Dia 9 de novembro de 1974. Número 4, Travessa das Laranjeiras, numa aldeia do interior beirão. O acesso à cidade onde nasciam as crianças da região, para quem tinha transporte próprio, claro, já era a famosa Estrada Nacional 2. No entanto, lá na aldeia, todas as crianças nasciam através dos cuidados das mãos sábias da […]
Dia 9 de novembro de 1974. Número 4, Travessa das Laranjeiras, numa aldeia do interior beirão. O acesso à cidade onde nasciam as crianças da região, para quem tinha transporte próprio, claro, já era a famosa Estrada Nacional 2. No entanto, lá na aldeia, todas as crianças nasciam através dos cuidados das mãos sábias da tia Margarida, mulher, mãe e parteira. Eu não fui exceção. Eram oito e vinte da noite e o meu pai estava na adega com os homens da aldeia, prontos para celebrar o meu primeiro grito, quando eu visse a luz do candeeiro a petróleo que iluminava o quarto. Homens e mulheres, separados por um soalho de madeira. Daquela forma ancestral, todos comungavam do nascimento. E a noite em que eu nasci foi de festa, com vinho e pão partilhados por familiares e amigos. Era assim na minha aldeia, tal como em muitas outras, certamente, sempre que nascia alguém. E seria assim em Portugal e noutras paragens do mundo, também. No entanto, em 1974, e sem que eu ainda o soubesse, eu nascia em liberdade!
Por causa da recém-nascida liberdade, e também devido à localização isolada e ao pequeno número de habitantes da minha aldeia, acredito que, quando eu nasci, poucos sentissem ainda grande diferença entre a falta de liberdade e o valor da liberdade conquistada. Os mais velhos contaram-me que, no imediato, a liberdade começou por não lhes mudar muito a sua vida concreta. A democratização e transformação de um país novo foi lenta. E é verdade que, quando a luz elétrica chegou à aldeia, já eu andava na antiga segunda classe da escola primária, em 1981. E, ainda mais lentamente, a água canalizada chegou quando eu já era adulta.
Mas o que sei é que, se não vivêssemos em liberdade, essas mudanças materiais ainda teriam demorado mais tempo a chegar.
No entanto, outras mudanças foram bem mais rápidas e efetivas. Por exemplo, ao longo do meu crescimento, eu fui sempre livre e, felizmente para mim, também aconselhada e apoiada a fazer todas as minhas escolhas.
Nascer depois de 25 de Abril de 1974, em plena revolução, e crescer em democracia, significou para mim a possibilidade de escolher ir estudar Teatro para uma grande cidade, ainda antes de completar 18 anos. Assim como, no seguimento dessa escolha, decidir tornar-me atriz e viver dessa profissão.
Em janeiro de 1996 cheguei a Viana do Castelo e entrei pela primeira vez no Teatro Municipal Sá de Miranda, que tem sido a minha segunda casa desde então. Por minha escolha, assim como de quem me contratou.
Vivo do meu trabalho de atriz. Que escolhi. E exerço as minhas opções profissionais e artísticas em liberdade, sem que nada, nem ninguém, possa prejudicar-me pelo que penso, digo ou faço. Ora, isto só é possível porque existiu um movimento revolucionário que acabou com a mais longa ditadura da Europa e retirou as mordaças a poetas, jornalistas, pintores, cantores, atores. Um ato de intervenção cívica que libertou os jornais, as livrarias, os teatros e as galerias de arte que, somente a partir de 1974, puderam publicar, vender, representar e expor tudo aquilo que, até então, estava proibido pelo Estado.
Eu sempre pude representar obras que outrora foram proibidas, ou que foram retiradas de circulação, ou publicadas com cortes. Algumas até, que não chegaram a sair do coração e da cabeça de quem as criou, a não ser muitos anos depois da sua criação.
Sempre me senti livre, na vida e no palco. E isso é inestimável. Assim como é verdadeiramente difícil imaginar-me de outra forma.
As minhas filhas nasceram em hospitais públicos, com acesso a cuidados de saúde gratuitos. Estudaram e estudam em escolas públicas. Assim como eu, podem pensar e exprimir-se de forma livre. E podem fazer as suas escolhas. Tal como eu. Juntas, assim como todos nós, podemos votar nos projetos e nas pessoas que, em cada momento eleitoral, consideramos que nos representam melhor.
Por tudo isso, que pode sempre correr o risco de parecer pouco para quem, como eu, já nasceu em liberdade, é preciso cuidar de tudo aquilo que o 25 de Abril de 1974 nos trouxe e continua a trazer, certos que, por muito difíceis que possam parecer os tempos e as condições de vida em cada momento deste nosso Portugal democrático, elas serão sempre incomensuravelmente melhores que aquelas que os nossos pais e avós tiveram de suportar no seu tempo, para que hoje, 50 anos depois do fim da longa noite da ditadura, ainda se Viva a Liberdade!
Por Elisabete Pinto, diretora geral do Teatro do Noroeste – Centro Dramático de Viana do Castelo
Notícias atuais e relevantes que definem a atualidade e a nossa sociedade.
Espaço de opinião para reflexões e debates que exploram análises e pontos de vista variados.