Irmãs da Ordem dos Carmelitas Descalços: “O que possuímos é o que somos. Tudo o resto não nos pertence. Nada aqui temos próprio.”

Madre Isabel da Santíssima Trindade tem 63 anos e é natural de Calheiros, Ponte de Lima. Já a Irmã Maria Teresa Gabriel, de 25 anos, é aspirante e é natural de Oliveira de Azeméis, Aveiro. São duas das sete irmãs que pertencem à Ordem dos Carmelitas Descalços. Apesar de viverem em clausura, asseguram que se sentem “felizes e livres” porque nunca estão sós. Têm Deus ao lado delas. Em conversa com o Notícias de Viana, confidenciaram que a reação dos pais “não foi fácil”, mas, com o tempo, aceitaram a sua vocação e visitam-nas frequentemente.

Micaela Barbosa
11 Fev. 2021 13 mins
Irmãs da Ordem dos Carmelitas Descalços: “O que possuímos é o que somos. Tudo o resto não nos pertence. Nada aqui temos próprio.”

“Os meus pais sentiram muito porque nunca mais iria regressar a casa. Questionaram-me a minha escolha e propuseram-me escolher outro modo de vida religiosa que me permitisse ir a casa. Respondi-lhes que era para ali que Deus me chamava e era ali que me iria sentir feliz. Eles consentiram”, recordou a Irmã Isabel da Santíssima Trindade, acrescentando, entre risos: “O meu pai chorou muito, mas expliquei-lhe que poderiam vir ter comigo sempre que quisessem. Sempre que vinham cá, viam-me sempre feliz e, numa outra ocasião, o meu pai chegou a dizer-me que as minhas irmãs também poderiam ter vindo”. “Entre junho e julho decidi vir para aqui. Fiz a Universidade e trabalhei durante dois anos como técnica de radiologia. Em tempo de pandemia, vi coisas com que não me identificava, mais concretamente, colegas de trabalho que se recusavam a ajudar/tocar em idosos por medo. No confinamento, fiquei fechada em casa durante um mês e a questão que me colocaram numa das peregrinações que fiz com uma associação de Santa Maria da Feira regressou: a possibilidade da vida consagrada”, contou a Irmã Maria Teresa Gabriel, admitindo que veio com o espírito de estruturar “algumas coisas”. “Há um ano atrás não imaginava que viria para aqui. Foi um choque para todos, mas sinto que o meu caminho está, finalmente, a seguir o rumo certo”, frisou.

“Quero passar o meu céu a fazer o bem sobre a terra”. Esta é a frase que se lê quando nos aproximamos do Carmelo de Viana. O que significa?

Em primeiro lugar, esta é uma frase de Santa Teresinha que foi escrita numa carta a um dos seus irmãos espirituais. Ela era procedente de: “Sinto que vou entrar no repouso, mas sinto, sobretudo, que a minha missão vai começar. A missão de fazer amar a Deus como eu O amo, de dar às almas o meu pequeno caminho. Se Deus realizar os meus desejos, o meu céu passar-se-á sobre a terra até ao fim do mundo”. Com estas e outras expressões, Santa Teresinha queria dizer que a sua colaboração missionária não terminaria com a morte. A morte não era o fim, mas continuaria na eternidade. Depois ela diz: “Não conheço o futuro, mas se Jesus realizar os meus pressentimentos, prometo-vos continuar a ser sempre a vossa Irmãzinha lá no Céu. A nossa união, longe de ser quebrada, tornar-se-á mais íntima, já não haverá então clausura, nem grades e a minha alma poderá voar convosco nas missões distantes. Os nossos papéis continuarão a ser os mesmos, para vós (padres) as armas apostólicas, para mim a oração e o amor”. 

Qual acham ser o motivo da curiosidade que existe em relação à vossa vida? O que é que as pessoas não compreendem? Quais serão os maiores preconceitos? 

Sabemos que existe imensa curiosidade porque também a tivemos quando estávamos desse lado (risos). Parece um bocado inconcebível estarem pessoas fechadas numa casa e estarem bem. Outros acham que aqui se faz oração e contemplação ao Senhor o dia inteiro e que é uma monotonia de vida. Podem achar que há tanto para fazer no mundo e ser inútil para ele, ser ridículo e desatualizado este modo de vida e etc. É normal que, cada vez mais, existam preconceitos acerca deste modo de viver, porque a vida do ter está em crescimento no mundo, e isso é o oposto do que vive aqui, o que é um sinal de contradição segundo o padrão de felicidade e sentido pelo mundo. 

Podem ajudar a sociedade a perceber como é que alguém se considera livre, mesmo vivendo fechada e quase em anonimato?

Aqui, estamos fechadas fisicamente ao contrário do que se vive no mundo, em que as pessoas vivem com portas ou grades invisíveis. Por exemplo: no mundo, as pessoas estão, muitas vezes, presas à opinião alheia, à reputação da sociedade, ao dinheiro e aos bens materiais, aos prazeres vulgares, ao ter que produzir mais que o outro, às comparações a que são sujeitas… Todas as coisas impedem de se mostrarem e serem na sociedade como verdadeiramente são. Cada vez mais, as pessoas usam uma máscara. Essas máscaras trazem consigo os sentimentos de tristeza e incompreensão. Estes sentimentos podem gerar sentimentos depressivos.

Aqui somos felizes, porque sabemos que nunca estamos sós. Temos Deus, que nunca nos abandona. Não temos nada que nos possa prender, logo somos livres. O que possuímos é o que somos. Tudo o resto não nos pertence. Nada aqui temos próprio. É de todas. Tal como manda a regra: “O desapego a tudo o que é criado e o conceito do essencial”. Claro que, como seres humanos, temos de comer e ter dinheiro para comprar comida, mas tudo está na mão de Deus e na Sua Providência. Não temos que nos preocupar com isso. Deus preocupa-Se connosco e trata de nos dar meios, tocando nos corações das pessoas para nos vir trazer. 

Como descrevem o apelo vocacional que sentiram? E, como é que as vossas famílias receberam essa notícia?

Somos todas diferentes e, por isso, cada uma recebe o apelo de forma diferente, porque Deus tem muitas formas de chamar. Também Ele não fez um ser igual ao outro. Ele tem esse poder, logo o apelo que sentimos foi diferente. Não existe um apelo específico para ser Carmelita. Fundamentalmente, Deus fala-nos ao coração, como a toda a gente. O problema é que é necessário silenciar o nosso coração para O ouvirmos e, muitas vezes o que acontece, principalmente nos dias de hoje, é que é difícil silenciar o coração. Existem, cada vez mais ruídos à nossa volta que não nos deixam ouvi-Lo, como por exemplo, mais opções de vida e o preconceito da vida religiosa. Daí que não seja tão fácil escutar o que Deus quer de verdade para nós. Também se torna cada vez mais difícil escutar o coração, por medos, inseguranças e dependência do que os outros vão pensar de nós. Tudo isso nos prende. Na verdade, sentimos o que devemos ser. 

As reações das famílias dividem-se em duas formas. Há famílias que ficam orgulhosas, porque se trata de uma das Ordens mais antigas, rigorosas e exigentes. Outras, ao contrário. A clausura assusta muito, por causa das grades. Eles ficam com receio porque, desde o momento que tomamos a decisão de vir, não podemos mais sair. Podemos fazê-lo só com a autorização do Bispo, em situações extraordinárias. 

Passados tantos anos, há sinais de cansaço, desânimo e vontade de desistir?

De tudo aquilo que vejo, a vontade de desistir não existe. Compreendemos que quem não tem vocação, nem um dia aguentaria aqui, nesta vida. No entanto, é óbvio que qualquer tipo de vida tem momentos mais duros. Não há vida que seja um mar de rosas para ninguém. Onde sempre tudo corra bem, isso é sinal de que as pessoas se esqueceram de alguma coisa. Santa Teresa de Jesus dizia: “Até nos momentos que achamos menos bons, Deus tira um bom partido”. Ou seja, esses momentos, podemos usá-los para glória de Deus, aproximando-nos cada vez mais Dele. O essencial é, em todos os momentos, mantermos a paz no coração e alegria. Se estes elementos não nos faltarem, tudo o resto perde importância e isso torna-o nada, comparado com os bens que Deus pode dar. Apenas dar importância ao que realmente merece importância. “Os espinhos facilitam-nos o desapego desta terra e fazem com que elevemos os olhos muito para cima do mundo”, dizia Santa Teresinha. 

Como organizam o vosso dia-a-dia?

Santa Teresa dizia que “no Carmelo nunca há tempo que sobre. Nunca temos tempo para tudo. O nosso dia tem momentos de tudo. É claro que a oração predomina: a oração vocal e a oração de contemplação. Temos a Eucaristia e momentos de trabalho porque no Carmelo existe também roupa para lavar e secar, e comida para fazer (risos), galinhas para cuidar, a Sacristia e tudo aquilo que tem a ver com a igreja para tratar, fazemos bordados, terços, pintamos imagens de piedade e arrumamos a casa também. No final das refeições, lavamos a loiça e de seguida, temos um recreio teresiano: estamos em comunidade a trocar impressões e depois, nas restantes horas, devemos falar o mínimo. Podemos comunicar através de gestos para falar, porque tudo o que se faz no trabalho faz-se na oração. Tudo é oração para louvor do Senhor. Não há um gesto feito ao acaso e não tem de ser só oração vocal constantemente. 

Conversar com o Senhor também é oração e, se calhar, é mais forte do que qualquer outra. Por norma, as conversas que temos com Ele saem do nosso coração. Logo, tudo o que é feito com o coração terá mais valor do que qualquer outra que tenhamos feito longe do coração. O segredo está dentro de nós. Muitas vezes, procuramos em tudo o que está fora e, por isso, não encontramos.

Porque é que a vida dedicada exclusivamente à oração não é uma vida inútil?

Esta pergunta só me faz recordar uma frase de Madre Teresa de Calcutá: “Eu sei que o que faço é uma gota no oceano. Sem essa gota, o oceano seria menor”. Esta frase também se aplica à nossa vida, pois somos seres humanos dedicados à oração pelo mundo. A oração que aqui se semeia pode nascer e dar flor em qualquer parte do mundo em que mais seja necessário. Tantos países em guerra, ataques à Igreja, abortos e tanta desgraça: é muito necessária a nossa oração. O tempo com Deus nunca será inútil. Agora podem não ser visíveis os frutos, mas um dia, quando partirmos, iremos ver, se Deus permitir, o que de bem fizemos, tal como daremos conta do que menos fizermos, se não nos tivermos arrependido antes, claro. Estão cada vez mais na moda as missões, ajudando os pobres em África e mudando o mundo. No entanto, muitas vezes, ficam esquecidos os que temos necessitados ao nosso lado. É preciso começar por nós. A mudança do outro está em nós. Somos nós que temos que mudar para o outro mudar. Já Madre Teresa de Calcutá dizia: “Não é preciso ir para longe.” Muitas vezes, é mais para mostrar e aparentar-se do que realmente para fazer o bem. Podemos mudar o mundo sem sair de casa e do convento, como nós. Perguntaram também à Madre Teresa de Calcutá o que poderia ser feito para promover a paz no diálogo; ela respondia: “Vá para casa e ame a sua família”. Há outra frase que ela disse quando lhe perguntaram o que mudaria na Igreja se pudesse. Ela disse: “Eu mudaria a mim mesma”. 

Santa Teresinha escreveu que “viver de amor é guardar em si mesma / tesouro grande num vaso mortal”. Que tesouro se guarda no Carmelo?

O que Santa Teresinha quis dizer com esta frase é que o amor é um tesouro que, se vivido dentro de nós, no coração, seria guardado num vaso mortal pois o nosso corpo é um vaso mortal. O maior tesouro que se poderá guardar no Carmelo é o amor a Deus, que se expressa exteriormente, no amor à comunidade, aos sacerdotes, às almas para as salvar e a toda a gente. É o amor de Deus, que é tudo. Não há nada maior e mais grandioso que o amor verdadeiro e sincero. Amar todos por igual. Amar ao próximo mais que a mim mesmo e a Deus. Santa Teresinha também diz: “Sem amor, todas as obras são nada, mesmo as mais brilhantes” e “Aos olhos de Deus, nada é pequeno se tudo o que fizermos for com amor”. 

O que significa seguir o apelo de viver só de amor? E como podemos amar melhor?

Viver só de amor, é viver em plena confiança em Deus. É desapegarmo-nos de nós mesmos, dos nossos gostos, desejos e paixões. É estarmos sempre prontos a fazer o que Deus quer de nós. É arregaçar as mangas e trabalhar para Deus. É nunca mais dizer “não apetece algo” ou “não gosto disto ou daquilo”, é fazer tudo, mesmo que não nos agrade. Por amor ao próximo e a Deus. Amamos melhor quando nos sentimos gratos por tudo o que temos e que Deus nos dá, quando somos gratos pelo dom da vida e da saúde, principalmente, pois com a saúde conseguimos fazer tudo o resto. Mesmo sem ela, sermos gratos porque sempre podia ser pior. Diz-se sempre que há pessoas em situações piores do que a nossa, por isso, temos sempre, todos os dias, de dizer “obrigada, Senhor, por tudo aquilo que nos proporcionas neste dia. A alimentação, a casa, o trabalho e tudo mais. Quanto mais gratos somos com Deus, mais felizes somos e mais amamos.

Como se mantêm informadas sobre o que se passa com o mundo? 

Temos assinaturas de jornais diários. É assim que nos mantemos informadas, acompanhando o mundo nas nossas orações e dia-a-dia. Não vivemos à margem do que se passa lá fora. Além disso, por regra, a Madre é a única que pode ter telemóvel, e recebemos visitas dos nossos familiares.

Num momento em que muitas pessoas vivem mais sozinhas, que mensagem gostariam de deixar a quem vive a solidão como um peso?

A todas as pessoas que, neste momento, vivem mais sozinhas, gostaríamos de dizer para aproveitar e se encontrarem com elas próprias. Aproveitar também para procurar Deus e tentar silenciar o coração, mas essencialmente abrir o coração à mensagem de Deus, que é sempre uma mensagem de esperança e segurança. No Salmo 23 diz: “O Senhor é o meu pastor e nada me faltará; ainda que ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque sei que estás comigo”. Ele nunca falta a quem Nele confia. Confiemos de verdade e deixemo-nos guiar e conduzir. Para terminar, só posso deixar uma frase que um sacerdote disse: “O barulho não faz bem e o bem não faz barulho, por isso, momentos de solidão e silêncio, muitas vezes, são essenciais para a nossa relação com Deus. Aceitemos tudo o que Ele nos oferece. Nada será em vão.”

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