Os Terramotos: Paisagem, História e Políticos

Ricardo Carvalhido
25 Set. 2024 13 mins
Ricardo-Carvalhido

O solo estava coberto de uma areia fina. Reinava ali uma semiobscuridade. Nenhuma tocha, nenhuma lanterna estava acesa, e, no entanto, vinham de fora certas claridades inexplicáveis, que se filtravam por uma estreita abertura da gruta. Ouvi também um murmúrio vago e indefinido, semelhante ao gemido das ondas que se quebravam no areal, e por vezes, julgava ouvir o soprar da brisa. Perguntava a mim mesmo se estaria bem acordado ou se sonharia, ou se o meu cérebro, afetado pela queda, não estaria a ouvir ruídos puramente imaginários.

(…)

– O mar! – exclamei!

– Sim – respondeu o meu tio. – O mar Lidenbrock, pois creio que nenhum navegador me disputará a honra de o ter descoberto e poderei dar-lhe o meu nome!

Júlio Verne in Viagem ao Centro da Terra, 1864 (Cap. 29 | Cap. 30)

 

Cumpre-se a 26 de setembro, exatamente 1 mês sobre o terramoto que afetou várias regiões de Portugal Continental, com cerca de 10 réplicas registadas nas (menos de) 24h que se seguiram. As zonas onde o terramoto mais se fez sentir foram Lisboa e Setúbal.

O tema dos terramotos (do latim, terrae – terra + motus – movimento), sob o ponto de vista científico, é sempre fascinante, concordando que na dimensão popular, possa não o ser.

Foi o que se seguiu nos dias seguintes ao terramoto, com desdobradas entrevistas a especialistas, intervenções políticas, programas especiais, comentários e reportagens de rua, que me motivou a escrever este texto, porque voltou a tornar-se claro que a nossa sociedade é alheia ao facto de que vivemos porque a Natureza nos permite e que o planeta tem ciclos que a esmagadora maioria parece querer ignorar. E o mais grave e que sistematicamente vem sendo demonstrado: salvo raras exceções, a classe política não tem conhecimentos básicos sobre estes temas e pior, não mostra sensibilidade para com estes assuntos, degenerando numa total ausência de visão e planeamento estratégico sobre temas críticos como este.

 

De onde surgem os terramotos?

Quando ensino sobre terramotos (ou sismos, se usarmos a origem grega seíō – abalo +‎ mós – divisão) costumo dizer que falar sobre estes é começar a história pelo fim. O sismo é uma das consequências de um processo, normalmente lento, mas contínuo, de acumulação de energia sobre as rochas da crosta terrestre.

Vejamos o exemplo de uma régua rígida submetida à força aplicada nas suas extremidades. À continua aplicação da força, reage a régua com a mesma intensidade (tensão mecânica), contrariando o movimento até certo ponto (cf. Lei de Hooke – “ut tensio sic vis”). O momento prévio à rutura (que todos de alguma forma detetamos e reagimos semicerrando os olhos, desviando a face, a medo e protegendo o pescoço com o ombro) resulta de um ou outro estalido, resultando das primeiras fibras que sucumbiram, ultrapassado que foi o seu limite de elasticidade. O que se segue, é a cedência completa, libertando ruído e vibração ao longo das (agora) metades, até às extremidades onde estão as mãos. Que ficam a doer.

Sobre as rochas que nos rodeiam acontece exatamente o mesmo. Sobre estas operam forças naturais, de características muito diversas e por vezes opostas: existem áreas em compressão e áreas em distensão, sendo essencial conhecer o interior do nosso planeta para percebermos essas diferenças.

De entre os vários métodos que nos permitem conhecer com algum detalhe o interior do nosso planeta, há dois que considero determinantes – o campo magnético terrestre e o comportamento das ondas sísmicas em profundidade – permitindo ver o interior da Terra, como uma ressonância magnética e nuclear ou um ecógrafo, respetivamente, o permitem para o corpo humano.

 

Um parêntesis sobre Literatura e História da Ciência: as correntes de Júlio Verne

Júlio Verne, na sua obra Viagem ao Centro da Terra (1864) (cf. citação inicial) inspirado pelo discussão científica em torno do campo magnético terrestre (cf. William Gilbert, 1600 – Magnus magnes ipse est globus terrestris ou Hans Orsted, 1820), fez refletir na ficção a conceção vigente de que existiram correntes sob a crosta terrestre. Idealizou um Mar.

Em 1897, Richard Oldham identifica, pela primeira vez, 2 tipos de ondas mecânicas num sismograma (ondas P e ondas S) e em 1906 reconhece a existência de zonas de sombra, uma vez que as ondas S (secundárias) originadas num sismo, não são registadas do lado oposto da Terra, enunciando em 1919, que isto se deveria ao facto do núcleo da Terra ser líquido. Este facto já tinha sido sugerido por Beno Gutenberg (1913) a partir do cálculo de propagação das ondas sísmicas no interior do planeta. Bullard (1949) e Elsasser (1950) postulam a teoria magneto-hidrodinâmica do campo magnético terrestre, defendendo que a rotação não uniforme do líquido presente núcleo externo da Terra, resulta da atuação da força Coriolis sobre o movimento ascendente e descendente das correntes convectivas.

Em 1926, Gutenberg identifica a existência de uma zona entre os 100 e os 250 km de profundidade onde as ondas sísmicas reduzem a sua velocidade de propagação – ficando conhecida como zona de baixas velocidades. Mais tarde Benioff (1950), identifica novas áreas do manto superior mais profundas (até aos 700 km), em fusão parcial – fixando aí o seu limite inferior.

É graças a estes (e outros contributos científicos e também os literários – que cultivam a imaginação e o gosto pela ciência) que hoje sabemos, com segurança, que o interior do nosso planeta tem 3 zonas – o núcleo, o manto e a crosta terrestre – e que esta última flutua sobre o manto, denso e pastoso, animado de correntes convectivas.

 

O ovo rachado e… O Teclado Minhoto

Uma das características mais frequentes das rochas é a fraturação. Podemos apreciá-la facilmente nas praias rochosas e noutros sítios onde a rocha aparece nua, sem solo ou vegetação. O que normalmente não é percetível pela maioria das pessoas, é que essas descontinuidades são alinhadas com outras, também paralelas, e que existem outras famílias de fraturas em presença. E que essas fraturas, a maioria delas, são muito profundas (de poucos a algumas dezenas de quilómetros). Falcão Machado referiu-se precisamente ao padrão de fraturação dominante dos terrenos do Minho, na sua obra O Teclado Minhoto (1935), caracterizando-o, grosso modo, por conjuntos de alinhamentos N-S e E-W, formando peças quadriláteras, de área desigual.

Outra questão importante a ter em conta, numa escala menor, trata-se precisamente do facto da crosta do nosso planeta não constituir um continuum, uno, mas antes, estar, tal como um ovo que foi batido numa mesa várias vezes, partida em cerca de 15 partes – as (famosas) placas tectónicas (do grego tektos – construir).

 

Terramotos: finalmente o mecanismo completo

Partindo da conceção que a crosta terrestre não tem vazios e que o Planeta não modifica o seu volume, o movimento independente das 15 placas tectónicas leva, nas diversas margens, por colisão, afastamento ou deslizamento, a encavalitamentos e enrugamentos da crosta, à digestão de placas ou a afastamentos que levam à formação de novos oceanos (como o que surgirá no oriente africano e cujo embrião podemos testemunhar com o surgimento dos Grandes Lagos Africanos). Os grandes aspetos do relevo global têm esta origem.

Não obstante, tal como acontece no tradicional jogo da corda, ou no jogo do empurra-empurra, os efeitos das forças são máximos nas zonas da sua aplicação – nos limites – mas necessariamente propagam-se para o interior, pelo que os jogadores mais afastados sentem também os efeitos das forças aplicadas. Trazendo isto para o campo da geologia, não obstante das tensões serem máximas nos limites das placas, as rochas no seu interior são também afetadas, acumulando tensões que, ultrapassados os limites de elasticidade, libertam nas fraturas mais suscetíveis, sob a forma de movimentos verticais ou horizontais, (ou compostos de ambos) –, e também vibrações, sob a forma de ondas que se propagam em profundidade, mas também calor e som.

 

Consequências sobre a Paisagem e a História de Viana do Castelo

A ciclicidade da atividade sísmica – formada por acumulação continuada de energia e a sua dissipação repentina – fica, assim, gravada na paisagem sob a forma de planaltos e ressaltos (desníveis), respetivamente.

Em Viana do Castelo podemos identificar, grosso modo, até 8 ciclos, registados como 8 principais superfícies de aplanamento (altitudes acima do nível do mar – 20 m, 50 m, 75 m, 100 m, 160 m, 270 m, 460 m e 800 m), e que constituem os degraus mais baixos de uma escadaria de planaltos que se sucedem até ao centro da Europa – os degraus culminantes que constituem a cordilheira alpina.

O estuário inferior do Rio Lima é também fortemente influenciado pela herança geológica e mostra o resultado de atividade sísmica histórica, que é, nesta região, muito fraca. Encaixado numa provável falha inversa com direção ONO-ESE, o Lima apresenta diferença de cota acumulada nos últimos 125 mil anos, de 1 metro entre as suas duas margens: justifica-se assim, o facto da margem direita ter sido muito mais produtiva em sal durante a idade Média (as salinas da margem esquerda estavam submersas bastantes mais dias por ano) e se encontrar a importante zona húmida das veigas de S. Simão e as lagoas de Vila Franca, na margem esquerda, menos levantada.

Perpendicularmente à falha do Rio Lima, e a balizar a leste o estuário inferior do Lima, ocorre uma importante falha com direção NNO-SSE – Carreamento de Vila Verde – responsável pelos desníveis verificados, a sul, entre o topo do Monte Galeão (160 m) e o topo do Monte Roques (Monte Santinho) (270 m), e a norte, entre o topo da Serra de Sta. Luzia (470 m) e o topo da Serra de Arga (800 m). O impacto no curso do Lima é também muito expressivo, uma vez que a montante deste carreamento, o rio Lima é encaixado, não ultrapassando os 300 metros entre margens, e jusante, abre-se em taça, com largura entre margens a ultrapassar 1 km. É também esse o motivo pelo qual surgem as ínsuas, que são geoformas de acumulação só possíveis em ambientes com muito pouca ou nenhuma capacidade erosiva.

Importa, por fim, referir as diferenças de relevo nos fundos marinhos a norte e a sul da foz do Lima, nomeadamente o facto de a norte atingir-se a batimétrica dos 20 metros a algumas dezenas de metros da costa, e a sul, a cerca de 4 km de distância. Este facto, com provável origem sísmica, justifica a razão do mar a norte ser mais forte e os fundos marinhos mais ricos em biodiversidade relativamente a sul, onde os fundos são essencialmente arenosos (predomina a acumulação de sedimentos).

 

A política e os políticos, e o futuro sísmico em Portugal

Por fim e para que se entenda da complexidade destes assuntos.

O autarca de Lisboa, Carlos Moedas, em fevereiro passado fez duas declarações sobre fenómenos naturais: a propósito do sismo ocorrido na Turquia, declarando que Lisboa estaria extremamente preparada para fazer face a um sismo dessa magnitude, e acerca das cheias de Lisboa, aludindo ao Plano de Drenagem de Lisboa e em como este resolveria estas situações no futuro. Foi precisamente a certeza com que as declarações foram produzidas que me fez enviar, na altura, uma mensagem que também publiquei nas redes sociais. Na mensagem enviada, lembrei Carlos Moedas que a Lisboa Pombalina, construída do sismo de 1755, preconizou a madeira usada na célebre Gaiola, mas também na estacaria de suporte dos edifícios erigidos, fincada nos sedimentos miocénicos (com entre 25 a 5 milhões de anos) que sustentam (grande parte) a cidade (…) Como é sabido, a água, se presente em quantidade que mergulhe a madeira (da estacaria) por completo, conserva-a por séculos. Se fracamente presente, apodrece-a. Temo (porque disto não se fala) que uma parte importante das fundações (de madeira, seca, portanto não conservada) da Lisboa Pombalina tenha vindo a perder competência mecânica para fazer face a um abalo sísmico moderado. Portanto, e sem colocar em causa o coletor, seria essencial que este pudesse criar espaços de infiltração (para recarga das aluviões miocénicas em que boa parte de Lisboa pousa), criando condições para que não se deteriore (ainda mais) a resistência mecânica dos edifícios da Baixa. O Doutor Carlos Moedas referiu em entrevista em 8.2.2023 que a cidade de Lisboa está extremamente preparada para um sismo. Não está Sr. Presidente, também pelo que acabei de referir. Cheias e Sismos estão relacionados. Não parece. Mas em Lisboa estão.

Considerações finais

O Atlântico norte e nomeadamente o seu fundo, em construção desde há cerca de 180 milhões de anos, pousa sobre 4 placas em movimento solidário 2 a 2, a partir do rifte central, sendo que cada grupo é formado por uma parte jovem (oceânica) e uma parte antiga, dos terrenos da Pangea.

A diferente natureza da placa oceânica, mais densa que a continental, levará, num futuro incerto, ao seu desacoplamento, e subsequente afundamento (subdução) sob a margem da plataforma continental portuguesa. Este fenómeno, que alguns colegas afirmam estar já em curso ao largo da plataforma continental SO do nosso país, tratará uma alteração radical da paisagem e ditará o início do fim do Atlântico.

Enquanto isso não acontece (levará certamente algumas largas dezenas de milhões de anos), a tendência conhecida leva-nos a antecipar, no nosso período de vida e dos nossos vindouros, um aumento generalizado da sismicidade no nosso país, centrada nas estruturas sísmicas (falhas) no offshore e alguma (residual) em estruturas onshore.

Por isso requer-se o (mínimo) conhecimento dos políticos sobre os temas do Ambiente e (principalmente), a sensibilidade necessária para os manter presentes na sua agenda, que é, em grande parte, de onde se traçam as traves-mestras para a qualidade de vida da população e gerações vindouras.

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