Descentralização: um fardo ou uma oportunidade?

José Lago Gonçalves
24 Set. 2024 6 mins
José Lago Gonçalves

Em Portugal, a transferência de poderes do estado central para as entidades distritais e municipais — a descentralização — continua um objetivo por cumprir na sua totalidade. Apesar dos avanços realizados nos últimos anos, o país mantém-se como um dos mais centralizados da União Europeia, uma realidade que impede o pleno desenvolvimento regional equitativo.

Um dos últimos grandes passos políticos nesta temática ocorreu em 2018, quando o Governo e a oposição alcançaram um acordo sobre a descentralização. Este consenso político marcou um passo importante, contudo, a aplicação prática ainda enfrenta desafios significativos.

A descentralização deve ser vista como uma estratégia essencial para o desenvolvimento sustentado do país, que permitirá um crescimento mais equilibrado, justo e inclusivo, promovendo a coesão territorial e potenciando o desenvolvimento dos territórios de baixa densidade populacional, que muitas vezes ficam prejudicados pela distância do poder de decisão, e não apenas para cumprir requisitos Europeus, nomeadamente no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e do PT2030.

Importa, assim, procurar responder à pergunta “porque é que ainda não foi possível?”

Sabendo que a descentralização reside na transferência do poder de decisão, sabemos também que a classe política tem dificuldade em transferir poderes efetivos para níveis inferiores do Estado, temendo uma perda de controlo sobre a implementação das suas políticas.

Por outro lado, a administração centralizada e cristalizada ao longo dos anos representa um entrave à mudança, como mostram os exemplos do Infarmed e do Tribunal Constitucional, cuja transferência de sede para fora de Lisboa acabou revertida.

Infelizmente, a cultura administrativa centralizada faz com que as mudanças, mesmo as mais pequenas, sejam difíceis de implementar de forma eficaz e sem uma alteração real nesta mentalidade, a descentralização corre o risco de ser superficial e de não alcançar os resultados esperados.

Ainda assim, a entrada em vigor da Lei 50/2018, de 16 de agosto, Lei-Quadro da Transferência de Competências para as Autarquias Locais e para as Entidades Intermunicipais, representou um marco importante no processo de descentralização.

Passados cinco anos, no início deste ano, o Tribunal de Contas apresentou um relatório que analisou o processo de descentralização entre janeiro de 2019 e setembro de 2022, e identificou várias fragilidades que, embora não tenham colocado em causa o processo, dificultaram significativamente a atuação das autarquias.

Entre as fragilidades destacadas estão a falta de recursos financeiros e humanos adequados para gerir as novas responsabilidades e a falta de clareza sobre os limites das competências transferidas. Ambas, revelam a necessidade de um reforço significativo das capacidades técnicas e administrativas das autarquias, sem as quais a descentralização corre o risco de ser um fardo em vez de uma oportunidade.

Chegados aqui, importa aprofundar a reflexão sobre os benefícios de uma administração descentralizada e forte nos níveis intermédios.

Na verdade, já possuímos dados suficientes para afirmar que a descentralização é uma ferramenta poderosa para fomentar o crescimento regional e a coesão territorial. Por exemplo, de acordo com o Relatório de Desenvolvimento Regional da OCDE (2020), – 5. SUBNATIONAL GOVERNMENT FINANCE AND INVESTMENT, verificamos que países com níveis mais elevados de descentralização apresentam melhor desempenho económico regional e maiores níveis de satisfação dos cidadãos com os serviços públicos.

Além disso, a descentralização tem um papel fundamental na atração de investimentos locais e regionais. Os territórios com maior autonomia na gestão dos seus recursos conseguem atrair mais investimento privado e internacional, uma vez que podem adaptar a sua política fiscal e económica para favorecer setores estratégicos. Este fator pode ser determinante para as regiões menos favorecidas de Portugal, que poderiam beneficiar de políticas de incentivo ao desenvolvimento económico local, criando assim oportunidades de emprego e combate à desertificação.

A redução das desigualdades regionais, sobre a qual já escrevi em artigos anteriores, é outro dos principais benefícios da descentralização. Bem sabemos que, no nosso país, existe uma disparidade significativa entre o litoral e o interior em termos de rendimento per capita e acesso a serviços públicos. A descentralização pode ajudar a corrigir tais desigualdades, permitindo que as regiões do interior, tradicionalmente negligenciadas, desenvolvam políticas próprias de estímulo à economia local, incentivando o turismo, a agricultura e outras atividades económicas adaptadas à realidade de cada região.

Para que tudo isto seja alcançado, é necessário um forte apoio do governo central, não apenas na transferência de competências, mas também na atribuição de recursos financeiros adequados: atribuir competências aos municípios sem a alocação de verbas para tal, resultará em dificuldades de gestão das competências descentralizadas.

Outro elemento essencial será a capacitação técnica e administrativa das autarquias para assumir todas as competências atribuídas pela descentralização, como a formação contínua e o desenvolvimento de outras capacidades que assegurem que as entidades estejam à altura dos desafios.

Para além destes últimos, será necessário criar mecanismos de coordenação eficazes entre o poder central e as autarquias, garantindo que o processo de descentralização seja uma verdadeira parceria, e não uma imposição. A troca de informação e a definição clara de responsabilidades entre os diferentes níveis de governação são fundamentais para o sucesso desta estratégia.

A descentralização de competências é mais do que um simples desígnio constitucional ou uma imposição da União Europeia: é uma oportunidade para modernizar a administração pública e aproximar o poder de decisão das realidades locais, promovendo um desenvolvimento mais equilibrado e justo para todo o território português. Se for bem implementada, a descentralização será, sem dúvida, um motor de coesão territorial e de inovação na governação local.

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