Em Viana há três certezas: Natal em dezembro, Páscoa em abril e Polémicas da Agonia em agosto. Durante 11 meses do ano, a participação cívica é mais baixa do que a temperatura da Sibéria. Durante um mês, até os rodapés do extinto Cinema Palácio se tornam um drama de dimensão nacional. Chamam-se canais de televisão, criam-se páginas no Instagram e ameaças de desfiles alternativos. Mas quem é de Viana sabe bem que isto “é velho”.
Há uns anos, o cartaz era decidido quase unilateralmente pela Viana Festas. Protestou-se. Mudou-se o esquema e a escolha do cartaz tornou-se algo mais público. Continuou a não estar bem. Há uns anos, a Festa do Traje era no Castelo de Santiago da Barra. Era mais monótona. O Dr. Francisco Sampaio fazia o que podia para contar a história dos trajes. Rapava-se um frio e, às vezes, uma seca que não lembrava ao diabo. Mudou-se o cenário. Mudou-se o envolvimento. Continuou a não estar bem. Há uns anos, na serenata, havia bilhetes e bancada. Era a chuva de insultos de elitismo, de privilégio, de favorecimento. Passou a não haver controlo. Continua a não estar bem. Há uns anos, quase ia quem queria à mordomia, havia dúvidas sobre a “licitude” de algumas inscrições e comentava-se que o cortejo era longo e uma seca. Protestou-se. Colocou-se um limite. Criou-se um formulário equitativo, para terminar com suspeitas de benefício indevido. Publicitaram-se as inscrições. Continuou a não estar bem.
Em Viana, como em qualquer parte do mundo, protesta-se contra a corrupção, mas quando surgem regras para criar mais transparência, critica-se quando é o próprio a sair prejudicado. Afinal de contas, já podia haver aquela cunha amiga. Aquele favor disfarçado de compaixão identitária.
As festas têm problemas. Há coisas que podemos questionar. É justo perguntar, por exemplo, até que ponto a internacionalização da marca Romaria d’Agonia não poderá transformar as Festas numa espécie de Feira de Março ou Feira da Golegã, mas em torno do traje regional. E, mesmo dentro deste modelo, podem ser feitas mudanças, mas há um claro exagero nesta manifestação de parolice travestida de orgulho. Bom, digo travestida, mas se calhar é misericórdia a mais. Alguém se lembrou de criar uma página nas redes sociais chamada “somos_todas_mordomia”, alegadamente criada “de mulheres para mulheres” e onde se fala da mordomia como momento de “resistência cultural”. Só falta dizer que Viana é a Arábia Saudita da Península Ibérica. Aliás, essa mesma página ergueu ontem, bem alto, o seu primeiro grande troféu. Numa “story” do Instagram, publicou um “print” onde se evidencia que, às 21h20, no Jornal da Noite da TVI, a polémica foi notícia. Bravo. Que vitória. Nem sei como ainda não recebem a chave da cidade em homenagem.
Vamos aos factos: foram abertas 1000 vagas. Dessas 1000, quase 80% correspondem a habitantes de Viana. A solução, então, qual é? Não haver limites de participantes? Abrir mais 200? Para depois se perguntar porque é que são mais 200 e não 201? Exigir um certificado de nascimento em Viana do Castelo, como se as mulheres fossem os judeus sefarditas? Impedir pessoas não residentes de participar, excluindo assim, por exemplo, mulheres que, por escolha ou azar, são emigrantes?
O legítimo direito a participar, a que se recorre, está em conflito com um direito e um dever. O direito de terceiros verem respeitada a legalidade e a igualdade de oportunidades, e o dever de haver ordem e organização na Romaria, até para segurança das próprias mordomas. E aos vários manifestos de cariz populista e demagógico, importa perguntar: Como se mede o “orgulho e autenticidade”? Só quem não conseguiu lugar é que é a detentora solene da tradição? Se a Romaria “não é um espetáculo de vaidades nem um palco de influências”, quem é que está a transformá-la numa luta de egos? As 1000 mulheres inscritas são um mar de defeito, e quem ficou de fora é um oceano de virtudes e decência? Mas suspeito o seguinte: se as pessoas que reclamam tivessem conseguido inscrição, não havia esta polémica e o tom seria outro, mais próximo do: “quem se quis inscrever teve tempo, ninguém é mais que ninguém”.
Como todos, não nasci ontem. Ao longo de 28 anos, assisti a muitas birras de pessoas que se consideravam donas da Romaria. E creio que grande parte dos vianenses está farta de, chegados a agosto, termos de conviver com estas manifestações de narcisismo. O vianense comum quer viver as Festas em paz. Sem divisões, charadas ou desfiles alternativos. E se a história tem algum valor, sempre que alguém quis usar as Festas para dividir e reinar, acabou por se queimar a si próprio, ou ser votado à insignificância.
Sejamos sinceros: as Festas são, hoje, muito mais organizadas do que eram há uns anos e isso exige regras. E onde há regras, há escolhas; e onde há escolhas, há pessoas que ficam de fora. Ponto. Até porque foi à custa de algumas pessoas nunca poderem participar que outras privatizavam — e outras ainda privatizam — a Romaria para si próprias.
As Festas da Agonia são dos pescadores, mas não o são exclusivamente. São das mordomas, mas não o são exclusivamente. São das bandas, dos grupos folclóricos, da paróquia, mas não o são exclusivamente. E é assim porque Somos Todos Romaria. E isso tem consequências.
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