Miguel Nuno Maria de Siqueira de Almeida tem 52 anos e nasceu em Lisboa. É jesuíta há 25 anos, e foi ordenado presbítero em Lisboa, a 12 de julho de 2003. Fez os últimos votos, momento de incorporação definitiva na Companhia de Jesus, em Lisboa, a 28 de maio de 2011. Antes de entrar na Companhia de Jesus, estudou Marketing e foi seminarista do Patriarcado de Lisboa. Desde o dia 20 de junho, é provincial da Companhia de Jesus e lançou, recentemente, o livro Alegria e Misericórdia. Em entrevista ao Notícias de Viana, desvenda alguns detalhes da sua obra, ajudando a interpretá-la.
Na introdução ao livro Alegria e Misericórdia, diz que a alegria «não é um capricho, ou um privilégio dos sortudos deste mundo, mas o fundamento mais íntimo da nossa fé». Como é que a alegria se pode tornar este vetor primordial da relação com o Senhor?
A alegria, de facto, não é um “apêndice” à vida. A fé cristã nasce precisamente da Alegria experimentada na manhã de Páscoa. Portanto, a fé cristã oferece uma perspetiva do mundo e da vida que parte da alegria, mas esta alegria não é necessariamente a alegria da gargalhada ou do “vai ficar tudo bem”, segundo os critérios habituais do que é estar tudo bem. Às vezes, a vida corre mal e, por vezes, há desencontros, dor, sofrimento e tristeza, mas nada disto pode roubar a verdadeira alegria. Esta vem da certeza de que a vida tem um sentido último, mesmo quando não o conseguimos captar, especialmente, diante de acontecimentos que aparentam ser sem-sentido. Se assim é, torna-se perfeitamente possível que a verdadeira alegria possa conviver com a tristeza e com a dor. Mesmo na tristeza, podemos preservar uma réstia de alegria, porque confiamos que aquilo que está a provocar a nossa tristeza ou a nossa dor, não é mais forte do que o sentido da vida, e esse, os discípulos experimentaram-no no dia da ressurreição. Esta diz-nos que o amor é mais forte do que a morte. Pode haver maior motivo de alegria?
Foi em 2016 que o Papa Francisco publicou a exortação apostólica Amoris Lætitia. Como é que lê a perplexidade que ela causa ainda em 2020? Será que não se sabe habitar o equilíbrio entre o limite e a plenitude?
A Exortação Apostólica Amoris Lætitia (AL) ficou, infelizmente, quase exclusivamente identificada com o seu capítulo VIII, em que se discute e prevê a possibilidade de cristãos casados, depois de se separarem e de contraírem nova união civil, poderem aceder aos sacramentos. Este, sendo sem dúvida um assunto importante e mesmo urgente, está muito longe de esgotar o tema da Exortação. O tema é precisamente a alegria do amor na vida das famílias e, por isso, é uma pena que a AL não seja ainda mais explorada, estudada e posta em prática. No entanto, seria injusto afirmar que nada foi feito. A verdade é que, em quase todas as Dioceses, se têm produzido documentos, geralmente de ordem pastoral, que visam levar à prática as ideias e as orientações desta Exortação, mas parece-me que há um convite a uma mudança de mentalidade, a valorizar a diferença que se vive nas famílias, a acolher os que ainda não vivem o ideal, a apreciar o local numa tensão positiva com o universal, a ver o matrimónio e a vida familiar como um caminho, feito de altos e baixos, mais do que algo acabado e perfeito. Tal mudança levará tempo. O lar familiar não é uma fábrica de produtos de marca de alta qualidade que produz peças perfeitas. É antes como uma olaria que vai criando, artesanalmente, peças únicas, inclusivamente com defeito, mas que valem precisamente pela singularidade de cada peça que forma um conjunto único de um precioso serviço de porcelana.
Como é que se pode ler na Amoris Lætitia uma continuidade na descontinuidade? Ou seja, uma fidelidade original à tradição da Igreja?
A AL é exatamente o exercício da Tradição. O que ela faz é o que todos os grandes documentos da Igreja sempre fizeram. Conservam o depósito da fé e da doutrina, transmitindo-a de forma inteligível ao espaço e ao tempo em que vivem. Este é o papel da Tradição. A Tradição da Igreja não é repetir o que sempre se fez e disse. Nesse caso, não haveria teologia. A função da Igreja é tornar o Evangelho relevante nas vidas concretas das pessoas e das sociedades. Isso é a Tradição. Nesse sentido, isto é, no método, não há nada de original neste documento. A originalidade (chamou-lhe descontinuidade) está na linguagem, no modo como se dirige aos leitores, no sublinhar aspetos espirituais e teológicos mais do que estritamente canónicos, no apreciar a subjetividade própria de cada família, e não só a objetividade universal da lei. Saber habitar a tensão – todas as tensões – de forma positiva, é uma arte. Esta é a arte da Tradição da Igreja. Esta é a arte da AL.
Como sintetiza a proposta de acompanhamento pastoral a que o Papa Francisco convida na Amoris Lætitia?
O acompanhamento pastoral é algo de muito delicado. Há que saber descalçar-se diante do lugar sagrado que é o outro (cf. Ex 3,5). Alguém que procura o acompanhamento, traz já uma bondade, um desejo de melhorar a sua vida, vem pedir ajuda. Quão iníquo seria maltratar ou pôr fardos pesados às suas costas, que nem nós podemos suportar (cf. Mt 23,4). Na AL, o acompanhamento parece adquirir categoria de elemento teológico-moral e não “apenas” pastoral. Há, na AL, a preocupação de que doutrina e pastoral caminhem sempre juntas. Voltemos sempre ao início: o anúncio alegre de que o Senhor ressuscitou. O acompanhamento terá que ajudar a conduzir à experiência salvífica da misericórdia do Senhor. Este percurso pode ser longo. É preciso paciência, como Jesus fez com a Samaritana, diz o Papa Francisco (cf. AL 294). Acompanhar é caminhar juntamente com o outro. É percorrer o trajeto entre a Lei universal (que mantém todo o seu valor e evita cair no subjetivismo) e a situação pessoal e concreta (que não pode ser ignorada, sob pena de se cometer uma injustiça atroz). O discernimento é essa busca da vontade de Deus que continua a manifestar-se e a revelar-se na história. Depois de referir como “nos custa deixar espaço à consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem o melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus limites, e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas. Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las” (AL 37), o Papa Francisco afirma que “os sacerdotes têm o dever de acompanhar as pessoas interessadas pelo caminho do discernimento, segundo a doutrina da Igreja e as orientações do Bispo” (AL 300). O acompanhamento, portanto, requer ter em conta a consciência das pessoas, a doutrina da Igreja e as orientações do Bispo.
Na linha do pensamento do Papa Francisco, como caracteriza uma família “cristã”?
Podia dizer muitas coisas, mas cito apenas parte de um parágrafo da AL que me parece revelar algo de essencial no que respeita a tentar descrever o que é uma família cristã:
“(…) as famílias magnânimas e solidárias abrem espaço aos pobres, são capazes de tecer uma amizade com aqueles que estão a viver pior do que elas. Se realmente têm a peito o Evangelho, não podem esquecer o que diz Jesus: «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25,40). Em última análise, vivem o que nos é pedido, de forma tão eloquente, neste texto: «Quando deres um almoço ou um jantar, não convides os teus amigos, nem os teus irmãos, nem os teus parentes, nem os teus vizinhos ricos; não vão eles também convidar-te, por sua vez, e assim retribuir-te. Quando deres um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos. E serás feliz» (Lc 14,12-14). Serás feliz! Aqui está o segredo duma família feliz (AL 183)”.
No balanço da interpretação da proposta ética cristã, será que o cristianismo é visto mais como uma moral do pecado do que como moral das virtudes?
O cristianismo é muito mais do que uma ética. Como afirmava o Papa Bento XVI e o Papa Francisco tem citado por diversas vezes, a fé cristã nasce, não de uma doutrina ou de um conjunto de leis, mas de um encontro. É o encontro fundamental com a Pessoa de Jesus que dá identidade e estrutura à nossa fé. É, portanto, um fruto, mais do que um ponto de partida. Obviamente que, quem sublinha a questão do pecado, deseja atingir o fim último da salvação, mas diria que há, à partida, uma desconfiança do ser humano e da sua bondade, pelo que se torna mais eficaz – segundo esta perspetiva – assegurar e sublinhar a força da tentação em nós e a necessidade de fugirmos do pecado para a salvação. Daí o sublinhar dos perigos da nossa natureza carnal e da força da lei. Este sublinhado oferece uma maior segurança. Por seu lado, a ética das virtudes (mais na linha de S. Tomás d’Aquino) acredita na bondade da criação e pretende educar o ser humano, incutindo-lhe bons hábitos e fazendo-os desenvolver-se ao longo da vida. Diria que é uma educação moral “pela positiva”. Claro que requer ascese e luta pessoal, mas o que move esta ética é a bondade dos meios e dos fins das nossas decisões e ações. Em última instância, o crescimento como pessoa e o encontro último com Cristo (a que a Igreja chama salvação) é a meta. Esta é, claramente, a linha do Papa Francisco. Impressiona, por exemplo, que no capítulo da AL dedicado à educação dos filhos (cap. VII), nada se diga quanto à aprendizagem da lei. Apelando à renúncia das satisfações imediatas e tomando atenção e cuidado com os enganos das paixões, tudo assenta na educação para a liberdade e para desenvolver hábitos positivos, que vão criando na pessoa uma verdadeira atração pelo bem.
Notícias atuais e relevantes que definem a atualidade e a nossa sociedade.
Espaço de opinião para reflexões e debates que exploram análises e pontos de vista variados.