Estaleiros: O legado esquecido da “maior empresa naval do país” 

Em Viana do Castelo, é raro encontrar alguém que não saiba quem são e o que foram os Estaleiros Navais. É provável que se fale mais sobre o seu encerramento do que aquilo que representaram verdadeiramente para os milhares de trabalhadores que por lá passaram. Uma Comissão de Trabalhadores que os unia pelo bem comum. Um refeitório que os juntava para saborear pratos que não se encontram em mais lado nenhum. E, um Grupo Desportivo e Cultural de Trabalhadores dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo que, por mais 3647 bens patrimoniais possua, era e é um espaço de lazer e de encontro.

Micaela Barbosa
9 Ago. 2024 9 mins

O Notícias de Viana, conversou com quatro pessoas que trabalharam naquela que foi “a maior empresa naval do país”. Passe o tempo que passar, as recordações não são esquecidas e, quando contadas, vemos as emoções à flor da pele e sentimos o verdadeiro sentimento de pertença que, “nos dias de hoje, é raro encontrar” em qualquer empresa.

“Fiz grandes amizades”

Agostinho Vieira era operário na secção de serralharia e mecânica. Esteve nos Estaleiros durante 36 anos. Foi dirigente sindical e um dos fundadores da segurança. Ainda assim, destacou-se pelo papel social que desempenhou dentro da empresa por pertencer, durante “muitos anos”, aos Órgãos Representativos dos Trabalhadores. “Naquela altura, havia muitas reivindicações. Eu era um homem muito reivindicativo. Tinha capacidade de agregar as massas nos plenários e, muitas vezes, dava à cara para ‘chamar os bois pelos nomes’ porque não tinha vergonha de dizer a verdade”, começou por contar, assegurando que conheceu “muitas pessoas boas” e que aprendeu a lidar com “todo tipo de situações”.

Apesar da dificuldade em explicar e mostrar aos órgãos nacionais dos trabalhadores navais aquilo que faziam “sem grandes reivindicações”, a Comissão de Trabalhadores do Estaleiros Navais de Viana do Castelo defendia “o diálogo” entre as partes (trabalhadores e empresa) e, aos poucos, conquistaram regalias que eram prestadas noutros lugares e “nem sempre eram fáceis de concretizar”. 

Tínhamos conversa para vários dias. Falamos muito sobre o fundo, os ativos e os passivos. Números que, desde pequeno, apreciou, estudou e ainda o levou a conversar com outras comissões, já reformado, para assegurar o fundo. “Tínhamos uma boa relação com as várias administrações”, assegurou, reconhecendo os vários entendimentos para “igualar”. “As senhoras do refeitório… Uma que entrasse hoje, ganhava tanto como uma que estivesse lá há 30 anos a trabalhar”, exemplificou, admitindo que “ninguém acreditava”. “Todas aquelas que estavam há mais de x anos naquela posição, avançavam logo para o grau/número seguinte. Aliás, algumas delas, levaram dois saltos porque já tinham muito tempo de casa”, acrescentou. 

O ex-trabalhador defendeu ainda que a Comissão de Trabalhadores era apartidária, indo contra a ideia “errada” de que era ligada ao PCP.  “Nós recebíamos tão bem os indivíduos do CDS, como do PSD e PS. Recebíamos todos como igual”, assegurou, frisando que “ali, representava mais de mil trabalhadores”. “Os Estaleiros foram muito politizados pelas administrações que eram nomeadas.  Quando mudava o Governo, muitas das pessoas que assumiam, não conheciam o negócio e baseavam-se naqueles que queriam mandar. No entanto, quando nos conheciam, reconheciam o nosso valor e seriedade. O que pretendemos sempre foi defender os interesses dos trabalhadores”, referiu, recordando a história do jovem que ajudou após a morte “precoce” do pai. “Ele tinha 13 anos. Juntamo-nos e conseguimos que ele entrasse como aprendiz”, contou, confidenciando que, hoje, com 50 anos, diz-lhes que lhe salvaram a vida. “Tenho muito orgulho em ter trabalhado nos Estaleiros. Foi, durante muitos anos, a minha casa. Fiz grandes amizades”, sublinhou.

“Há muitos pratos que nunca mais comi na vida”

Luís Fernandes trabalhou para a Gertal, a empresa responsável pelo refeitório cujo ambiente era “normal” de uma cantina. “Em 30 anos, vi muita coisa e conheci muitas pessoas”, começou por contar, admitindo que fez “muitos amigos”.

No refeitório, era notório quando as coisas corriam bem ou mal na fábrica. “Tudo se refletia no refeitório”, disse, referindo que serviu milhares de refeições desde os almoços diários aos almoços mais formais quando recebiam políticos para ver os barcos em construção. 

Havia dois turnos. Um ao meio-dia e outro às 13h. Segundo Luís, era “tudo muito rápido”. “Eles tinham os lugares marcados e, quando chegavam à mesa, já tinham o seu prato, a sua bebida e a sua sobremesa”, recordou, assegurando que “não havia nenhum serviço igual” àquele. E, dos pratos, nem se fala. “Fazíamos um bocado de tudo, mas a especialidade era a comida tradicional portuguesa como feijoada, ranchos, arroz de cabidela, panados com arroz de feijão e muitos outros”, especificou, confirmando o que muitos trabalhadores diziam: “Há muitos pratos que nunca mais comi na vida. Só ali nos estaleiros.”

Para além de se juntarem para almoçar e conversar de algumas coisas da fábrica, os trabalhadores também “discutiam” sobre futebol. “O futebol era uma forma de melhorar ou piorar o ambiente. Brincavam uns com os outros, mas nem sempre ficavam todos a rir-se”, contou entre risos, acrescentando que, na fase final, “sentia-se o medo dos trabalhadores à flor da pele” e, consequentemente, “reclamavam mais”. “Foi uma fase difícil e complexa”, disse. No entanto, reconhece o seu valor. “Os estaleiros foram a maior empresa naval do país. Houve um ano que fez dez barcos. Faziam coisas muito bem feitas e tinham muitos bons trabalhadores”, salientou.

“Não era ao acaso que os armadores reconheciam a qualidade”

Já Carlos Vieira foi técnico de desenho e, atualmente, é presidente do GDCTENVC. Foi uma das pessoas que mais se emocionou a falar connosco. E, tem um vasto património fotográfico e documental da vida dos estaleiros. “No dia em que eles fecharam, fotografei tudo… Foi, talvez as imagens que mais me chocaram”, admitiu.

Entrou com 15 anos nos estaleiros para a eletricidade, mas o seu objetivo era tornar-se desenhador. “Os estaleiros eram uma empresa diferente porque tinham uma dinâmica e diversidade de serviços. Faziam tudo de início ao fim para a execução de navios”, salientou, elogiando “a qualidade acima da média” dos trabalhadores e lamentando “a imagem negativa” que saiu para fora. “Não era ao acaso que os armadores reconheciam a qualidade. O grande orgulho dos trabalhadores, no fim de uma construção, era os armadores elogiarem os trabalhadores”, contou com lágrimas nos olhos, lembrando que os estaleiros recebiam encomendas de navios de todo o mundo. “É evidente que se notou mais depois do 25 de Abril de 1974. Inicialmente, fazíamos navios de pesca e, mais tarde, navios com maior avanço tecnológico que ‘obrigou’ a empresa a criar mais oficinas e uma nova doca”, exemplificou, recordando: “Antes do 25 de Abril, tínhamos de pedir autorização para ir à casa de banho e comer. E, não podíamos demorar muito tempo.”

Para além da qualidade dos trabalhadores, Carlos Vieira destacou ainda a formação em todas áreas. “Era muito boa, potenciando o crescimento dos trabalhadores nos estaleiros e outras empresas”, referiu, elogiando o espírito de solidariedade entre trabalhadores. 

O GDCTENVC nasceu para ser “um espaço de lazer” para “promover convívios e atividades”. “Conseguimos unir mais ainda os trabalhadores”, assegurou, confidenciando “algum receio” pelo futuro da organização. “O grupo tem uma história muito grande. Participamos em vários torneios nas diferentes modalidades e arrecadamos muitos troféus”, exemplificou, referindo que também promoveram explicações aos filhos dos trabalhadores que eram dadas pelos técnicos. “Realizamos exposições, criamos um jornal e uma revista, escrevemos alguns livros e ainda organizamos festas de natal e o dia mundial da criança”, especificou, reconhecendo a participação da empresa. “Havia o amor à camisola, onde todos davam o seu contributo”, salientou.

Com mais de 900 associados, qualquer pessoa pode fazer parte do GDCTENVC, usufruindo de um seguro de saúde e de um desconto com a MEO. “Promovemos a Noite de Fados , exposições temporárias, convívio no São Martinho, homenagens, caminhadas e muitas outras”, enumerou, lamentando “a falta de proteção para salvaguardar” as organizações culturais. “Também nos preocupa não saber se existem pessoas que nos possam substituir na direção e que, muitos grupos, não tem uma sede própria”, acrescentou.

“(…) trago uma escola de vida muito grande”

Também José Luís Cambão não escondeu as lágrimas ao falar dos ENVC. Vive na Meadela e ainda hoje, com 64 anos, faz “a rota” de quando ia trabalhar nos Estaleiros. “Quando vou a Viana sozinho, sento-me na torre dos pilotos velhos a olhar para os estaleiros”, disse emocionado.

Tinha 15 anos quando entrou para paquete na contabilidade e, no ano seguinte, conseguiu ir para a eletricidade. Depois do fecho dos ENVC, ainda esteve na West Sea, mas “não era a mesma coisa”. “Dos estaleiros trago uma escola de vida muito grande. Os estaleiros eram a melhor empresa do mundo. Para tudo”, disse, sem hesitar, garantindo que “havia solução para tudo naquela casa”. 

Recordando alguns nomes dos “mestres” que abriram os estaleiros como Miguel Garcês, José Luís, José Cerqueira e o engenheiro Barreto, o ex-trabalhador disse que “não dava para viver no meio termo”. Ou se gostava dos estaleiros, ou se odiava. José Luís é dos que gostava. Aliás, dos que vivia. É muito evidente. “Trabalhei na bobinagem. O que sei e o que fazia devo ao meu superior e, por isso, os estaleiros perderam quando começaram a mandar embora mais cedo do que era necessário algumas pessoas”, lamentou, defendendo que “o saber não tem idade”. “Fiz grandes amigos. Os estaleiros ensinou-me a ser solidário, a respeitar e a exigir respeito”, enumerou, considerando que, “hoje, as pessoas preferem morrer de joelhos do que morrer de pé”. “Eu aprendi a não viver de joelhos. Não fui o melhor de todos, mas também não fui o pior de todos. Tenho orgulho de dizer que fui dos melhores, mas acatei sempre com a ordem dos meus superiores, mesmo quando não concordava e refilava. Nunca deixei de fazer o meu trabalho”, garantiu.

Ao longo do tempo, José Luís reconhece que os estaleiros perderam o know-how. Ainda assim, garante que havia “muita qualidade” nos trabalhadores porque, apesar da hierarquia, havia “o espírito de interajuda e responsabilidade”. “Foi uma grande casa e tomara eu, que é o que desejo, que a empresa que está lá que brilhe e que tenha todo o sucesso do mundo porque se isso não acontecer, o pessoal que lá está também não terá”, salientou, confidenciando que lhe enche a alma quando falam sobre “o pessoal dos estaleiros”. “As pessoas que vieram de fora (de Viana) para lá, devem ser tratadas de igual forma. Eles têm o mesmo direito daqueles que já lá estavam”, referiu.

 

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