Martim Sousa Tavares: “Não há fórmulas para aquilo que é uma cultura completa”

Natural de Lisboa, Martim Sousa Tavares é maestro e diretor artístico. Apresenta, desde 2019, programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música, realiza conferências, assina a direção artística de ciclos de música clássica e multidisciplinares e desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Recentemente, esteve em Ponte da Barca para apresentar o seu livro - “Falar Piano e Tocar Francês” - e o Notícias de Viana aproveitou a ocasião para o entrevistar. Para além de explicar que o livro “convoca o leitor para uma reflexão sobre o modo como nos relacionamos com a arte nas suas múltiplas expressões”, Martim Sousa Tavares defendeu que “ninguém tem mais ou menos cultura”, salientando que “é o elo humano que faz gostar de alguma coisa”.

Micaela Barbosa
15 Jul. 2024 9 mins
Martim Sousa Tavares

Notícias de Viana (NdV): O seu livro – Falar piano, tocar francês – parece ser uma forma de subverter a ideia de profundidade, de  superficialidade e de erudição. O que significam realmente estas palavras?

Martim Sousa Tavares (M. S. T.): Há uma vontade não de subverter, mas de desconstruir porque a frase original “Fala piano e tocar francês” era, até não assim há pouco tempo, a receita completa de uma educação de cultura. Ou seja, aquilo que as pessoas tinham de saber fazer. As meninas se soubessem tocar piano e falar francês tinham toda a cultura e estavam prontas para a vida e para a sociedade.

Eu considero que não há fórmulas para aquilo que é uma cultura completa. Não existe uma cultura completa. Temos de querer mais e, portanto, a receita de “Tocar piano, falar francês”, para mim, não faz sentido, sobretudo, nesta era dos memes, dos estímulos, superficialidade, de sermos quem quisermos, estarmos em todo lado a toda a hora e ter o mundo na palma da mão. Portanto, quis tirar ao contrário essa premissa e, literalmente, pôr de pernas para o ar aquilo que é uma receita ‘bacoca’.

(NdV): Para si, o que significa ser culto?

(M. S. T.): Toda a gente tem cultura. Independentemente do sítio onde nasce, ninguém tem mais ou menos cultura. Temos é diferentes culturas.

Uma cultura de boa fé é aquela que eu adiro e gostava de transmitir. A cultura só acrescenta. Nós devemos sempre procurar, saber, gostar e compreender mais coisas porque isso enriquece-nos.

Aquilo que é uma boa forma de cultura é uma cultura insatisfeita daquela ótica de “só sei que nada sei”. Ou seja, querer sempre mais.

Para mim, a era dos memes é uma era fascinante porque temos tudo ao nosso alcance. Este é o melhor tempo para ser insaciável.

(NdV): E, por termos tudo ao nosso alcance, sente que as pessoas continuam a procurar e a querer saber mais ou ficam-se por aquilo que lhes chega?

(M. S. T.): Há as duas coisas. A natureza humana determina quem somos e que fazemos. Já havia preguiçosos há 200 anos e já havia workaholic há 200 anos. Agora, esta sociedade em que vivemos veio exacerbar isso. Nunca houve tanto conforto como há agora. Quem quer ser preguiçoso tem todas as razões para isso. Mas, ao mesmo tempo, nunca houve tanta possibilidade de conhecer o mundo e de gostar de tantas coisas. Por isso, as pessoas curiosas nunca estiveram tão bem. É um exacerbar da natureza humana.

(NdV): Confessa, a certo ponto, “sei que não sou necessário – a beleza é superior às minhas palavras”. O mundo cultural é demasiado snob?

(M. S. T.): Acho que não. Essa frase é sobre a importância do mediador. Este livro é um ato de medição. E, medição significa que sou uma interposta pessoa que está entre uma peça musical ou uma cidade e o leitor. Estou a transmitir informação e paixão sobre esses objetos e essa beleza. Mas, no fundo, eu sei que essa beleza é superior às minhas palavras. Ela já existia sem mim. No sentido que o que estou a dizer vale sempre menos do que a beleza em si. No entanto, o que estou a dizer pode acrescentar um bocadinho a essa beleza e, portanto, vale a pena ser dito.

(NdV): Escreve que, nos últimos tempos, tem acontecido tanta coisa à arte, que temos perdido “a aptidão para o escândalo”. Estamos demasiado acomodados? É isso?

(M. S. T.): Mais do que acomodados, estamos aborrecidos. É como se já vimos tudo, já aconteceram todos os escândalos ou, mesmo quando vamos ao cinema, vemos uma explosão e já não nos impressiona. Já não piscamos o olho. E, portanto, o que precisamos é de quantidades de estímulos cada vez superiores para reagirmos às coisas e isso torna as coisas difíceis porque como é que um livro com 200 ou 300 anos consegue competir com uma série da NetFlix? Como é que eu posso estar a ler durante duas horas aquilo, quando podia estar duas horas com um número de estímulos muito superior a ver uma série. E, portanto, há aqui uma dificuldade para quem está na minha posição. De certa forma é guardião da arte. A minha profissão é tocar esta música, fazer com que as pessoas se apaixonem e fiquem sentadas a ouvirem-na. É muito diferente nesta era dos estímulos. Numa era em que tudo parece um tédio, a não ser que seja cheio de cores, efeitos e tudo mais.

O desafio é como é que tiramos as pessoas do seu tédio e fazemos com que elas se habituam a ver a beleza em coisas, à partida, menos estimulantes. Pelo menos, à superfície menos estimulantes.

(NdV): Fala de dois lugares comuns. A ideia de que, artisticamente, tudo está terminado e a ideia de que esta é uma época de declínio cultural. Presumo que não concorde com a ideia de que o apogeu da arte já passou.

(M. S. T.): Não concordo. De todo. Falo isso no capítulo “A mais antiga tradição”. Essa tradição é a crença de que a arte está a morrer e a ficar pior. O exercício que faço é andar para trás 500, 200, 300 e 10 anos e parece que é unânime. As coisas estão a ficar piores, os grandes mestres são todos do passado e, depois, o tempo vem mostrar que, na verdade, não. Há 100 anos, o Fernando Pessoa foi um dos maiores poetas que tivemos, mas, na altura, toda a gente achava que não era possível. O maior poeta era o Camões.

A história nega e prova que essa ideia não é verdade. A única questão é que não conseguimos saber, porque estamos vivos no aqui e no agora, quem são verdadeiramente os gigantes do nosso tempo. Às vezes, conseguimos, mas, muitas vezes, eles passam despercebidos. Tem que se passar décadas ou séculos até serem descobertos.

(NdV): Quais as razões que os levam a passar despercebidos?

(M. S. T.): Há casos que determinam quase o desaparecimento do autor, mas, na maior parte das vezes, ou é a vida do autor que é um próprio obstáculo à obra. Ou seja, é um autor que é polémico e tem uma conduta imoral. Coloca-se à margem da sociedade e a sociedade não está para o aturar. Ninguém lhe dá valor e atenção. Ou então, é quando o próprio conteúdo da obra é imoral e antagónico em relação à arte. Por exemplo, o escritor Luís Pacheco morreu há mais de dez anos. Tinha muito talento, mas colocou-se numa posição tão antagónica em relação à sociedade, que o puseram à margem. Tudo o que ele fazia era para chocar e polémico. Terão de passar décadas até que ele se torne inofensivo e possamos olhar para a sua obra só do ponto de vista estético, esquecendo a moral porque são entraves à sua obra.

(NdV): Cita Bernstein, quando ele diz que a arte não responde a questões, provoca-as? Que perguntas são essas?

(M. S. T.): Na verdade, mais do que perguntas são intuições. Ou seja, a obra de arte não vem para nos dizer o que está certo ou errado. Vem para provocar uma espécie de mola no pensamento que nos leva a decidir o que está bem ou não. Por exemplo, um filme é uma obra de arte com o poder de contar uma história de uma maneira que, não dizendo o que é certo ou errado, o espectador tem todas as ferramentas para tomar as suas próprias decisões e, por isso, é que muitos filmes e realizadores decidiram abordar temas históricos difíceis e polémicos para que as pessoas possam raciocinar. Basta pensar na quantidade de filmes sobre a II Guerra Mundial que nos confrontam com situações muito duras e difíceis, que não respondem a nada por si só, mas dão, ao mesmo tempo, respostas. Nós vemos aquilo, condenamos, colocamo-nos no papel de uma e outra pessoa e, portanto, fazemos este exercício de imaginação.

(NdV): Durante a entrevista, referiu que “não há pessoas mais ou menos cultas”, mas a verdade é que algumas delas sentem que não são cultas. Que conselho lhes deixaria?

(M. S. T.): Reforçava essa ideia, mas diria para procurarem ver, ler e ouvir coisas que não compreendam. Façam o exercício à sua volta. Por exemplo, vão a um concerto de música clássica. Compreendi aquilo, mas vou observar as pessoas à minha volta e vou tentar perceber o que elas levam daqui. Ou seja, podem não compreender a obra em si, mas compreender quem compreende.

Este exercício faz-se falando e conhecendo as pessoas. Sempre tentei fazer isso ao longo da minha carreira, falando com o público e estando disponível para esse diálogo porque, muitas vezes, é o elo humano que nos leva a gostar de alguma coisa. E, pode ser uma coisa muito simples como a pessoa perguntar, a quem está ao seu lado, porque gosta desta música e a pessoa dizer que, na verdade, foi aquele concerto porque ouvir o piano é uma coisa que me tranquiliza muito e conta uma história sobre qualquer coisa. De repente, encontramos uma porta aberta e coloca-se nos pés dessa pessoa que gosta do piano, sendo mais fácil a outra também gostar. Nós somos seres empáticos. Nós procuramos a empatia. Procuramos estar no lugar do outro e concordamos com ele. Portanto, quando vejo os outros a gostar, compreendo isso mais depressa e também gosto.

Fotografia: Câmara Municipal de Ponte da Barca

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