José Pacheco Pereira: “Há uma desvalorização efetiva do saber”

Natural do Porto, José Pacheco Pereira é historiador e ex-deputado do PSD. Recentemente, esteve em Viana do Castelo a propósito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico e concedeu uma entrevista ao Notícias de Viana.

João Basto
3 Jul. 2024 11 mins
José Pacheco Pereira: “Há uma desvalorização efetiva do saber”

Para além de falar do Ephemera, o maior arquivo (privado) do país e um dos maiores da Europa, o também professor alertou para a “perda de vocabulário” e para a importância do verdadeiro significado do conceito de cultura que, hoje, se está a perder devido ao “deslumbramento tecnológico que reforça a superficialidade e a ignorância”.

Recordou a sua passagem pelo PSD enquanto presidente da distrital de Lisboa, confidenciando que apreendeu “um mundo dos interesses instalados no interior dos partidos políticos quando estes têm relação com o poder” que vai desde as falsificações, os atos de corrupção, as manipulações e trocas, a substituição de carreiras e “outras coisas absurdas”.

Notícias de Viana (NdV): Escreveu que, enquanto líder parlamentar do PSD, tinha, no seu gabinete, um poema de Hölderlin encaixilhado, atrás de si; poema que, diz, acerca do qual, nenhum jornalista se interrogou. Que poema era, e por que razão estava lá?

 José Pacheco Pereira (J.P.P.): Tinha vários, mas esse, em particular, era um poema sobre uma figura mítica.

Sempre fui um grande leitor. Beneficiei da sorte de ter conhecido bem o Eugénio de Andrade, numa altura em que lia tudo o que me aparecesse à frente. Começou a indicar-me alguns livros inclusive dele. Li ainda muitas traduções do Paulo Quintela, da poesia alemã, que fixaram o cânone de um conjunto de autores, desde o Hölderlin, o Rainer, o Goethe e, mais tarde, o Rilke.

Não posso descrever-lhe o poema. Estava lá porque gostava muito dele. É um poema de romantismo alemão, que é uma coisa muito diferente do resto do romantismo europeu. Ao mesmo tempo, tinha outra coisa que gostava: falar para a antiguidade. Ou seja, algumas das figuras vinham da antiguidade. Na realidade é romântico, mas, em muitos aspetos, é mais metafísica. Pode dizer-se que é romântico com essa tradição da literatura clássica e, portanto, tenho dificuldade em descrevê-lo, mas era um dos grandes poemas da obra.

(NdV): É jornalista e historiador. Acompanha de perto a atualidade nacional. Foi deputado no Parlamento Europeu. No Ephemera, contacta diretamente com o dia-a-dia, sem filtro. Quais são os principais lugares-comuns e duplicidades que temos no olhar para a realidade, em particular, a realidade de Portugal?

 (J.P.P.): Há vários lugares-comuns que circulam. Um deles é que ler num ecrã e num livro é a mesma coisa. Outro é a valorização do objeto digital, em detrimento do objeto analógico. Isto é incultura. E, essa incultura tem um aspeto que a torna ainda mais perniciosa e agressiva.

A ideia de que, uma pessoa que escreve uma coisa numa rede social tem a mesma capacidade de escrever sobre uma coisa que alguém passou uma vida a estudar, demonstra que há uma desvalorização efetiva do saber. Para mim, é ignorância agressiva. Por exemplo, são muito comuns, nas redes sociais, comentários do género “eu nunca li esse livro, mas…” e, depois, reproduz alguma coisa que leu sobre esse livro. Há um crescendo de uma espécie de igualitarismo da ignorância, que é das coisas mais perigosas para a vida democrática e, de um modo geral, para a vida de um país. E, isto é um fenómeno que não é meramente português. É mais vasto.

Há uma enorme complacência face a esta ignorância, que é muito fácil trazer no plano político, quando questionam “que livro está a ler?”. De um modo geral, estão a ler “Os Maias”. Quer dizer que nem estão a lê-los, e é porque não se lembram de outra coisa. Mas, hoje, quem é que pode ler “Os Maias”, sem conhecer o vocabulário? O vocabulário circulante é outro aspeto que tem diminuído. Há um enorme empobrecimento do vocabulário, coisas que são relevantes para a nossa tradição. Uma delas é a Bíblia, que possui várias histórias e conhecimentos, quer no Antigo, quer no Novo Testamento. Não digo ser necessário ter um conhecimento muito rigoroso, mas, pelo menos, conhecer quando se fala, por exemplo, do Daniel nas covas dos leões, do Golias ou do Salomão e mesmo do Caim, do Abel e da Eva. São histórias que fazem parte da nossa cultura. Já não me refiro, sequer, ao Novo Testamento, em que até o conhecimento das parábolas desapareceu em grande parte. Ou seja, um dos aspetos é a perda de uma referência importante da cultura ocidental, que era a referência que vinha da tradição cristã. E o outro, é a perda da referência à mitologia clássica e aos seus autores.

No séc. IX, ninguém era deputado sem saber quem era Tucídides. Não acho que seja obrigatório saber quem é, mas ter uma ideia do que é o Mito de Sísifo, como é que o Ulisses fez a viagem e da Fúria do Aquiles. Ideias que, depois, se encontram em toda a literatura ocidental, desde Dante, Camões e autores contemporâneos como Thomas Mann. A perda dessas referências tem a ver com uma ideia errada do que é uma cultura que, no fundo, é uma complacência com a ignorância.

(NdV): O que acha que se está a fazer para que isso aconteça?

(J. P. P.): As pessoas têm uma ideia mítica sobre a História, em que as coisas andam sempre para a frente. No entanto, há vários momentos da História em que as coisas não andaram para a frente. Há momentos de recuo. E, é nesse momento que estamos.

A democratização do ensino é uma grande revolução, mas, se se associa à ideia de que aprender, falar e escrever bem, não é importante, como hoje se faz com pretextos para desculpar, muitas vezes, nas escolas, há a admissão dessa ignorância.

Dei aulas numa Universidade no curso de Relações Internacionais e, a dada altura, quando fazia exames, os alunos corriam para a secretaria a pedir adiamento. Mais tarde, descobri o porquê… Eu fazia perguntas difíceis. Tinha alunos que estudavam a revolução húngara e sabiam tudo. Um dia perguntei onde era a Hungria e, a maioria deles, não sabia. A partir dali, comecei a colocar questões deste género. O problema é que decoravam aquelas coisas e o mínimo de conhecimento, seja gráfico ou cultural, não sabiam. Hoje, acha-se isso normal. E, isto é que é grave. Acha-se normal, porque se acha complicado. Há muita complacência com a superficialidade e a ignorância, que é reforçada pelo deslumbramento tecnológico.

Temos um prémio Ephemera. Nunca ninguém concorreu ao prémio, que consiste em ler “A Guerra e Paz”, de Lev Tolstoi, no ecrã do telemóvel. A leitura em ecrã começa por ser uma leitura que divide. Os mais velhos não leem bem. Pode-se ampliar, mas, num texto ficcional, tenho de ler uma frase inteira ou um parágrafo inteiro, pelo menos. Quando isso deixa de ser possível, porque o ecrã não se adapta às pessoas que leem mal, por exemplo, estamos a excluir um número significativo de pessoas. A este respeito, recorro sempre a um  exemplo: “Alice no País das Maravilhas”. É um livro fabuloso para ler em criança ou até em pré-adolescente, mas é um livro que ganha em ser lido duas vezes. Naturalmente, a maioria das pessoas não o faz. Quem o faz, lê-o com o deslumbramento de uma história de crianças. Rica de imaginação. Não adianta saber porque é que a rainha má queria cortar o pescoço, ou porque é que o coelho queria fugir com o relógio. Mas, se em adulto, ler o livro, quero fazê-lo com o hipertexto porque permite explicar muita coisa que, na primeira leitura, não tenho necessidade de saber. Por exemplo, quando a Alice encontra uma lagarta a fumar cachimbo em cima de um cogumelo, come um bocado e começa a ver as pessoas mais curtas e mais compridas porque o cogumelo é um cianogénico. Eu não preciso de saber disso, mas ganho em saber.

(NdV): Mas, por aquilo que diz, não só não se lê a Alice, como é difícil que, hoje, um aluno médio, com a idade da Alice Liddell, a personagem inspiradora, leia. Ou seja, a riqueza vocabular do livro é completamente impossível.

 (J. P.P.): Completamente impossível. Aliás, mesmo “Os Maias”, não tem condições para ler. Há imensas palavras, histórias que as pessoas não conhecem, e o mesmo em relação a toda a literatura portuguesa antiga.

Uma vez, a Censura cortou-me, num artigo, a seguinte frase: “Eu troco todo o ‘Só’ de António Nobre por uma só ode de Ricardo Reis”. A Censura cortou bem, porque António Nobre era o poeta do nacionalismo e da saudade, e o Ricardo Reis era o pagão. Portanto, o corte tem sentido, mas as pessoas sabem umas frases. Não decoram praticamente nada. Qualquer pessoa com uma certa idade e, no passado, em particular, sabia coisas de cor. Hoje, as coisas que se sabem de cor são pequeníssimas. E essa perda, entre outras coisas, empobrece a conversação.

Por exemplo, eu sei vários poemas de cor. Um deles é “O Noivado do Sepulcro”. Eu sei os poemas de Fernando Pessoa contra o Salazar. Nenhuma destas coisas em si é importante saber. O mais importante é o que se perdeu com ela, e o mecanismo que está por detrás. E, isto ajuda a radicalizar.

Costumo dizer, em tom de brincadeira, que se entrasse na Assembleia da República, quando era deputado, e tropeçasse à entrada e as câmaras estivessem ligadas, quase de certeza que passava nos telejornais. Eles arranjavam um mecanismo qualquer ou um apanhado. No entanto, se fizer um grande discurso, com um argumento de três frases, não caibo. E, o que se dá, é que isto significa o retrocesso da racionalidade do discurso público, que é substituída por pathos. Pela emoção.

Agora, vivemos uma fase que toda a gente gosta do engraçadismo. Quando se tem imaginação é bom, mas, na maioria dos casos, não é por aí que se pode aprender política e acompanhar a vida pública. E isso é um dos aspetos de radicalização existentes.

(NdV): E, não sabermos isso, torna-nos mais vulneráveis?

(J.P.P.): Sim, assim como nos torna mais fácil de manipular. É por isso que quem não lê, fale minimamente com um vocabulário rico e que não conheça minimamente meia dúzia de histórias sobre o mundo, que são metáforas da realidade, é muito fácil de manipular.

(NdV): Já referimos o Ephemera. Qual é a melhor forma de descrever este projeto?

(J.P.P): Queremos tudo. Para responder de forma filosófica e de forma pomposa, é uma maneira de lutar contra a morte, tentando recolher o maior número de sinais possíveis da vida e interpretar no contexto, de maneira que as pessoas possam olhar para o passado e presente de forma a perceber como os de baixo viviam, o que comiam e o que trabalhavam, e como é que os de cima decidiam. O Ephemera está cheio disso. Daí, os seis quilómetros de estante.

(NdV): Quando organizou a exposição sobre a Censura no Estado Novo, disse que uma das principais missões desse mecanismo foi “impedir que os portugueses conhecessem Portugal”. Isso mudou com o 25 de Abril?

(J.P.P): Não mudou, mas os mecanismos são diferentes. Hoje, não temos uma censura institucionalizada. Temos uma censura pior: o policiamento da linguagem.

Eu sou grande partidário da primeira emenda da constituição americana. A liberdade de expressão não é para o que eu gosto. É para aquilo que eu não gosto. É o direito do outro dizer coisas que acho repelentes e que me enojam, mas eu defendo esse direito. Hoje, estamos numa sociedade que, quer à esquerda, quer à direita, é, cada vez mais, policiada. Há palavras que não se pode dizer. Algumas delas são ofensas. Não digo que não o sejam, mas, se tirarmos as ofensas do nosso vocabulário, com a ideia de que teremos um vocabulário higiénico, sem coisas excessivas, empobrecemos a literatura.

(NdV): Disse que Eugénio de Andrade o ensinou a ler de maneira organizada. Hoje, o que é importante ler e como?

(J.P.P): Tudo o que há para trás. Ninguém é culto se não conhecer minimamente a Bíblia, o “Inferno” de Dante, a “Odisseia”, “Os Lusíadas”, as “Crónicas” de Fernão Lopes, Fernando Pessoa, Thomas Mann e outros grandes poetas. Não digo ler tudo, mas partes/episódios importantes. Ou até um poema ou frase/verso.

Não sou partidário que as pessoas se tornem eruditas, mas que se transformem em pessoas cultas.

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