Raquel Ramos defende que “ler é um processo construtivo”

Sete anos depois, ainda ninguém esqueceu o incêndio em Pedrógão Grande. Sem querer servir-se da “tragédia”, a professora e escritora, Raquel Ramos, escolheu-o como “pano de fundo” para o seu mais recente romance: “O Ninho da Cotovia”. Um livro para adultos que, através das suas personagens fictícias, fala da essência do que é ser português e, acima de tudo, do que é ser humano, refletindo valores “imortais” como o amor, a dor, a solidariedade e a empatia pelo outro.

Micaela Barbosa
20 Set. 2024 6 mins

O velho José e a Sãozinha eram algumas das personagens que já existiam na cabeça de Raquel Ramos. No entanto, faltava “o contexto perfeito” para que a história evoluísse. “A dificuldade foi decidir quem morria e quem não morria. Uns saíram de casa e morreram e outros conseguiram salvar-se. Só surgem perguntas. O livro não dá respostas. Aliás, não é ao acaso que o final é aberto”, confidenciou a escritora, vincando o poder da palavra e da literatura. “Qualquer personagem pode ser o leitor. No texto, está a perspetiva de quem escreve, mas quem lê pode ter outra perspetiva consoante a sua experiência de vida e de leitor”, explicou, afirmando que “ler é um processo construtivo”.

Para além deste livro, a professora de inglês e alemão, que vive há mais de 30 anos em Vila Praia de Âncora, em Caminha, tem muitas outras obras já publicadas. E, muito embora as suas publicações se enquadrem no público infantojuvenil, começou por escrever para adultos. “O escrever e publicar, por vezes, andam desencontrados. Foi o que aconteceu comigo… Eu já escrevia, mas tive de assumir, para mim mesma, a responsabilidade de publicar”, admitiu, assumindo que a responsabilidade é maior quando escreve para crianças e jovens. “A escrita para adultos permite-me não ter filtros. Um adulto é um adulto. Vai ler o romance com os olhos das suas experiências e leituras”, referiu, acrescentando: “Na literatura, percebe-se que, apesar de o livro ser o mesmo, as leituras são diferentes.”

A dar aulas em Vila Nova de Cerveira, desde 1992, Raquel Ramos considera que “a leitura é uma competência transversal importantíssima” e, por isso, “não se devem ler apenas poemas ou os textos de programa”. “Há livros para todos os gostos. Portanto, devemos proporcionar a oportunidade aos leitores de descobrirem aquilo de que gostam e ir alargando conhecimentos e competências de leitura”, defendeu, sublinhando o papel “fundamental” da escola e dos professores para “abrir o leque”. “Depois de descodificar o que está escrito, o passo seguinte é perceber/entender o que estão a ler. Esta interpretação é a verdadeira leitura. E, neste sentido, a leitura é uma competência essencial e transversal para todas as disciplinas. Quanto mais competências de leitura, melhor o aluno vai compreender outras matérias e tudo o que está à sua volta”, vincou.

“As bibliotecas são o coração das escolas”

Apesar de confirmar que, nos dias de hoje, ser professor é um desafio pela falta deles e de vocação, não esconde que é das “mais bonitas profissões” que existem. “Para além de ensinar e educar crianças e jovens, é também uma forma de passarmos o testemunho daquilo que somos, de abrir horizontes e dar-lhes mundo, contribuindo para a formação deles. E, por isso, para mim, ser professora é mais do que um trabalho. É um prazer”, afirmou, contando que é também coordenadora interconcelhia na Rede de Bibliotecas Escolares, desde 2007.

Foi através deste programa que, em 2002, sentiu que deveria fazer alguma coisa para tirar os livros dos armários, com estantes, fechados à chave. “Antigamente, não tínhamos bibliotecas. Podia haver uma escola ou outra com um cantinho, mas eram raras exceções. Isso incomodava-me porque queria levar dicionários e livros para as aulas”, recordou, concordando que as bibliotecas têm, hoje, os mesmos desafios que as escolas. “As bibliotecas são o coração das escolas. Quando pensamos que está tudo feito, não está. As escolas e as bibliotecas são organismos vivos. Isto significa que, ano após ano, temos mudanças significativas na nossa população escolar, desde a falta de professores ao aparecimento de novas comunidades de crianças e jovens”, apontou.

Para Raquel Ramos, as bibliotecas têm o objetivo de “promover a leitura e a literacia da informação e dos média”. Ainda assim, não descura a importância da comunidade escolar e da família na promoção do gosto e hábito da leitura.

“A leitura traz benefícios”

Em 2020, um estudo, feito pela Fundação Gulbenkian e pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, mostrou que 61% dos portugueses não tinham lido um livro durante a pandemia. E, muito embora Portugal seja “um dos países com hábitos de leitura menos sólidos”, o mais recente estudo da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), indica que o mercado livreiro português representou 187 milhões de euros em 2023, com um aumento de 7% nas vendas face ao ano anterior.

A maior mudança registada foi, segundo a APEL, “no perfil dos compradores, tendo em conta que a faixa etária dos 25 aos 34 anos passou a ser a que mais compra (76%) e que a faixa etária dos 15 aos 24 foi a que respondeu ter comprado mais livros do que em 2022, com 41% do total dos inquiridos”. “O papel continua a ser o formato preferido de 93% dos portugueses para ler, mas 17% refere que lê livros em formato digital”, especifica o estudo.

Face a estes dados, a professora e escritora assume que a escola e as bibliotecas não podem ficar alheios a estes índices de leitura que “estão associados ao movimento nas redes sociais, mais concretamente, no Instagram e no Tik Tok”. “É preciso estar atento e perceber o que é que os jovens fazem nessas comunidades. Não sou preconceituosa relativamente ao que se lê. Eu acredito que a leitura traz mais leitura e, portanto, enquanto promotor da leitura, cabe ao professor abrir o mundo às crianças e aos jovens, apresentando novos autores e mostrando diferentes formas de pensar e pontos de vista”, referiu, sustentando que a tecnologia pode e deve ser um parceiro. “Espero que os jovens se indignem. A Greta Thunberg é um exemplo disso mesmo. Lutou pelo meio ambiente e foi contra as políticas a nível mundial que, na sua opinião, não apoiam, no futuro, uma vida saudável. Conseguiu levar consigo milhares de seguidores. E, por outro lado, há movimentos, não com tanta notoriedade, em que vemos jovens a tomar partido por algumas causas. E, neste sentido, a internet tem um papel fundamental “, acrescentou, alertando, contudo, para o excesso de tempo que bebés, crianças e jovens passam nos ecrãs. “O neurocientista Michel Desmurget, diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da França, lançou dois livros. Um fala sobre o tempo que se passa em frente aos ecrãs e sobre o seu impacto nas vidas dos bebés, crianças e jovens, desde a falta de concentração, a falta de tempo para outras atividades de socialização e a criação de vícios. O outro sugere a leitura como antídoto face aos riscos a que as crianças e os jovens estão expostos quando passam tanto tempo nos ecrãs”, explicou, concluindo: “Ler devia estar na moda. Está provado cientificamente que a leitura traz benefícios a nível pessoal, académico e profissional. É uma competência a trabalhar.”

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