equilíbrio entre populismos e extremismos e uma visão demasiado estatizante da sociedade.

(NdV): Mas acha que isso é só uma questão da comunicação social?

(IGN): Isso demoraria muito tempo a responder, mas, e sei que isto agrada ao nosso Presidente da República, existe, de facto, um profundo preconceito antirreligioso em Portugal, que confunde que, embora sejamos uma sociedade laica, não significa que a sociedade seja antirreligiosa. E, muitas vezes, confessar uma fé, que é uma das razões de eu fazer o que faço, é visto como fator de menoridade, até intelectual. Há muitos que nos querem colar isso. “És crente?” “És atrasadinha. És retrógrada.” Isso é falso. Tal como eu tenho de respeitar os que não têm fé, tem de se desenvolver uma sociedade em que ter fé é normal. Agora, porque alguns na nossa sociedade não acreditam, não pode desenvolver-se um preconceito antirreligioso, e confundir laicidade com antirreligiosidade, havendo, até, um conhecimento cultural da religião.

(NdV): Mas não acha que é precisamente isso que está a falhar, porque até agora o cristianismo era uma espécie de grande código do nosso estilo de vida?

(IGN): Mas não porque as pessoas o integrassem ou refletissem sobre ele. Nós falamos disso nos paliativos e no fim de vida e acabamos por nos confrontar com isso (acho até que falo sobre isso no livro), que se resume à distinção entre religiosidade intrínseca e religiosidade extrínseca.

O que é que nós gostaríamos (e como o mundo seria diferente e Portugal seria diferente)? Que houvesse mais religiosidade intrínseca. A religião como algo suportado em profundas crenças espirituais, amadurecidas, refletidas e que nos desse uma unidade de vida. Eu sou crente, portanto há coisas nas quais eu não vou votar, que não vou escolher. Mas o que é que nós temos aí? E, repare, não estou a julgar, estou a fazer uma constatação. O que temos aí é uma religiosidade extrínseca. As romarias, a imagem de Nossa Senhora ali à beira, mas “é melhor não chamar o sacerdote, porque ainda é cedo”. Temos demasiadas pessoas para as quais a religião é qualquer coisa que está na prateleira, mas que não dá forma à vida e ao dia-a-dia.

Eu só concebo, e só faço o meu trabalho em cuidados paliativos, porque Deus me ajuda a fazê-lo. Isso está sempre presente na minha cabeça. Agora, qual é a questão? A questão é que a democracia-cristã é um bastião de salvaguarda relativamente a tudo o que está à esquerda, e a todo o populismo que está à direita.

(NdV): Para terminar, a cada vez mais provável legislação da eutanásia não pode ser vista, até em linha com o que disse acerca da democraciacristã, como diagnóstico de uma crise profunda, uma contradição face à matriz do ocidente? (IGN): Eu acho que é um sintoma, e, como sou médica, isso fica-me bem, mas é um sintoma claro da nossa incapacidade de lidar com a nossa humanidade e com a vulnerabilidade. E, portanto, tudo aquilo que é experiência de sofrimento, de vulnerabilidade, exige uma solução radical no que de pior está contido no radical, porque também acho que os cuidados paliativos são radicais no sentido de construção, de amor, de transformação, de serviço, de ciência. Mas o que vemos é a radicalidade no seu oposto, no destrutivo, e isso não me agrada. E independentemente de vir, ou não, a ser viabilizada a legalização – que não é de todo só uma despenalização – da eutanásia, precisamos de fazer claramente mais pelas pessoas que têm doenças graves.

Fotografia: Agência ECCLESIA

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